Miscellaneous Man

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Surf, música, arte e fotografia: tudo se conecta na vida do californiano Darin Pappas. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.
Segundo o conceituado dicionário Longman Dictionary of Contemporary English, a palavra ?miscellaneous? (ou miscelânia, em português) significa ‘conjunto desconexo de diferentes coisas ou pessoas, que parecem não ter ligação clara umas com as outras’.

 

A palavra seria uma boa definição para o que faz o artista californiano Darin Pappas, também conhecido como Ithaka, não fosse um detalhe.

 

Embora suas habilidades passeiem por áreas distintas, como o surf, as artes plásticas, a música e a fotografia, todas as atividades estão conectadas – e servem de fonte de inspiração entre si.

 

Darin mostra disposição na ilha da Madeira, Portugal. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.

Norte-americano de origem grega, Darin já viveu em países como Grécia, Portugal e Japão e atualmente mora no Brasil.

 

No meio líquido, ele é um surfista fissurado, com passagens por lugares como Marrocos, Quênia, Tanzânia, Cabo Verde, Filipinas, Indonésia, Nova Zelândia, México, Peru e Alaska.

 

Mas é fora da água que Ithaka revela o brilhante artista plástico que é. Com muito talento, originalidade e criatividade, ele dá nova vida às pranchas usadas criando belíssimas esculturas, que chama de ?reencarnações de pranchas?. Suas obras freqüentemente participam de exposições em várias partes do mundo.

 

O trabalho dele passou a ser mais conhecido pelo público brasileiro na II Mostra Internacional de Arte e Cultura Surf, realizada em novembro no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo (SP), em que Darin expôs duas esculturas.

 

Mas as qualificações deste verdadeiro cidadão do mundo não param por aí. Aos 39 anos, Ithaka também é fotógrafo profissional, com várias campanhas na bagagem, e músico, com diversos trabalhos realizados e quatro álbuns lançados desde 95.

 

O penúltimo, ?Recorded in Rio?, de 2004, foi gravado no Brasil, com participação de nomes como Gabriel, O Pensador, B Negão, do Planet Hemp, Liminha, de Os Mutantes, Thalma de Freitas, Tito Gomes, entre outros músicos de expressão.

 

Em Portugal, onde morou por seis anos, Ithaka conheceu o shaper brasileiro Paulo Mandacaru, que também viveu lá por mais de 15 anos, e estabeleceu com ele uma sólida amizade. Recentemente Ithaka fez algumas fotos de Paulo na sala de shape que mostram novas perspectivas da atividade.

 

?Considero o Paulo um dos melhores shapers da atualidade e venho usando suas pranchas desde que nos conhecemos, em Portugal. Inclusive ainda tenho duas guns que usei muito na ilha da Madeira?, diz o artista, dono de forte sotaque americano misturado com o português de Portugal.

 

Mandacaru não poupa elogios ao amigo: ?Tive a sorte de conhecer e ficar amigo do Darin em Portugal. Ele é extremamente talentoso, seja na música, na arte ou na fotografia, além de ter muita disposição nas ondas. Fotos do trabalho de shaper são complicadas porque não oferecem margem à originalidade. No entanto, ele consegue os melhores ângulos e movimentos?, comenta.

 

Na internet é possível conhecer a fundo o vasto trabalho de Ithaka, com dezenas de fotos de suas esculturas, informações sobre sua biografia e discografia, fotos que fez para anúncios publicitários e de suas viagens pelo mundo. Acesse ithaka.cc; ithaka-1.com ou darinpappas.com .

 

Nesta entrevista, realizada por intermédio de Paulo Mandacaru via internet, Darin Pappas, ou Ithaka, fala sobre sua incrível trajetória no mundo das artes – e das ondas.

 

Clique aqui para ver a galeria de fotos com alguns dos trabalhos de Ithaka.

 

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Darin e algumas de suas reencarnações de pranchas. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.
O que vem primeiro na sua vida: arte, música, surf ou fotografia?

 

Todas são partes essenciais de minha existência. Mas eu não consigo imaginar minha vida neste planeta sem uma ligação com o mar, e o surf é algo que eu não poderia viver sem.

 

Faça um breve relato sobre como iniciou em cada uma dessas atividades.

 

Comecei a tirar fotografias aos cinco anos, incentivado por meu pai durante uma viagem para ver baleias na Califórnia, e nunca mais parei. Desde os seis anos já tentava me equilibrar em pedaços de madeira no mar.

Ithaka no estúdio. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.
Aos oito ganhei um bodyboard e com 12 anos iniciei minha trajetória em cima de uma prancha de surf. Lembro como se fosse hj, foi durante uma viagem para Maui, no Hawaii, com a família de um amigo, em ondas pequenas e gordas. Na mesma viagem, certo dia ancoramos o barco para contemplar o fim de tarde em Honolua Bay. As ondas estavam perfeitas com cerca de 2 metros e foi a primeira vez que vi tubos de verdade, pensei: ?Nossa, quero experimentar isso?. Voltei para lá diversas vezes nos anos seguintes e finalmente peguei aqueles tubos. É um lugar incrível. Comecei nas artes tentando pintar, mas também fazia pequenas esculturas com pedaços de blocos retirados de salas de shape. Certa vez, quebrei uma prancha e a deixei em casa por um tempo. Até que um dia resolvi pintá-la, depois comecei a recortar alguns pedaços, dando novas formas e texturas e isso resultou em um objeto interessante. As pessoas gostaram e passaram a me dar pranchas usadas, e de repente minha vida mudou por causa desse trabalho. Passei a expor essas obras um ou dois anos depois. Em Los Angeles fiz alguns trabalhos de fotografia para músicos, mas só passei a fazer música quando me mudei para Portugal. Por acidente, me tornei MC em um programa nacional de rádio e as pessoas começaram a elogiar minha voz. Aquilo me motivou a tentar algo no meio, pois antes eu já havia escrito algumas letras, mas nunca considerei a hipótese de ser músico. Minha primeira participação foi em uma música dançante chamada ?So Get Up?, da banda Underground Sound of Lisbon. A faixa acabou fazendo sucesso nos EUA e na Inglaterra. Foi engraçado ir tão longe, pois gravamos em um pequeno estúdio de garagem em Cascais, às 5:30 horas da manhã. Depois da gravação fui direto surfar em Guincho, que tinha boas ondas e um frio absurdo. A partir disso foi relativamente fácil conseguir financiamento para meus projetos. Desde então já gravei quatro álbuns, dois em Portugal, um nos EUA e um no Brasil, todos independentes. Mas dei sorte, pois uma de minhas músicas acabou em Hollywood, na trilha sonora do filme ?Replacement Killers?, e outras foram parar em filmes de surf, como Second Thoughts, de Timmy Turner, e Samba, Trance e Rock n?Roll, de Rafael Mellin.
 
Por que decidiu sair de LA e ir para Portugal?

 

Decidi sair de LA para surfar novas ondas, conhecer novas pessoas e aprender uma nova língua. Estava me sentindo estagnado na Califórnia.

 

E como o Brasil entrou nessa rota?

 

Sempre tive curiosidade de conhecer o Brasil, desde criança, mas nunca tinha tido oportunidade. Durante minhas viagens pelo mundo conheci muitos brasileiros e sempre foram experiências muito positivas. Em Portugal fiz amizade com duas pessoas especiais, que mantenho até hoje: Zózi Mendes, na época trabalhando na revista Surf Portugal e atualmente na Hang Loose, e o excelente shaper Paulo Mandacaru, que passou a fazer todas as minhas pranchas. Gosto dele porque consegue fazer pranchas mágicas para qualquer condição de mar. Ambos estão de volta ao Brasil e foi ótimo encontrá-los durante a Mostra Cultural em São Paulo. Em 94, em Portugal, fui contratado para fotografar Gabriel, O Pensador para uma revista de música. Já conhecia o trabalho dele, mas não sabia que ele também surfava e andava de skate. Nos tornamos amigos e ele sempre me convidava para ir ao Brasil, mas somente em 2001 consegui aparecer. Na primeira vez fiquei um mês, durante o outono, e peguei altas ondas em lugares como São Conrado, Prainha e Arpoador. O Brasil é um lugar alucinante. Poucos anos depois voltei para começar a gravar o álbum Recorded in Rio e me apaixonei pelo lugar ? e por uma garota. Passei a voltar sempre e aproveitei para conhecer outros lugares, como Garopaba, Floripa, o litoral de São Paulo, Saquarema, Pipa e Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, entre outros. Agora tenho uma casa no Rio e estou muito feliz.

 

Clique aqui para ver a galeria de fotos com alguns dos trabalhos de Ithaka.
 

 

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Paulo Mandacaru e a foto The shaping Machine from outer Space. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.
Qual foi sua experiência mais marcante no surf?

 

Minha primeira viagem para a ilha da Madeira, com Zé Seabra e João valente, ainda ocupa o primeiro lugar na lista das experiências mais dramáticas da minha vida. Ficamos presos no outside por causa da maré alta, as ondas tinham entre 3 e 4 metros e quebravam rente às pedras. Estava assustador. No fim conseguimos sobreviver, apenas com pranchas quebradas e cortes pelo corpo, felizmente nenhum osso quebrado. Madeira é um local extremamente perigoso e não se pode brincar com o oceano lá.

 

O que são e como surgiram as reencarnações de pranchas?

 

Ithaka durante a Mostra Internacional, em São Paulo. Foto: Arquivo pessoal Darin Pappas.
Lembro perfeitamente quando começou minha fascinação pela história dos objetos inanimados. Foi em 83, ano de El Niño, numa manhã em Manhattan Beach, Califórnia, quando achei na areia uma velha casca de côco trazida pelo mar. Presumi que viera do Hawaii. Então comecei a imaginar o dia que ela deve ter sido atingida pelos fortes ventos que vêm de Molokai… Caiu no chão e foi levada pela maré alta para a imensidão do oceano… Graças à força das correntes atravessou mais de cinco mil quilômetros e cerca de dois meses depois chegou até a costa oeste. Se esse côco pudesse falar, seriam histórias incríveis. Comecei a fazer esculturas com minhas próprias pranchas, normalmente partidas ao meio em um pico chamado Newport Point, em Orange County, uma incrível bancada de areia dois quilômetros ao sul de Wedge. A onda é parecida com Wedge, o mesmo triângulo perfeito e tubular, só que com um lip mais fino e quebrando mais distante da praia. É impressionante como fica perfeito, e crowdeado, em alguns dias. Guardei uma prancha quebrada no meu quarto por um tempo. Toda vez que olhava para ela, lembrava daquele dia clássico em Newport e daquele tubo cristalino que a havia partido ao meio. Mas uma prancha quebrada é apenas um pedaço de bloco e resina, é lixo, com memórias. Gosto da idéia de trazê-las de novo à vida com novas identidades. Mas sem esquecer que, assim como nós, seres humanos, essas pranchas possuem histórias, algumas mais interessantes que outras. Mas normalmente essas histórias são sempre as mais exóticas possíveis. As pranchas existem somente para dar prazer, todas as vezes em que são usadas é como se fossem férias eternas… Até o dia em que acontece a tragédia e elas se quebram. Algumas de minhas reencarnações, quando eram pranchas foram usadas pelos melhores surfistas, viajaram o mundo todo e andaram dentro de tubos que algumas pessoas apenas sonham em pegar. Tenho esculturas que se quebraram em Pipeline, foram destruídas em acidentes causados por empresas aéreas, ou mesmo usadas até o limite por garotos ávidos pela carreira de profissional bem-sucedido. Depois, como esculturas, em suas segundas vidas, algumas delas já participaram de exposições em vários continentes.

 

O que você achou da Mostra Internacional em São Paulo?

 

Fiquei amarradão de fazer parte de algo daquele porte. Participei de outras exibições pelo mundo e a Mostra deixou todas as outras pálidas. Semana passada conversei por e-mail com o pintor e animador australiano Mark Shutterland, que também participou da Mostra, e ele sentiu o mesmo com relação à magnitude do evento em São Paulo. Quanto mais o surf art for levado a sério e mostrado dessa forma, maiores serão as chances de vermos trabalhos como esses valorizados por grandes centros e pólos culturais, inclusive distantes da praia, como Moscou, Hong-Kong… Quem sabe?

 

Em que você se inspira para fazer música e arte?

 

Minhas fontes de inspiração são as viagens, as ondas, o medo, a felicidade, a tristeza, a libido, o ódio, ciúmes. Sentimentos humanos e elementos da vida em geral.

 

Como aconteceu de você gravar seu álbum “Recorded in Rio” no Brasil?

 

Em 2001, quando vim pela primeira vez ao Brasil, tive uma ótima impressão do meio musical. Fui a muitos ensaios, shows e festas, fiquei maluco com o talento e a motivação das pessoas. Por vir do ultra comercial mercado norte-americano, o Rio é para mim um oásis de criatividade musical. Antes de mais nada as pessoas tocam pelo amor que têm à música. E isso é raro de encontrar em grandes cidades. Comentei isso com o Gabriel, O Pensador e ele sugeriu que eu considerasse a hipótese de gravar um álbum aqui. Ele foi um dos que plantaram a idéia na minha cabeça e me apresentou para Berna Ceppas, dono do estúdio Monoaural-RIO, que produziu meu álbum. Usamos parte do que eu já tinha começado nos EUA e mixamos com gravações ao vivo de músicos brasileiros. No final, com a ajuda de Ceppas e Gabriel, meu disco acabou com metade do Rio em seu conteúdo. A cantora e atriz Thalma de Freitas, dona de uma voz maravilhosa, fez todos os coros femininos, em cinco ou seis faixas. Gabriel fez letras e cantou em “Who’s the Enemy?”. B Negão, do Planet Hemp, cantou comigo em português na música “The Bus Song”. Liminha, de Os Mutantes, participou de outra música, e tivemos vários outros convidados ilustres, como Tito Gomes, DJ Marechal, entre outros.

 

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Capa do álbum Recorded in Rio, de 2004. Foto: Reprodução.
Por que o nome Ithaka?

 

Peguei o nome Ithaka emprestado do título de um poema de 1911, chamado ?Ítaca?, do escritor grego Konstantinos Kavafy. Em linhas gerais, a mensagem do poema fala que na vida, o caminho percorrido para se chegar a algum lugar é mais importante que o lugar em si. Então aproveite a viagem. Este é o lema da minha vida. Sei que ainda não cheguei aonde queria, mas estou tendo uma ótima viagem até lá. Segue a íntegra do poema:

 

Quando você partir em direção a Ítaca,
que sua jornada seja longa
repleta de aventuras, plena de conhecimento.
Não tema Laestrigones e Cíclopes
nem o furioso Poseidon;
você não irá encontrá-los durante o caminho,
se você não carregá-los em sua alma,
se sua alma não os colocar diante de seus passos.
Espero que sua estrada seja longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão,
e que o prazer de ver os primeiros portos
traga uma alegria nunca vista.
Procura visitar os empórios da Fenícia
e recolha o que há de melhor.
Vá as cidades do Egito,
e aprenda com um povo que tem tanto a ensinar.
Não perca Ítaca de vista,
pois chegar lá é o seu destino.
Mas não apresse os seus passos;
é melhor que a jornada demore muitos anos
e seu barco só ancore na ilha
quando você já estiver enriquecido
com o que conheceu no caminho.
Não espere que Ítaca lhe dê mais riquezas.
Ítaca já lhe deu uma bela viagem;
sem Ítaca, você jamais teria partido.
Ela já lhe deu tudo, e nada mais pode lhe dar.
Se, no final, você achar que Ítaca é pobre,
não pense que ela lhe enganou.
Porque você tornou-se um sábio, e viveu uma vida intensa,
e este é o significado de Ítaca.

 
Algum novo projeto para o futuro?

 

Meu novo CD, ?Fuse With Me?, foi lançado recentemente na Europa por um selo chamado Groundzero Records. Inclusive com uma aparição no programa SuperSurf, durante uma session na Silveira, em Garopaba. É um trabalho em conjunto com um projeto português de raga-hip-hop-drum-n?bass chamado Cartell 70, basicamente um projeto experimental retrô de dance music anos 80. Também estou trabalhando em um projeto chamado Cactus Crater, em parceria com o produtor Henri Sanrame, e continuo criando novas esculturas com pranchas, além de registrar minha vida através da fotografia. E curtindo muito a viagem.

 

 

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