Sergio Laus, apelidado de Poroc Poroc, já é veterano nas expedições às Pororocas brasileiras. Foto: Arquivo pessoal. |
15 de abril de 2004. Durante uma típica quinta-feira na redação do site Waves.Terra, na capital paulista, recebo um inesperado telefonema do amigo e colaborador Sergio Laus, que estava no Maranhão em mais uma expedição à uma das Pororocas brasileiras.
“E aí, tá a fim de surfar a Pororoca?”, intimou ele. “Já tá tudo certo pra você vir, mas tem que embarcar amanhã”. Fiquei sem reação. O convite incluía não só cobrir a última etapa do circuito brasileiro na Pororoca, no Estado do Amapá, como também competir no evento.
Já tinha ouvido inúmeras histórias sobre o fenômeno, do próprio Laus, surfista e jornalista veterano nas competições e expedições na onda de rio mais longa do mundo. Porém, por se tratar de uma onda perigosa e diferente de todas que eu já vira em meus 13 anos de surfe, imaginava que teria toda uma preparação, inclusive psicológica, para enfrentá-la. Mas eu tinha apenas algumas horas para decidir. Acabei topando e no dia seguinte já estava de malas prontas pra partir.
O barco de apoio dos bombeiros seguia de perto todos os movimentos. Foto: Ricardo Macario. |
Durante a longa viagem, a falta do que fazer levava o pensamento mais longe ainda (se é que era possível), e a expectativa aumentava a cada sacolejo do barco e a cada rodada de conversas com a galera presente – comissão técnica e atletas, cada um com a sua própria definição sobre a mítica onda de rio, considerada a mais cascuda das Pororocas conhecidas e surfadas atualmente no Brasil. Os outros dois barcos levavam a imprensa e a equipe de bombeiros que acompanhou a expedição.
Nas doze horas de viagem de barco até a Pororoca a galera relaxa nas redes. Foto: Ricardo Macario. |
A Pororoca acontece praticamente todos os dias nos rios que fazem confluência com o mar na região da Amazônia. Porém, é durante os períodos do equinócio, no primeiro e segundo semestre, que o surf na Pororoca se torna possível. Três dias antes e depois das luas cheia e nova, durante as marés de sizígia ou marés vivas, o silêncio das matas é quebrado por ondulações que podem atingir até quatro metros de altura e devastam tudo o que estiver pela frente, como margens, árvores, barcos, animais e até casas. Não é à toa que a palavra Pororoca vem do termo “poroc poroc”, que no dialeto indígena significa “destruidor, grande estrondo”.
Visual mágico da onda abrindo. Foto: Ricardo Macario. |
É por isso que a onda possui a particularidade de ter uma corrente contra passando por baixo, diferente das ondas do mar, o que dificulta ainda mais a ação do surfista. Porém, segundo os moradores da região, com o passar dos anos a Pororoca está diminuindo de tamanho devido ao alargamento das margens, que sofrem com a erosão provocada pelo fenômeno, e o conseqüente assoreamento do rio.
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Sem vento, a Pororoca instiga qualquer surfista a cair na água. Foto: Ricardo Macario. |
Voltando à barca, a agitação era grande e geral para o primeiro encontro com a onda, e mesmo os mais experientes mostravam certa ansiedade. Principalmente Laus, que teria seu primeiro contato com a Pororoca do Araguari depois do acidente sofrido um ano atrás, quando foi pego pela espuma e fraturou a apófise da L5, uma das vértebras da coluna cervical, e ficou durante meses se recuperando do acidente, que exigiu uma operação de resgate digna de cinema.
Expectativa para a chegada da Pororoca no primeira dia da expedição. Foto: Gilmar Nascimento. |
De repente, o silêncio foi quebrado pelo barulho da onda, um ronco poderoso que mais parecia uma manada de búfalos – criação comum nas fazendas da região – correndo pela mata, antes mesmo de ela aparecer no horizonte. O primeiro momento foi mágico, mas na medida em que ela se aproximava o frio na barriga aumentava, até que paredes começaram a se formar e a galera começou a pular na água.
Para garantir a entrada na onda, o ideal é pular na frente da espuma, pois na maioria das vezes a parede não é cavada o suficiente para levar o surfista. Naquele dia quase todos pegaram a onda, menos eu e um dos juizes, os únicos que ainda não conheciam a onda do Araguari. Esperamos demais e acabamos perdendo o momento certo. No meu caso, perdi a chance de experimentar a onda e meu equipamento antes da competição, que começaria no dia seguinte.
Pousada Pororoca do Araguari, na fazenda Campo Novo. Foto: Ricardo Macario. |
No dia seguinte, terça-feira, saímos já da pousada nas voadeiras para o primeiro dia de disputas na Pororoca, por um igarapé quase seco que nos obrigou a descer da lancha e literalmente enfiar o pé na lama para “empurrar” os barcos em direção ao rio. Esse tipo de situação fazia com que perecesse que estávamos ao mesmo tempo em uma corrida de aventura, e somente quem tinha espírito de “Indiana Jones” encarava a situação com bom humor.
Sergio Laus e Ricardo Macario: bateria entre amigos. Foto: Douglas Engle. |
O sistema de disputas rolaria da seguinte forma: um sorteio determinou as baterias, que teriam cinco minutos de duração, e as bancadas que cada uma seria disputada. Ao término da primeira, a segunda entraria na água na segunda bancada, e assim por diante. Por ironia do destino, o sorteio me colocou frente a frente com Laus, que acabou levando a melhor devido a sua grande experiência na Pororoca. Mesmo eliminado precocemente, fiquei feliz de ter experimentado a onda e participado da competição.
Ao sair da onda, ao lado de Laus, ele comentou com a maior naturalidade: “O chato de ficar à deriva esperando o resgate é que os animais começam a voltar pro rio”. “Que animais?”, perguntei. “Ah, jacarés, piranhas, cobras, arraias e até tubarões!”, disse ele. Logo pensei: cadê esses bombeiros que não chegam logo. Isso sem falar no risco de bater num tronco ou algo do tipo enquanto surfa a onda. A Pororoca é mesmo uma caixinha de surpesas.
Nesse dia rolaram outras surpresas e três surfistas simplesmente não conseguiram entrar na onda. Um deles foi o maranhense Marcelo “Piu-Piu” Vaz, eliminado pelo paraense Sergio Roberto. O cearense Adilton Mariano derrotou o paraense Noélio Sobrinho, organizador e diretor de prova que competiu substituindo o carioca Ricardo Tatuí, que não compareceu ao evento. Com a vitória, Adilton garantiu o título do circuito, já que nenhum dos seus adversários na disputa pelo título brasileiro poderia alcançá-lo no ranking. A bateria entre o paraense Sandro Rogério e o representante do Amapá Stanley Gomes não aconteceu porque nenhum dos dois conseguiu entrar na onda.
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Os Sergios, Roberto e Laus, dividem a onda no primeiro dia. Foto: Gilmar Nascimento. |
O último dia começou com a disputa desta bateria, e Laus não deu chances para Stanley tentar qualquer tipo de reação. Com o paranaense na onda, foi autorizada a entrada de Adilton para a disputa da grande final. Os surfistas teriam cinco minutos para apresentar tudo o que sabiam, com o critério de julgamento valorizando o desempenho dos atletas, e não o tempo de permanência na onda.
Adilton rasga com pressão para garantir a terceira vitória no circuito. Foto: Ricardo Macario. |
“Estou muito feliz com mais esta conquista. No momento estou sem patrocínio e é sempre bom estar em destaque, ainda mais em uma competição difícil como essa. Quero agradecer a todos que apoiaram e realizaram este evento, que exige um esforço muito grande de todos os envolvidos, principalmente ao governo do Estado”, disse Adilton durante a entrega de prêmios.
Campeão e vice comemoram o resultado. Foto: Ricardo Macario. |
Terror e pânico* – No terceiro dia da expedição, os jornalistas Harris Whitbeck e Jean Pierre Salinas, da CNN, e Maria Adélia de Mendonça, da TV Alemã ARD, ficaram cerca de dez horas à deriva no meio do Rio Araguari (já de noite), momentos antes da Pororoca surgir destruindo tudo o que estaria em sua frente, depois de a embarcação que os levaria até uma fazenda próxima do local do evento apresentar pane no motor.
Por sorte, um avião monomotor do Governo do Estado que aguardava os correspondentes sentiu o perigo no ar e sobrevoou a região. O piloto observou o pânico e terror que a equipe passava numa região extremamente perigosa e redigiu dois bilhetes e os arremessou dentro de garrafas plásticas na área da fazenda Campo Novo.
Observando as revoadas da aeronave, um bombeiro viu uma das garrafinhas caindo no rio e foi averiguar o que estava acontecendo. Foi assim que as equipes de resgate rumaram para a boca do rio para realizar o salvamento dos repórteres e cinegrafistas, que já se encontravam em condições deploráveis.
Resgate ao Boto cor-de-rosa – No último dia de competição mais uma surpresa estava reservada aos participantes do evento. Na saída do igarapé que leva à Pororoca, atletas e organizadores ajudaram, nas primeiras horas do dia, a salvar um casal de botos cor-de-rosa que estavam encalhados num raso banco de lama.
“Não podíamos deixá-los se batendo no raso, então o piloto Márcio e o juiz Márcio Bahia, que também é veterinário, tomaram a atitude de tentar acalmá-los e deu certo. No final todos estavam ajudando os botos a acharem a saída do canal”, lembra Sergio Laus, que também esteve presente na ação de resgate.
Naufrágios – Ainda no último dia, durante as baterias finais do II Circuito Brasileiro de Surf na Pororoca, dois naufrágios ocorreram com os dois melhores pilotos da região, Zeca e Márcio, quando os motores das respectivas lanchas deram pane. Com experiência de anos na Pororoca, os pilotos souberam contornar a situação reduzindo o risco e garantindo o resgate das lanchas sem ninguém ficar ferido.
Entre aventuras e disputas foi encerrado o II Circuito Brasileiro de Surf na Pororoca, com o apoio excepcional do Governo do estado do Amapá, através de seu governador Waldez Góes, Secretaria da Comunicação – Olimpio Guarany, ao Detur (Departamento de Turismo) e toda equipe de pilotos e logística.
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* Colaborou nesta matéria Sergio Laus.