Os polinésios reivindicam para si o título de precursores do surf em suas mais diferentes maneiras. Da mesma forma, os peruanos acreditam terem sido os primeiros a adotar uma prática que pode ser definida como a semente do esporte ou, em linguagem mais acadêmica, a pré-história do surf.
Polinésios e peruanos têm muitos pontos em comum: têm o Oceano Pacífico banhando suas praias, um estreita e antiga ligação com o mar, deuses que se parecem, até mesmo no nome, e um sem número de lendas que falam de uma origem possivelmente única.
Da mesma maneira que uma corrente antropológica admite a hipótese de polinésios terem navegado por milhares de milhas até atingir as costas da América, outra defende a tese de que foi justamente o contrário: antigas civilizações pré-colombianas singraram os mares e foram aportar com seus barcos de junco e pau de balsa em ilhas, como a de Páscoa e as do Havaí.
Na década de 40, o antropólogo norueguês Thor Heyerdahl surpreendeu o mundo, em especial a comunidade científica mundial, afirmando que antigos povos da América do Sul haviam contribuído no processo de colonização de algumas ilhas localizadas na região do Pacífico conhecida como Polinésia.
Suas teses foram rechaçadas de imediato, sob a alegação de que os antigos sul-americanos não dispunham de meios e competência para empreender tais viagens marítimas. A bordo do Kon-Tiki, embarcação criada a partir de relatos que descreviam os barcos usados pelos pré-colombianos, Heyerdahl e mais cinco intrépidos aventureiros deixaram Callao, no Peru, e foram parar na Polinésia.
A façanha mostrou que suas teses poderiam estar certas. No seu rastro, outros antropólogos e arqueólogos encontraram evidências da presença de antigos povos da América em pontos distantes do Pacífico.
Muitos achados e estranhas coincidências reforçam a tese de Heyerdahl e fazem acreditar na possibilidade de o surf dispor de uma origem bem diferente daquela que muitos supunham.
A vida é uma onda – Albert Einstein, personagem que dispensa comentários, é o autor de uma célebre frase que poderia ser atribuída a qualquer um dos centenas de milhares de surfistas espalhados pelo mundo: “A vida é uma onda”.
O pai da relatividade não estava, obviamente, referindo-se ao surf de uma maneira específica, mas aos múltiplos aspectos físicos que tornam possível a vida no universo.
Tudo no mundo material se manifesta em ondas, mas é exatamente no oceano que isso verdadeiramente se materializa.
Todos sabem que a luz e o som, entre outros exemplos, propagam-se no espaço em ondas, mas não há como visualizar esses fenômenos, somente quando o homem vai para o mar esse fato se torna graficamente aparente.
A representação mais arquetípica e simbólica do relacionamento entre o homem e os ritmos e a força da natureza está, portanto, expressa no ato de correr uma onda. A pureza elementar desse encontro explica bem o atrativo quase universal do surf.
Por mais que se saiba sobre os aspectos físicos deste esporte não há como negar que para muitos a origem do surf ainda navegue por um passado distante e aparentemente irrecuperável.
Muitos estudiosos, como Drew Kampion, jornalista e historiador do esporte, encaram o surf como um elemento intrinsecamente presente na cultura havaiana (polinésia), mas nem por isso deixam de supor que a sua origem possa estar no DNA dos habitantes costeiros da África Ocidental ou do Peru, onde os dois maiores poderes naturais eram os arco-íris e as ondas.
Em seu recente livro Stoked, uma história da cultura do surf, Kampion destaca que o relacionamento dos polinésios com o mar era diferente de tudo o que os europeus tinham experimentado. Para eles, o oceano significava vida, alegria e liberdade.
Ao mesmo tempo, porém, ele faz ilações que nos remetem a outros pontos da terra e outros tempos mais distantes no tempo para encontrarmos a origem do surf. O primeiro povo a atirar-se ao mar em barcos, com certeza apercebeu-se rapidamente da capacidade inerente das ondas para impelir ou se opor a uma embarcação. Existem provas circunstanciais e até mesmo materiais da prática do surf nas ilhas havaianas séculos antes da chegada dos primeiros europeus, já no Século XVII. Isso, porém, não significa que eles, os polinésios, tenham sido os seus precursores.
O surf como religião – Aspectos sociais e religiosos que cercam a prática do surf no tempo dos reis havaianos fazem crer na enorme possibilidade desta atividade ter sido levada para aquelas ilhas do Pacífico por outros povos.
A realeza das ilhas gostava particularmente de apanhar ondas e dava-se ao luxo de reservar os melhores lugares para uso particular.
Além disso, somente os reis e os nobres podiam surfar de pé e sem restrições.
Acredita-se que os responsáveis pela disseminação pelas ilhas polinésias de uma prática ancestral do que conhecemos hoje como surf – pratica essa que acabaria passando por uma processo evolutivo dos mais significativos, diante do talento natural dos nativos – tenham sido confundidos com deuses.
Isso explica o fato de reis e nobres estabelecerem certas normas, reivindicando para si determinados privilégios, tão comuns em outras culturas nas quais os governantes assumem uma postura mítica, como se fossem a encarnação de divindades.
As muitas peculiaridades de caráter religioso envolvendo a prática do surf antigo na Polinésia parecem se constituir em indicativos substanciais da presença de pseudos deuses naquelas ilhas, em tempos remotos.
A plebe tinha dificuldades para surfar. Com certeza era muito difícil para os pobres conseguirem madeira para as suas pranchas. As antigas pranchas havaianas, de até seis metros de comprimento, eram feitas necessariamente de árvores sagradas, a koa ou wiliwili.
O corte destas árvores implicava um ritual bastante incomum: um peixe vermelho era enterrado na sua base, sobre suas raízes, como uma prova de respeito à natureza e um pedido de boa sorte. A prática do surf entre os antigos polinésios era encarado como um autêntico festival de caráter religioso- político-cultural-esportivo. Até mesmo lutas mortais eram realizadas. E todos esses aspectos nos transportam para cerca de 8 mil milhas: a América (Sul e Norte), onde civilizações pré-colombianas, mesmo não fazendo do surf um acontecimento tão eloqüente como o observado na polinésia, reverenciavam seus deuses com festivais semelhantes em muitos pontos, até mesmo nas lutas ou jogos mortais.
A datação de figuras toscas de pranchas e de homens surfando, em lava petrificada, faz-nos recuar até o Século XII. Ainda neste mesmo período, teria sido composta uma canção-poema que fala da paixão de uma feiticeira por um jovem de rara beleza e exímio praticante de surf.
Para provar o seu amor, ela, que era capaz de assumir a forma de uma enorme serpente, teria transformado sua língua em uma prancha mágica.
Outra canção, igualmente passada de geração à geração através dos contadores de estórias e do culto de antigas tradições, fala dos prodígios de que era capaz um destemido rei.
Esses detalhes, aparentemente dão força à corrente que acredita ter sido o surf originário da Polinésia. Em uma análise mais profunda, porém, observa-se que a datação dos fatos em questão coincide justamente com o período no qual teria ocorrido uma gigantesca onda migratória em direção às ilhas polinésias.
A se dar crédito à tese de Thor Heyerdahl, essa onda migratória teria partido da América do Sul, já que foi por volta do ano 1.100 que habitantes da região costeira do Peru teriam, aos milhares, abandonado suas terras, fugindo da ira da natureza. Por conta dos El Niño, a costa peruana havia sofrido grandes danos. Admite-se até que a lenda em torno do exílio forçado do deus Viracocha – ele teria sido derrotado em uma batalha pelos domínios do altiplano peruano e obrigado a partir, pelo mar, em direção às ilhas dos chamados mares do sul – tenha um grande fundo de verdade.
Viracocha, talvez o mais importante deus do panteão inca, é descrito como de pele branca, estatura elevada e cabelos e barbas avermelhados. Um ser mitológico, com a mesma descrição, ressurge nas ilhas polinésias, notadamente em Páscoa, onde ele assume o nome Kon-Tiki. Ou melhor, reassume, já que, como veremos, Tiki teria sido a denominação original dada pelos pré-colombianos a Viracocha.
A tese em torno da origem polinésia do surf é, em grande parte, calcada nos relatos de antigas histórias, uma tradição dentro da cultura dos habitantes de todas as ilhas do Pacífico sul. Isso é explicado pela ausência da escrita entre os povos polinésios. Por tudo isso e independentemente de onde tenham sido lançadas suas sementes, o surf assumiu uma condição única entre os esportes. Embora ele pareça expressar apenas um contato puramente físico, envolvendo homem, sua prancha e o mar, sua natureza extrapola os limites do tangível.
Essa ligação entre o homem, sua prancha e o mar não ocorre apenas no aspecto físico, mas principalmente no plano espiritual. Forças cósmicas interagem de tal maneira que a prática do surf, por vezes, pode assumir os contornos de um ritual mágico, como se o surfista estivesse no papel de um sacerdote em meio a um ritual de celebração à mais poderosa e misteriosa das forças existentes no planeta.
Esse ritual, ao contrário de qualquer outro, porém, ocorre sempre de maneira diferente da vez anterior. Não existe uma onda idêntica a uma outra. Como impressões digitais, elas são únicas. Da mesma forma, não existe um surfista exatamente igual a outro. Cada qual é único, principalmente em sua relação com o mar.
Esotérico por natureza, o surf expressa o que em verdade deveria ser a razão da existência humana no planeta: a perfeita interação entre homem e natureza, para que juntos possam trilhar o caminho que os leva a Deus.
Um grande número surfistas afirma ter sentido a presença de Deus no auge do tubo. E não poderia ser de outra forma. Deus é a perfeição e não existe nada tão perfeito quanto um tubo. Trata-se da antesala do Paraíso.
Talvez se pudermos chegar perto da origem real do surf, tenhamos como entender parte dos seus mistérios e encontrar respostas para uma série de indagações.
Da mesma forma como o surf foi capaz de constituir uma subcultura (grupo com características sociais, econômicas, étnicas ou outras suficientemente distintas para o distinguir de outros dentro das mesma cultura ou sociedade), ele é capaz de produzir enormes efeitos sobre as culturas maiores de que faz parte, muitas vezes incomodando aqueles a quem o grande surfista Phil Edwards chamou de “as legiões dos sem vida”, ou sejam os não surfistas.
Referências:
Stoked, uma história da Cultura do Surf, Drew Kampion
Kon-Tiki, Thor Heyerdahl
Legendary Surfers, Malcolm Gault-Williams
Las Olas del Surf, em busca da origem do surf: uma abordagem antropológica e arqueológica da história deste esporte, Dejair dos Santos