O surfe contemporâneo

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A única certeza que se pode ter em relação ao surfe contemporâneo é a magia e a satisfação que ele proporciona a seus praticantes e adeptos a este estilo de vida. Foto: Grant Ellis/ASP.
A palavra ‘contemporâneo’ caracteriza tudo aquilo que é do mesmo tempo, que vive na mesma época, e que, por este mesmo motivo, ainda não se solidificou por completo no contexto histórico. A partir de qual data nosso surf passou a ser contemporâneo?  Será que a visão da contemporaneidade é a mesma entre todos nós, surfistas?

 

Meu ponto de vista no decorrer deste texto refletirá com clareza todos os aspectos deste nosso rico presente? Minha concepção do surf e do ser surfista, por vezes lúdica e poética, deturpará a história que se inicia? Envolto em tais dúvidas, solicito a vocês, meus brothers leitores, que neste último capítulo me seja concedido um pequeno presente: a possibilidade de ousar, de hipotetizar o futuro com base no incerto presente, sem medo de incorrer em falhas, fruto da observação de fenômenos isolados e muitas vazes parciais. A onda é imensa, a parede tem um aspecto amedrontador, mas mesmo assim, eu vou arriscar. Galera! Botei pra dentro… Onde esta onda vai terminar? Isso pertence ao futuro! Curta o presente, estamos juntos nesta onda…

 

Talvez o tow-in

 

Talvez o advento do tow-in possa ser usado como fator delimitador da era contemporânea. No finalzinho da década de oitenta, e por grande parte do início dos anos noventa, um seleto grupo de havaianos trabalhou, e se mantém trabalhando com afinco, no desenvolvimento de uma nova concepção de surf. Com o objetivo explícito de entrar em ondas gigantescas, impossíveis de serem surfadas somente com a força empregada nas braçadas, Laird Hamilton, Darrick Doerner, Buzzy Kerbox, Dave Kalama, Pete Cabrinha, entre outros, passaram a utilizar botes infláveis (zodiacs) como reboque do surfista e fator gerador da velocidade necessária para a concretização de tal empreitada.

 

Foram desenvolvidas pranchas menores, mais estreitas e muito mais resistentes, e o uso de presilhas para os pés também se tornou obrigatório neste tipo de prancha. Em pouco tempo, uma das ondas mais sensacionais do planeta tinha sido conquistada; a temida Jaws (mandíbulas), situada na ilha de Maui, no Hawaii, até então intocada. O livro JAWS, Maui, de Lyon e Lyon, trás à tona o mundo de JAWS, retratado através de um competente texto e de fotos absolutamente maravilhosas, captadas por Blue Max3. O tow-in tornou-se popular quando foi mostrado no filme Endless Summer II, de Bruce Brown, e desde então não parou mais de se desenvolverJ. Os zodiacs foram trocados pelos potentes jet-skis. Técnicas de resgate foram desenvolvidas por seus praticantes e o desafio está tomando proporções nunca antes imaginadas. A caça hoje é por ondas de 100 pés de altura (cerca de 30 metros), havendo inclusive expedições destinadas a tal façanha!
 

Carlos Burle em Jaws, no mundial de Tow In 2002. A introdução dessa nova modalidade trouxe novos rumos ao esporte e ainda pode ultrapassar os limites conhecidos. Foto: Grant Ellis.
O surf rebocado é verdadeiramente fantástico. Algumas ondas surfadas nos fazem lembrar daqueles desenhos que fazíamos na contracapa de nossos cadernos, durante as intermináveis e monótonas aulas de física. A onda ocupava a página inteira, já o surfista, este se assemelhava a um micróbio desnutrido, e era feito com esmero, na ponta da lapiseira. De fato, a novidade chegou com a força de uma epidemia, produzindo entre outros fenômenos, um enorme interesse da mídia não especializada.

 

Como em todos os filmes épicos a grandeza é expressada em cada cena, o tamanho das ondas começou a ser verdadeiramente aferido pelos diretores deste novo sucesso de bilheteria. Digo verdadeiramente, pois, durante muito tempo o surfista nutriu uma cultura de subestimação do tamanho das ondas. Tradicionalmente nas ilhas havaianas, as ondas sempre foram medidas tomando-se como referência a sua parte de trás. Logo, quando nos anos 50, na época dos desbravadores de Waimea, Pat Curren, Greg Noll, Jose Angel, Peter Cole e George Downing conferiam a uma onda o tamanho de 25 pés, sua face era, de fato, muito mais medonha e assustadoramente maior. Na concepção atual, muita das ondas surfadas por aquele grupo de pioneiros teriam facilmente 40 a 45 pés de altura! Para tanto, basta observarmos algumas pérolas cinematográficas produzidas naquela época: Surfing the 50`sC, Golden Breed B, Search for Surf A, entre outras.

 

Mas, nossa época é outra. Atualmente estamos falando da caça a vagalhões absolutamente insanos! Ondas do tamanho de prédios de 10 andares! Isso se tornou realidade, na medida em que novos locais foram sendo descobertos e divulgados através da mídia especializada. Hoje já é praxe encontrarmos enormes reportagens versando sobre este assunto. As revistas e sites especializados em surf têm destinado uma significativa parcela de seus espaços na abordagem de tais temas, dando ênfase para ondas como a já citada Jaws, em Maui, ou a congelante Maverick’s, na Califórnia. Esta última foi descoberta por Jeff Clark, e virou uma verdadeira coqueluche na década de noventa. O local definitivamente não é muito convidativo, pois é cercado de pedras por todos os lados. Sua água é tão gelada que chega a fazer os ossos doerem, e se não bastasse isso… Surpresa! Alguns ferozes dentuços alimentam-se por aquelas bandas. Mas não se preocupe, os especialistas relatam que o tubarão branco não gosta muito do sabor de nossa carne, e comumente nos abandona depois da primeira mordida. Que consolo…

 

Nos últimos anos, a mídia tem divulgado bastante esses locais. Um filme que obrigatoriamente deve ser visto por todos os surfistas que almejam entender um pouco deste novo movimento no surf é o fantástico Whipped III, de Curt Myers e Eric NelsonD. Nele podemos apreciar cenas verdadeiramente incríveis, entre elas: Kelly Slater sendo rebocado por Jeff Clark em Maverick’s, caldos absolutamente fantásticos, como o do californiano Darryl “Flea” Virostko, onde o pobre infeliz recebe sobre sua humilde carcaça, um lip de dois metros de espessura, de uma onda que media facilmente 50 pés!
Neste mesmo filme ainda podemos ver as ondas do dia 22 de dezembro de 2000, quando um swell de mais de 60 pés invadiu Maverick’s. No mesmo dia, Mike Parsons, Brad Gerlach, Peter Mel, Kenny “Skindog” Collins, entre outros, desbravaram um local conhecido como Cortes Bank. Nada mais, nada menos do que um parcel submerso a 100 milhas de distância da costa de San Diego, também na Califórnia. Mike Parsons pegou a maior do dia, uma vaga estimada em 60 e poucos pés. Leia-se 40, 45 na velha medida. 

 

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Considerado um dos maiores watermen da história, Laird Hamilton teve sua prova de fogo em Teahupoo, Taiti, uma das mais impressionantes ondas já desbravadas pelo homem. Foto: Site Lairdhamilton.com.
Dois outros filmes que captaram parte de nossa fantástica história contemporânea e que deveriam ser vistos são: LairdE, da Blue Field Entertainment e To`day of daysF, do fantástico videomaker Jack McCoy. Laird é uma biografia muito bem produzida de Laird Hamilton, para muitos, o maior “waterman” vivo. Neste filme, Gerry Lopez simplesmente afirma que Laird é o rei, e as cenas de ação reforçam em quase 100% esta hipótese. To` day of days retrata a primeira expedição de Laird Hamilton ao Taiti. Já no seu primeiro contato, Laird pegou a onda que foi considerada a mais impressionante já surfada por um homem. Não tanto pelo seu tamanho, mas sim pela sua forma. A dita cuja foi dominada em Teahupoo, uma afiadíssima e extremamente rasa bancada de coral, onde o oceano se dobra produzindo cenas pra lá de surreais. Esta onda em particular foi surfada com o auxílio de um jet-ski, media uns 20 pés de altura, por talvez 25 pés de largura. Segundo o próprio Laird, a onda da sua vida…

 

Toda essa movimentação em torno do tow-in gerou discussões acaloradas sobre sua posição no mundo do surf. Afinal de contas, tow-in é surf? Alguns puristas posicionam-se em favor do velho e bom surf no braço. Na história de nosso surf, alguns eventos ficaram eternizados na memória dos surfistas: O Smirnoff de 1974, os Quiksilver em homenagem a Eddie Aikau, e o Billabong Pro de 1986, todos realizados em Waimea, no Hawaii e tendo como força propulsora dos surfistas somente os músculos e a coragem destes ao encarar um drop atrasado. Mais recentemente, em 1998, um outro evento épico, o Reef Big Wave Team World Championship, foi realizado na bancada de Killers, ilha de Todos Santos, México, e contou com a participação de uma seleta nata de big wave riders.

 

Ondas absolutamente enormes foram a tônica do evento, vencido de forma sensacional por Carlos Burle, com Rodrigo Resende em quinto e o Rosaldo Cavalcanti atuando como técnico. Ao que tudo indica, a polêmica que envolve o tow-in e o surf de remada ainda deverá perdurar por mais algum tempo. Entretanto, em sua concepção original, o tow-in foi criado para possibilitar o surf em ondas impossíveis de serem surfadas somente com a força dos músculos. Creio que se esta regra for sempre seguida, não teremos muitas polêmicas sendo alimentadas no futuro. Devemos ficar atentos para não trair nossas origens. Surf é diversão, comunhão e respeito à natureza, paz de espírito e confraternização entre os povos, silêncio e cumplicidade, e tudo isso pode ser perdido na medida em que alguns desavisados adentram uma simples zona de arrebentação munidos de jet-skis barulhentos e poluidores, desrespeitando a lei da prioridade e colocando em risco a integridade física dos surfistas tradicionais. Pior ainda… Quando em troca de fama fácil e exposição certeira na mídia, adentram zonas de preservação ecológica… Que pobreza de espírito!

 

Nosso surf contemporâneo necessitará cada vez mais de algo que está se tornando escasso em nosso mundo, o bom senso. O tow-in é uma realidade que veio para ficar, e no Brasil, Eraldo Gueiros, Resende, Burle, Romeu Bruno, entre outros, são alguns de nossos excelentes representantes. Trabalhemos, pois, para que o tow-in fique em seu devido lugar, ou seja, dentro do olho da tempestade, nas situações mais extremas possíveis. Aí sim, ele reinará absoluto e soberano, esperando pelos poucos que o entendam em sua plenitude e estejam dispostos a pagar o preço. Como todo bom big rider sabe… If you want to play, you have to pay.

 

Kelly Slater e seus amigos se tornaram ídolos incontestáveis de uma geração e mudaram os parâmetros do surfe moderno, por trás das lentes do diretor Taylor Steele. Foto: ASP World Tour/Tostee.com.
Talvez a geração Slater

 

Estamos no início da década de 90. Perambulam pelas praias da Califórnia dois amigos surfistas. Um deles, o talentoso magricelo Rob Machado, e o outro, não menos genial, o esquálido Taylor Steele. Rob viria a ser um dos melhores surfistas da década, e Taylor, talvez, o videomaker mais influente, cáustico e inovador desta geração. Por conhecer Rob Machado, Taylor Steele acabou se aproximando de uma enorme quantidade de meninos extremamente talentosos, dentre eles, Kelly Slater (que viria a se tornar hexacampeão mundial de surf!), Shane Dorian, Ross Willians, Kalani Rob, Taylor Knox, entre outros. Esta geração entrou para a história do surf, ficando conhecida como a geração Slater, e pode muito bem também ser citada como o fator delimitador do que estamos chamando de surf contemporâneo.

 

Algo digno de nota em nosso esporte é o dilacerante poder exercido por alguns vídeos de surf no inconsciente coletivo de nossa tribo. Não creio que existam esportes tão dependentes deste meio de mídia como são o surf e os seus filhos, o skateboard, o wakeboard e o snowboard. Exercendo este ofício de forma muito rudimentar e despretensiosa, Taylor Steele lançou um vídeo de qualidade técnica lamentável, mas que se tornaria um dos maiores marcos revolucionários de nosso esporte. O filme recebeu o nome de MomentumG, e apresentava ao mundo os surfistas mais inovadores, realizando as manobras mais criativas até então jamais vistas, ao som do hardcore mais pesado e ensurdecedor, diabolicamente encaixado nas cenas de ação que se desenrolavam. Momentum foi uma paulada no establishment. A honra de abrir o filme foi do mestre Tom Curren, que aparece pegando um belo tubo em Backdoor, Hawaii.

 

Ao que tudo indica, Taylor intuiu que, concedendo a Curren este privilégio, estava explicitando ao mundo a gratidão que esta nova geração tinha não só por ele, mas também por Martin Potter, Tom Carroll, Occy, entre outros grandes nomes que fizeram parte da geração que os antecedeu. Depois da onda de Curren, o que se viu foi uma pancadaria absolutamente incompreensível para os padrões da época; aerials, reverses, tubos insanos, batidas pra lá de verticais produziram a tônica daquele momento. O surf dava um salto quantitativo, na medida em que mais manobras eram feitas por metro quadrado, e qualitativo, visto que passava a seguir os passos de um esporte nascido em seu próprio ventre: o skateboard. Diversas manobras criadas por esta geração tiveram como fonte de inspiração o surf urbano, gerado no áspero e frio concreto das grandes metrópoles. Era chegada a hora do mestre surf reverenciar-se perante seu filho mais pródigo, o skate.


O nome Momentum não foi fruto do acaso, ele se encaixa no novo formato criado por Taylor Steele, que era a valorização dos momentos, e não da onda em si. O filme inteiro é uma sucessão de pequenas e intensas cenas de ação, o que lhe confere um dinamismo tosco, mas ao mesmo tempo surpreendente. Posteriormente, outros títulos o sucederam: Momentum IIK, FocusL, Good TimesM, entre outros, seguiram o mesmo modelo. Todos eles criaram uma legião de admiradores mundo afora, ditando moda e comportamentos. Recentemente, em 2002, Taylor Steele lançou Momentum, under the influenceN, onde apresenta a geração 2000, fortemente influenciada pela geração Slater. Mas, se a geração Slater faz parte de nossa história contemporânea, onde poderemos encaixar a atual geração liderada por Andy e Bruce Irons? Estou começando a achar que esta estória de contar história e de delimitar história pode ser ainda mais complicada do que eu previa.

 

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O australiano Mark Occhilupo foi do céu ao inferno e deu a volta por cima através do surfe, mostrando que a mente, e a força de vontade, é a maior aliada do corpo humano. Foto: Pierre Tostee/ASP.
Talvez a saga de Occhilupo

 

Tateando por fatos marcantes de nossa era, minha memória captou a incrível saga de um herói moderno, ou quem sabe, contemporâneo. A história da vida de Mark Occhilupo é pertinente neste momento, pois além de incrível, me auxiliará alavancar idéias posteriores. Occy, como costuma ser chamado, foi um herói que viveu na era Curren. Um fenômeno incontestável, carismático e de estilo avassalador. Na década de 80, formava junto com Potter, Carroll e com o já mencionado Curren, o esquadrão mais poderoso do mundo do surf competitivo. Sua carreira foi meteórica, mas, da mesma maneira que apareceu para o mundo, desapareceu sem deixar muitos vestígios. Abandonou o circuito antes de sagrar-se campeão mundial, esqueceu-se no sofá, junto com dezenas de latas de cerveja, saquinhos de amendoins, doces, balas e bombons.

 

Engordou, deprimiu-se e viu o tempo escorre-lhe por entre os dedos. Na verdade, passaram-se anos até que Occy optasse por ressurgir das cinzas como a velha Phoenix. Com uma incrível força de vontade, já na casa dos trinta, levantou do sofá, lutou contra os estereótipos e os rótulos de velho acabado, manufaturou um punhado de pranchas novas, concentrou-se fixamente em seu objetivo, entrou em um rigoroso regime alimentar, associado a um rígido programa de preparação física, enxergou suas deficiências e foi humilde tentando superá-las na medida em que aprendia com aquela molecada de 17 anos, que outrora o tinha tido como ídolo e professor. Os resultados começaram a aparecer em 1996. Em 1997 ele já estava novamente em casa, assombrando a molecada com um surf altamente veloz, potente, estiloso e competitivo.

 

Em 1998 é lançado no mercado um dos mais belos filmes de surf da história: OCCY, The OccumentaryH, do fenomenal diretor Jack McCoy, onde podemos apreciar sua bela história de ascensão, queda e ressurreição. Em 1999 o que parecia ser impossível acontece, Occy torna-se campeão mundial de surf na praia da Barra no Rio de Janeiro. Atualmente, em 2002, a lenda ainda ocupa um lugar entre os melhores do mundo, isso com quase 38 anos de idade! Um conto de fadas? Talvez… Um conto de fadas contemporâneo, que ajuda a abalar a inércia que muitas vezes nos assola. A importância de Mark Occhilupo extrapola de longe o simples contexto do universo do surf. Sua história insere-se no rol das grandes conquistas humanas, aquelas onde o homem vence a si próprio, abstendo-se do domínio imposto pelos chavões, pelas frases feitas, pela mediocridade e pelo derrotismo.

 

Occy percebeu, graças a sua força interior, que o grande problema do homem não é tanto o seu corpo, que muito lentamente perde força e reflexo, mas sim a sua mente, que pode embotar-se na medida em que se entrega ao acaso, ao ócio, à preguiça, perdendo desta forma a vontade de lutar, progredir, superar-se e sorrir. O problema não é tanto aquilo que falam de você, mas sim aquilo que você acredita ser. Occy, assim como uma grande parcela dos surfistas, optou por viver na terra do nunca, como fala Danilo Grillo. Uma terra onde nunca se envelhece, onde nunca se perde a vontade de ser criança. Occy mora no planeta surf, e para mim, estará sempre lado a lado de meus maiores heróis: Mahatma Ghandi, Jacques Cousteau, Dalai Lama, Buda, Albert Einstein, etc. Guardadas as devidas proporções, Occy também pode ensinar muito, basta percebemos sua mensagem, que é muito mais profunda do que o mais profundo dos tubos surfado por este simpático e bonachão australiano.

E por falar em idade…
 
“Ser velho, além de um fato, é um conjunto de convenções sociais da pior espécie. Não sei o que pesa mais sobre os velhos, se a idade ou a idéia que eles fazem de si mesmos, movidos pelo modo como são tratados, levados pelas idéias tantas vezes vingativas que orientam o comportamento da maioria frente a eles2.”
José Ângelo Gaiarsa

 

Picuruta e Leco Salazar. Duas gerações contagiadas pelo mesmo esporte e ideal de vida. A diferença é que os mais velhos parecem manter o mesmo pique de 20 anos atrás. Foto: Herbert Passos Neto.
Essa bem pode ser uma característica de nosso tempo… Estamos ficando velhos! Mas no surf, a imagem do velho parece não refletir esta triste e dolorosa afirmação do grande Gaiarsa. O surf, ele mesmo, já é um ancião. Lembra-se de nosso primeiro capítulo? Ele tem alguns mil anos de idade, mas comporta-se como um garoto e revitaliza-se a cada dia, renascendo junto com as tempestades geradoras de cada novo swell. Os países que não tinham tradição no surf estão revertendo este quadro, inserindo-o em suas culturas (e o Brasil está entre esses países), e tornando-o cada vez mais necessário. É comum hoje, ao irmos à praia, nos depararmos com pais e filhos surfando juntos. Na Califórnia, é comum vermos três gerações juntas, pai, filho e avô, e muitas vezes avós, no mesmo line-up. No livro, Girl in the curl1, de Andréa Gabbard, podemos nos deliciar com a história da doce Eve Fletcher, uma senhora de 65 anos, que surfa diariamente em San Onofre, Califórnia.

 

Aqui na terra adorada, Picuruta surfa com o Leco, John Walthers surfa com seus rebentos, Jorge Mula surfa com o fenômeno do longboard Danilo “Mulinha” Rodrigo, Rico (cinquentão) disputa onda com o riquinho, Almir Salazar surfa com os salazarzinhos endiabrados, mas, o mais surpreendente de tudo isso, é que os pais dessas criaturas estão a todo vapor! Parecem não envelhecer nunca! Assemelham-se a moleques que nunca perdem o gás. É verdade que alguns cabelos já se foram, mas é verdade também que, definitivamente, esses caras habitam a terra do nunca, renovam seus espíritos a cada queda no mar, distribuindo energia vital para cada célula de seus corpos. Sugiro que as carcaças desses sujeitos sejam mantidas em formol quando eles passarem desta para melhor. É possível que em posteriores estudos científicos, comprovemos que é no seio do surf que habita a fonte da eterna juventude.

 

Outro dia, assistindo um filme cujo nome é Cool and StylishI, encontrei algumas cativantes e inspiradoras imagens. David Nuhiwa e Herbie Fletcher, pra lá dos cinqüenta, humilhando a garotada em seus longboards turbinados. Rabbit Kekai, pra lá dos 75, firme e forte como um javali havaiano. Por volta do décimo primeiro minuto do filme, pude observar um coroa que mora dentro de um furgão (não se esqueça que estamos na Califórnia). O cara aparenta ter uns sessenta e poucos anos. Pega um toco e vai pra água. Em sua primeira onda: hang ten! Pura sorte, pensei. Lá vem o coroa na segunda onda: dois hang tens! Sorte dupla, teimei novamente. Lá vem o velhinho na terceira onda: passo sobre passo, estileira enjoada e… hang ten, hang ten, hang ten. Meu Deus!? Exclamei em alto e bom tom! O que é isso que eu estou vendo?! Não tenho muita certeza, mas creio que o coroa é um remanescente do período jurássico do surf, uma fera chamada Mickey Munhoz. Uma lenda dos anos 50, dos 60, dos 70, dos 80, dos 90, e ao que tudo indica, de nossa era contemporânea também, se é que me entendem!

 

Talvez um mosaico de pluralidades

 

Talvez, o verdadeiro retrato do nosso surf contemporâneo seja uma somatória de pequenos contextos, que quando verdadeiramente observados e analisados, podem nos fornecer uma visão mais ampla de nossa atual realidade. Paralelamente a toda esta movimentação fortemente alardeada pela mídia, como o tow-in, as competições, os mitos, a fama, o profissionalismo, o dinheiro, o status, existe uma movimentação muito mais sutilizada, fruto do interesse pelo sentimento do surf em si, pela poética do surf em si, pelas fragrâncias e pelos cheiros exalados da brisa do mar, pelo prazer de caminhar descalço pela areia, procurando a melhor vala para se divertir com os amigos. Milhões de pessoas surfam atualmente, e nunca poderemos saber, de fato, o que o surf representa, ou representou para cada uma delas em particular, pois isso faz parte da verdade interior de cada um de nós, guardada a sete chaves no interior de nossas mentes.

 

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O surfista deficiente Alcino Pirata é o retrato multifacetado do surf atual e encarna em sua imagem um mito eminentemente contemporâneo. Foto: Arquivo pessoal.
O surf é para todos

 

Estando à frente de escolas de surf durante grande parte de minha vida, pude conhecer várias pessoas e observar a importância do surf para cada uma delas. Como exemplo, posso citar o Sr. Euclides, um velhinho de 78 anos que começou a surfar comigo e com o Cisco, na Escola Radical em Santos. O Sr. Euclides não concordava com tanta gente na água surfando ao mesmo tempo. Para ele, as pranchas atrapalhavam a sua prática do surf de peito no rasinho, o famoso jacaré. Depois de muito jeito, o Cisco o cativou e falou que ele era forte o suficiente para surfar em um longboard. Meia hora depois o velhinho estava em pé! Esse simples fato alterou o restante de sua vida para melhor, pois ele andava deprimido devido à morte de sua esposa, e o fato de ter se tornado surfista fez com que as pessoas passassem a admirá-lo, a respeitá-lo e a tê-lo como exemplo de perseverança e coragem. Posso dizer que os últimos anos desse coroa foram repletos de intensas emoções, e que ele morreu feliz, na medida em que se sentiu amado e querido por um enorme contingente de crianças e adolescentes que o tinham como o “vovô garoto”.

 

O Sr.Waldyr Paterli é um outro belo exemplo. Começou a surfar aos 54 anos de idade, parou de fumar.  Esta no seio do surf a mais de dez anos. Metamorfoseou-se verdadeiramente em um homem do mar. Tem um lindo longboard. Seu velho Puma é equipado com rack para pranchas, e é presença assídua e querida nas maiores ressacas de Santos. Que bela mudança! Que sopro de vida! Que exemplo!

 

“O surf foi e é importante em minha vida, pois me trouxe mais saúde física e mental. Fui criado no campo, e lá a paisagem é sempre constante. No mar é diferente. Temos sempre que nos adequar ao seu infinito dinamismo, e isso nos enche de vida a cada momento.”
Waldyr Paterli

 

Ultimamente tenho pensado muito no poder terapêutico exercido pelo surf, uma área ainda muito pouco explorada, mas que condensa um mar de possibilidades. Alguns exemplos podem ser de grande valia no presente momento, como o de meu amigo Val. Val é um deficiente visual que me procurou anos atrás com um sonho em mente: Ele queria surfar! Imediatamente aceitei-o como aluno e iniciamos um aprendizado mútuo que culminou com meu amigo em pé! Surfando! É claro que aos olhos dos experts mais desatentos, Val não passava de um prego, mas, quando os mesmos experts percebiam sua deficiência, ficavam literalmente boquiabertos. O surf foi um dos maiores presentes na vida deste rapaz. O ajudou a elevar sua auto-estima, concedeu a ele ricas experiências sensoriais e ainda o inseriu em um universo distinto, onde adquiriu a admiração verdadeira de muitas pessoas.


Uma figurinha ainda mais conhecida é a do Alcino Pirata. Pirata teve sua perna amputada depois de um acidente de trânsito. Entretanto, absteve-se de amputar também parte de sua alma e de sua alegria de viver. Ao invés disso, percebeu que a vida lhe tinha concedido um presente: a possibilidade de superar-se e de servir de exemplo para outras pessoas que se encontram na mesma situação. Pirata foi à luta. Adequou sua deficiência em uma nova forma de surfar, e com somente uma perna, passou a desafiar as ondas mais poderosas do planeta: Padang Padang, Pipeline, Puerto Escondido. Pirata tem uma escola de surf, onde ensina crianças e adultos, e nas horas vagas ainda trabalha como piloto de testes para empresas que produzem próteses destinadas aos mais diversos tipos de amputações. Alcino Pirata é o retrato de nossa era, onde a vontade faz a diferença. Pirata é um herói pós-moderno, uma lenda em carne e osso habitante de nosso presente calendário. Pirata é o retrato multifacetado do surf atual e encarna em sua imagem um mito eminentemente contemporâneo.

 

Também me recordo com carinho da professora Luciana Pereira Pires Muniz, que em 1996 realizou uma simples, mas, maravilhosa monografia de conclusão de um curso de pós-graduação em psicomotricidade. Seu tema, vejam vocês: “A prática do surf e o desenvolvimento do deficiente auditivo”. Luciana nunca tinha surfado, mas intuiu que nosso esporte poderia ser benéfico na socialização, no desenvolvimento da criatividade e na melhora da comunicação por parte de inúmeras crianças que portavam deficiência auditiva. Para tanto, comparou desenhos feitos antes e depois das experiências passadas nas aulas de surf. Os resultados demonstraram de forma subjetiva, que as crianças passaram a ver a vida de uma forma mais comunitária, alegre e colorida! É bem a cara do nosso surf!

 

O que retratará mais fidedignamente o nosso surf contemporâneo, os seis títulos de Kelly Slater ou a espantoso retorno de Mark Occhilupo? O que será mais importante no contexto das conquistas humanas, Carlos Burle vencendo o Reef Big Wave Team World Championship ou o Sr Euclides superando a depressão no final de sua vida? Perante os olhos do universo, o desafio do tow-in é mais significativo do que a batalha do Pirata contra os preconceitos sociais? Comparações… Comparações… Elas sempre insistirão na simplificação das complexidades da vida… Retratar o surf contemporâneo não é tarefa simples, pois ele é muito mais rico do que as descrições feitas acima…

 

A nova geração de surfistas, como a jovem Bruna Schmitz, promete trazer um novo colorido ao cada vez mais disputado lineup. Foto: Carol Oliva.
O surf contemporâneo ainda pode ser:


A beleza ingênua das centenas de meninas presentes no outside e o conseqüente crescimento do surf feminino.
O surf potente, radical e escandalosamente agressivo do longboarder Phil Raizman, que enche de orgulho seus amigos e seu pai, o mito Bernard, um dos ícones no vôlei brasileiro.


Em contrapartida, o surf atual é a leveza, a graciosidade e o purismo do longboarder Joel Tudor, o artista que recria o passado a cada onda que surfa no presente. O surf contemporâneo é a grande família dos esportes praticados com prancha… É o skate, o wakeboard, o snowboard, o windsurf, o sandboard e todos os demais boards de nossa rica arvore genealógica. O surf contemporâneo é o surf acadêmico. É o surf nas cadeiras das faculdades, nos centros universitários, nas universidades. É o surf gerando cultura, ciência, tecnologia, alimentando o turismo, criando novos empregos, concedendo entretenimento e diversão para a comunidade. O surf atual é o médico que veste a bermuda entre uma consulta e outra. É o professor competente que chega para a aula de camisa floral. É o engenheiro que calcula minuciosamente o tempo que terá para surfar na hora do almoço. É o reitor de cabeça aberta e visão no futuro, isento de preconceitos e entraves mentais. É a mídia. É o mercado. É o feeling!

 

Mas… O surf é, acima de tudo, aquela sensação de aconchego, de eterna juventude e de revitalização da alma. Não importa quem você seja, um Phd ou um gari, um bodyboarder ou um longboarder, um brasileiro ou um americano, um campeão ou um amador de técnica limitada. Não importa o atalho que você esteja trilhando. Não importa o veículo que você esteja usando… Todos nós temos a certeza do que almejamos com o surf… E no fundo, percebemos que o mais importante não é a fama, nem glória, nem as conquistas materiais. O que almejamos é a possibilidade de viver nesta terra de magia, de diversão, de amizade e de paixão… A terra da eterna juventude… A terra do nunca, situada no planeta surf…

 

Paz   

 

Chegamos ao fim de nosso texto. Talvez minha visão de contemporaneidade seja demasiada ampla, mas para uma arte como a nossa, a prolixidade deve ser melhor do que palavras sucintas… Afinal, cada um entende o surfe da sua própria maneira. E isso que o faz maravilhoso.

 

Gostaria de agradecer aos meus amigos Valdir e Vítor Lanza, Romeu Andreatta e Mark Lund, pelas valiosas observações e contribuições que me foram concedidas ao longo deste ano de trabalho. Valeu amigos.


Que os deuses do surf nos acompanhem por toda a nossa vida, e que as amizades geradas no ventre do oceano sejam sempre o nosso bem mais valioso.

 

Aloha !

 

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Referências Bibliográficas

 

1- Gabbard, A.- Girl in the curl – a century of women in surfing. Midas Printing, Hong Kong, 2000.

2- Gaiarsa, J.A.- Como enfrentar a velhice. Ícone, São Paulo, 1986.

3- Lyon, C & Lyon, Leslie. – JAWS, Maui – Everbest printing, Hong Kong, 1997

 

Outras sugestões de leituras

 

Angeli, M.; Codeluppi, P.; Martignoni, S.; Rota, L. Extreme Snowboarding – The Ultimate Guide to Shredding – Universe Publishing. New York, New York, USA. 1998.

Brito, E. – A Onda Dura – 3 Décadas de Skate no Brasil – Parada Inglesa NPL. São Paulo, São Paulo, Brasil. 2000.

Brooke, M. – The Concrete Wave – The History of Skateboarding – Warwick Publishing. Toronto, Ontario, Canada. 1999.

Cabral.C.- Instructional Guide to Surfing – Quick Tips – Island Heritage publishing, 2000.

Davis, J. – Skateboard Roadmap – Carlton Books Limited. 1999.

Doug, W. – Skateboarder’s Start-Up: A Beginner’s Guide to Skateboarding..
Start-Up Sports / Tracks Publishing. 3a  Edição, Chula Vista, California, USA. 2001.

Hart, L. – The Snowboard Book – A Guide For All Boarders. W. W. Norton & Company. New York, New York, USA. 1997.

Lowell.H.- The snowboard – a guide for all boarders – W.W. Norton, New York, 1997.

Orbelian.G.- Essential Surfing – Orbelian Arts, San Francisco, 1987.

Rose, A. – Dysfunctional –  Booth-Clibborn Editions. London, England. 1999.

Uvinha, R. R. – Juventude, Lazer e Esportes Radicais – Editora Manole. São Paulo, São Paulo, Brasil. 2000.

Weiss, C. – Snowboarding Experts Barnon’s Educational Series Inc. Hauppauge, New York, USA. 1998.

Werner.D. – Longboarder’s – Start up – Tracks Publishing, San Diego, 1997.

Werner.D. – Surfer’s – Start up – Tracks Publishing, San Diego, 1999.

Wright.B.- Surfing Hawaii – Oahu, Maui, Kauai, Hawaii – Mountain & Sea Publishing, Redondo Beach, 1985.

2001 Instruction Issue – Wake Boarding Mag Vol. 9. Nº 5 (95). pp. 79-113. World Publications Inc. Winter Park, Florida, USA. 2001.


Referências de vídeos

 

A- Search for Surf – da Bull – Dana Brown

B- Surfing the 50`s – Bud Brown

C- Golden Breed – Dale Davis
D- Whipped III – Curt Myers e Eric Nelson

E- Laird – Blue Film Entertainment e Laird Hamilton

F- To`day of days – Jack McCoy

G- Momentum – Taylor Steele

H- OCCY, The Occumentary – Jack McCoy

I- Cool and Stylish – Herbie Fletcher

J- Endless Summer II – Bruce Brown

K- Momentum II – Taylor Steele

L- Focus – Taylor Steele

M- Good Times – Taylor Steele

N- Momentum II, under the influence – Taylor Steele