Muitas águas

Na mira do fuzil em Galápagos

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Motaury caminha sobre as pedras na saída do pico, então desconhecido. Foto: Alberto C. Alves.
Estar no arquipélago de Colón, como também são conhecidas as ilhas Galápagos, estava sendo um sonho. Na verdade havia sido uma maratona para chegar até ali. Eu e meu amigo surfista/fotógrafo/aventureiro Alberto Alves tínhamos passado por um verdadeiro teste.

 

Inicialmente planejávamos ir num navio da marinha, mas após algumas tentativas e burocracias na cidade de Guayaquil, no Equador, nos vimos obrigados a comprar a passagem de avião para Puerto Ayora, na ilha Santa Cruz.

 

Bom, após dois meses viajando pelo Peru e Equador em janeiro e fevereiro de 1985, nosso dinheiro (ou pelo menos o meu) estava nas últimas (na época eu não usava cartão de crédito internacional, nem seguro viagem, etc). O dinheiro que levava era escondido em um cinto de couro com zíper numa velha calça jeans. Pensava comigo: “quem ousaria procurá-lo numa calça velha e rasgada?” Mas o tal do cinto já estava “murcho” e poucos dólares me restavam.

 

A solução? Tentar vender uma de minhas pranchas. Em 1985 não existiam tantos surfistas no Equador e muito menos alguém disposto a pagar o que eu precisava para a passagem. Mas, como sempre, deus providenciou a venda e lá estávamos nós, após alguns dias, avistando as águas absolutamente translúcidas de Galápagos.

 

O point das iguanas recebeu esse nome por motivos óbvios. Foto: Alberto C. Alves.
Em Santa Cruz, a ilha mais densamente povoada (pouquíssimas almas na época), ficamos acampados no jardim de uma senhora galapaguenha – eu sempre viajava com minha barraca e não seria na minha primeira viagem ao exterior para surfar que deixaria de levá-la. O difícil foi montar a barraca tal era a quantidade de pedras no solo.

 

Passamos em Santa Cruz muitas aventuras, descobrimos ondas solitárias (que comentarei numa futura matéria nesta coluna), mas o sonho de estarmos desbravando um lugar tão inóspito e remoto por muito pouco não se tornou o pior dos pesadelos.

 

Ainda tínhamos mais algum dinheiro e tempo, pois somente dali uma semana  e meia espirava a data limite de 90 dias do nosso bilhete de volta para o Brasil. Resolvemos então ir para uma ilha mais remota ainda atrás de ondas, a ilha de San Cristóbal. Fomos num barco que servia de transporte para a população entre as duas ilhas. Foram algumas horas Oceano Pacífico adentro, sendo que a certa altura, vimos a barbatana de um tubarão na superfície. Olhei para a face do Alberto e ficamos a pensar o que nos aguardava naquela ilha.

 

Tongo Reef, verdadeiro nome do pico, escondia esquerdas perfeitas sobre um fundo de rochas vulcânicas. Foto: Alberto C. Alves.
Nos instalamos numa “hospedaria”, se é assim que se pode chamar o lugar que ficamos, e voltamos a caminhar por horas e horas atrás de ondas. Para tal tivemos que obter licença da marinha, pois ali era uma área militar. Conversa daqui, conversa dali e a minha palavra de honra de que não fotografaria a base militar – eu a cumpri -, uma última foto do oficial sentado em seu gabinete e nosso discurso de que a revista Fluir, a melhor revista de surf da América Latina, publicaria uma matéria no Brasil que enalteceria o lugar e incentivaria o turismo, etc, etc, etc…

 

O cidadão arrumou o cabelo e… click!. Ego massageado e já estávamos agora caminhando em direção a uma das grandes aventuras de nossas vidas. Assim que dobramos uma ponta de rochas vulcânicas, bingo!!! Uma esquerda espetacular quebrando e outras duas atrás.

 

Berramos como crianças num parque de diversões. Acabamos por apelidar o point de baía das iguanas, devido a quantidade de iguanas na região. Hoje esta onda é conhecida como Tongo Reef e já não existem mais tantas iguanas assim (estive de volta lá em 2001 para conferir).

 

Motaury desbrava as ondas de Tongo, há quase 20 anos. Foto: Alberto C. Alves.
Tínhamos que documentar nossa aventura para as páginas da Fluir. Então aquela imagem do tubarão me veio na cabeça! Mas apenas um de nós poderia surfar de cada vez, pois o outro ficaria de fora fotografando. Como que de impulso, falei: “Alberto, eu vou primeiro”.

 

Fui entrando com muito cuidado por entre as rochas vulcânicas e remando para o outside, pois ali não existia praia. Minha primeira onda foi um passeio longo e contemplativo. Logo fui relaxando e tive uma das experiências mais marcantes em todos estes anos surfando mundo afora. Somente eu ali e a criação de Deus, as iguanas marinhas, peixes (tubarões, quem sabe), espécies endêmicas e um sol tropical pra ninguém botar defeito.

 

Passamos ainda outras aventuras nos dias seguintes, mas logo tínhamos de voltar para a ilha de Santa Cruz e pegar o vôo para Guayaquil e então outro até Lima, no Peru, e então São Paulo, meu lar na época.


Eu tinha feito um voto comigo mesmo de que não faria a barba desde o dia que saíra de São Paulo, em janeiro. Agora, já estávamos em final de março e ao me olhar no espelho, me senti como aqueles personagens bíblicos do antigo testamento, Moisés, Abraão, Jacó… 

 

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Visual típico dos trópicos. Foto: Alberto C. Alves.
Alberto caíra de cama com uma febre descomunal e agora começava a “tempestade”! Como bom adolescente e surfista que se preze (eu era muito desligado, ou melhor, ligado num outro mundo, o meu mundo interior) acabamos por deixar pra comprar nosso bilhete de volta para Puerto Ayora de última hora, e sabe no que deu, né?!

 

Pois é, não havia mais bilhetes para o pequeno barco e parecia que a ilha toda estava querendo ir embora no mesmo barco. Lógico que não conseguimos embarcar. Chegamos ainda a ir de madrugada no cais tentar um embarque clandestino, mas havia guardas em toda parte – creio que esta minha conjectura estava na cabeça de outros galapaguenhos.

 

Uma última tentativa era embarcar de carona num iate particular de um empresário que estava por ali de passagem. Cheguei a implorar pro cara em espanhol, creio que nunca me empenhei em falar o idioma com tal dicção.


Mas ele simplesmente nos ignorou. Fiquei revoltado, mas depois olhando para o meu visual com roupas de “grife” e um cabelo e barba tão fashion assim, e ainda o Alberto em estado febril, suando e envolto numa mistura de malhas, o que eu esperaria?

 

Na minha santa inocência, ainda cheguei a nos ver sentados no veloz iate tomando um suco e olhando para o pessoal amontoado no outro barco. Mas tão logo saí do meu mundo e caí na dura realidade, vi que estávamos quase “condenados” a passar o resto de nossas vidas em Galápagos…

 

Os lobos marinhos também habitam a região. Foto: Alberto C. Alves.

É que se perdêssemos a conexão com o vôo de Lima pra São Paulo, bau, bau.
Já não via saída quando um senhor nos falou: “- Olha, hoje ao meio dia tem um vôo militar para Santa Cruz, por que vocês não tentam embarcar?”

 

Aquilo foi como uma visão de um anjo de Deus nos mostrando o milagre. Só que havia ainda um caminho a ser percorrido até o milagre, a começar pela distância até a pista do aeroporto. Nossas mochilas e pranchas estavam mais pesadas que o normal e o Alberto estava tão fraco que mal conseguia caminhar. A primeira parte deste milagre havia sido completada e ali estávamos nós aguardando debaixo de um sol de 40 graus nossa “salvação”.


Mas adivinhem quantos mais aguardavam a tal salvação? Muitos dos galapaguenhos que compartilhavam nossa mesma angústia e que horas atrás estavam no cais. Diferença: eles eram locais, e nós, haoles!!!

 

O avião barulhento da F.A.E. (Fuerza Aérea Equatoriana) mal havia pousado e uma pequena multidão de pessoas se aglomerava a uma centena de metros dele, separados por um cordão de isolamento e lógico, guardas armados. Eu estava vendo nossa última chance indo por água abaixo, nosso milagre se desmaterializando bem defronte de nossos olhos. Os guardas nem sequer nos deram atenção.

 

A surf trip foi a primeira investida de brasileiros nas ondas de Galápagos. Foto: Alberto C. Alves.
De repente surtei e saí correndo em direção ao avião invadindo a área proibida. Corri com todas as minhas forças até atingir metade do percurso até o avião, quando, de repente: Alto! Um militar gritou e de costas escutei o barulho dele engatilhando a arma.

 

O que será que aquele cabeludo, barbudo estaria por fazer, uma bomba? A multidão parou e eu inerte fiquei sem me virar. O Alberto, a esta altura, já estava crente de que voltaria sozinho pro Brasil, ou melhor, comigo numa “embalagem” nada agradável para o momento.

 

A essa altura a confusão estava armada e o piloto do avião veio até nós saber do que se tratava. Eu comecei a falar: “- Senhor, necessito ir a Santa Cruz, és una urgência…”

Ele percebeu pelo meu sotaque que eu não era equatoriano, mas sim brasileiro, e aí disparou: “- Hoje é carnaval no Brasil, com altas gatinhas no Rio de Janeiro, o que você está fazendo aqui? Qual é seu problema? Quer ir pra casa? Vá logo pegar suas malas que eu já vou decolar.”

 

O policial que estava me segurando não entendeu nada, ficou perplexo, mas acatou a ordem de seu superior (o piloto era militar também). Agora corri livre para aonde estavam as nossas mochilas e falei pro Alberto: “- Cara, não me pergunte nada, simplesmente pegue suas coisas e vamos ali pro avião.”

 

Capa de aniversário de 2 anos da revisa Fluir. Foto: Alberto C. Alves.
Subimos no avião militar e as “poltronas” eram fileiras enormes dispostas no sentido longitudinal do avião, ao contrário dos aviões comerciais que sempre voamos. Muitas pessoas foram sentando ao nosso lado, nativos que nos olhavam com curiosidade e certo receio.

 

O avião se preparava para decolar e, ainda perplexo, pensava comigo mesmo em como havia vivido ali o milagre, ele finalmente havia ocorrido. Já no vôo para Guayaquil as ilhas foram ficando para trás e também as lembranças de uma aventura única e exclusiva em nossas vidas.

 

Fomos os primeiros brasileiros a surfar no arquipélago de Galápagos e ainda tivemos sucesso em nossa aventura, pois ela foi matéria de capa da edição número 12, de aniversário de 2 anos da revista Fluir. Ah, e graças a Deus não fui fuzilado em plena linha do Equador e estou vivo (outro milagre!) pra contar esta história.

Saudações!