“O estilo de vida é ótimo, mas grana e respeito são uma piada”. Essa é a definição dada pelo juiz Lapo Coutinho às condições de trabalho e qualidade de vida dos juízes de competições de surf.
Residente no Hawaii desde 1980, o baiano já foi premiado diversas vezes como melhor juiz da ASP havaiana e tem cadeira cativa no quadro de árbitros das etapas do WCT nas Ilhas Fiji e no Tahiti, onde sempre vai visitar o filho caçula Manahere, que completa três anos em março.
Em entrevista exclusiva ao Waves.Terra, Lapo Coutinho abre o jogo e conta tudo sobre
Lapo Coutinho bota pra baixo em Makaha. Foto: Arquivo pessoal Lapo Coutinho. |
O que você acha da medida tomada pela ASP de tirar o “W” do WQS e não considerá-lo mais um título mundial?
Acho super justo, sem desmerecer quem ganha ou já ganhou o QS. Deveria ser chamado apenas de Qualifying Series há muito tempo. Comparo o WQS com a segunda divisão do futebol brasileiro ou com Brasil Tour no Brasil. E quem ganha é simplesmente o número 28 do mundo.
Na sua opinião o foco no QS atrapalha os brasileiros?
Acho que sim. Se os top 15 do mundo corressem todos os eventos do QS, como a maioria dos brasileiros faz, garanto que os campeões seriam diferentes, tanto no QS como no WCT. Acho impossível se focar na maratona de eventos do QS e WCT sem sair prejudicado em um dos dois circuitos.
E sobre as novas regras do QS?
Excelentes, mas acho que deveriam ser ainda mais rígidas. Sempre achei um absurdo que os top já entrem praticamente no sexto round, ganhando pontos e dinheiro, e só precisem passar algumas baterias para se requalificarem para o WCT, enquanto alguns têm de surfar três a quatro dias em ondas ruins e baterias dificílimas, tirando notas excelentes, para perder pra surfistas descansados, como vi este ano o campeão brasileiro Renato Galvão em Haleiwa e outros em vários eventos de nível 6 estrelas.
Fale sobre o novo critério de julgamento.
Colocaram a palavra fluidez no lugar de estilo e adicionaram o item “diversidade de manobras”. Interessante, mas acho que não vai mudar muita coisa. Os melhores do mundo já diversificam muito, como Andy, Kelly, Taj, Joel e Fanning. Os juniores estão vindo no mesmo passo e velocidade. Acho que vai melhorar a qualidade do surf, mas deve atrapalhar os juízes no início, pois fica complicado comparar manobras fortes e iguais com diversidade. É muito relativo.
E o que podia ser feito para melhorar?
Acho que os juízes deviam usar fones de ouvido para não ouvir nada que os comentaristas falam, para não serem influenciados, já que a platéia e comentaristas puxam para os locais de cada lugar e não têm o mesmo know-how de surf. Ficam berrando e vibrando quando o cara não fez nada e dando a impressão de que a nota devia ser maior. O juiz-chefe também devia dar a média que está escrita e deixar o juiz errar, mesmo que a diferença de pontos fosse grande. Não vejo necessidade em termos opinões iguais se o surf é subjetivo, pois para isso jogamos a maior e a menor nota fora, elas são descartadas.
Acho ridículo mostrarmos que concordamos ou temos a mesma opinião, se não é o que achamos. Devia ser proibido baterias de seis atletas, como em Sunset e Haleiwa, pois acho injusto para os surfistas e super difícil de ser julgada com exatidão, com vários surfistas surfando ao mesmo tempo. Devíamos julgar no máximo duas ou três baterias seguidas para mantermos o foco, como é feito no WCT e na maioria das etapas do QS. Os vídeos com replay na hora ajudariam bastante, como aconteceu no Hawaii este ano. Devia ser obrigatório, principalmente em casos de interferências e ondas decisivas. Também acho que devíamos ter uma avaliação que funcionasse de verdade a cada evento e que tivéssemos como nos aperfeiçoar nos erros. Os juízes seriam escolhidos para os principais eventos através desta avaliação, sendo indicados também pelas federações de seus paises e não sem saber o porquê ou por escolha de uma ou duas pessoas responsáveis por tudo.
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Falam que a vida de juiz é boa. É verdade?
O estilo de vida é ótimo, mas a grana e o respeito são uma piada. Não dá pra ganhar dinheiro nem aqui na América. A maioria faz simplesmente por querer estar em contato com o esporte e continuar surfando. Os melhores juízes do mundo hoje, que são somente uns seis, ganham no máximo US$ 20 mil por ano, o que aqui no exterior mal dá para sustentar aluguel e bancar despesas de uma pessoa que vive sozinha.
Temos no máximo 20 juízes deste nível, e um juiz como eu não tira US$ 10 mil por ano e tem que estar totalmente disponível para viajar quando eles precisam. Sendo assim,
O juiz destaca a excelente performance de Fábio Gouveia nesta temporada havaiana. Foto: Vans Triple Crown. |
Se o meu pai não pagasse escola e saúde dos meus filhos, eu não poderia ser juiz, tinha que ter um emprego comum. Esta realidade pode até ser viável para o Brasil, mas só temos uns dois ou três juízes que ganham decentemente, isso pela força do dólar aí no Brasil.
Aqui na América qualquer trampo dá pra ganhar mais do que isso. No Brasil temos os melhores juizes do mundo ganhando quase nada e em condições muito precárias, sempre levando culpa de tudo o que acontece de errado. Por aqui, temos que pedir por favor para conseguir as etapas que queremos julgar. Neste meio de ano só julgo o WCT do Tahiti e de Fiji e o QS 5 estrelas da Bahia, pelo menos por enquanto. Porém, no Hawaii julgo quase tudo, alivia de outubro a março. É muito difícil não poder se planejar direito e viajar o tempo todo com pouca grana e tendo que manter um lugar vazio onde mora. Acho que os juizes brasileiros são heróis e fazem verdadeiros milagres para sobreviver e continuar no esporte.
O que você acha dos juízes e do juiz-chefe atuais da ASP?
Sou suspeito para falar, pois sou juiz também e amigo pessoal da maioria. Posso te garantir que não existe intenção de se prejudicar ou favorecer ninguém. Acho que o Perry Hatchet é um dos melhores juízes de todos os tempos e um dos responsáveis pelo surf estar no patamar que está hoje. Não lhe falta caráter e vontade de acertar. Falam que os australianos são favorecidos porque ele é australiano, mas nos últimos 10 anos só tivemos um campeão mundial aussie, que foi Mark Occhilupo em 99. Andy, Kelly e Sunny ganharam o resto, fica difícil dizer que existe preferência para australianos.
O Andy foi beneficiado para ganhar o título no ano passado?
Quem diz isso não tem assistido ao circuito de perto. Ele perdeu a final em Fiji com uma somatória acima de 18 pontos, o Damien Hobgood tirou um 10 e um 9.8 nos minutos finais. Perdeu no Tahiti também com mais de 18 pontos na semifinal, sendo que muita gente achou que ele devia ter ganho. Se houvesse preferência, teríamos dado estas baterias a ele. Fica muito difícil comparar ondas acima de 9 pontos e tudo é uma questão de opinião. O cara só correu alguns QS e terminou entre os 30. Ele quebrou mesmo e esteve este ano num patamar acima da maioria. Quem o viu fazer interferência contra Neco em Haleiwa no ano de 2002 e quase perder o titulo em Sunset, também com interferência, ano passado, e conhece os juízes pessoalmente, sabe que não existe preferência para ninguém.
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Existe injustiça com os juízes?
Acho que faz parte do jogo. É como no futebol: o juiz é sempre filho da “…” e culpado pelo resultado. Temos que dar o resultado na hora, em fração de segundos, e às vezes erramos. Mexe com nosso brio e moral, pois estamos ali para acertar e fazer o melhor trabalho possível. Quem estiver ali para favorecer alguém vai ser desmascarado pelos próprios colegas, que levam a profissão a sério e trabalham para o bem do surf.
Comente o bicampeonato do Neco no QS.
É um feito importante você ganhar qualquer circuito disputado como esse, mas queria ver o Peterson e o Moura terem mais repercussão
A brilhante participação de Bruno Santos nas triagens do Pipeline Masters também é alvo de muitos elogios. Foto: ASP World Tour / Tostee. |
na mídia do que ele, pois na minha opinião o que fizeram foi muito mais importante, classificando entre os top 27 e tendo resultados expressivos contra os melhores do mundo. Acho muito mais importante ganhar a Tríplice Coroa Havaiana, um evento do WCT de ondas boas ou se classificar entre os 10 do mundo do que ser campeão do QS. O surfista brasileiro não vai ser campeão do WCT enquanto não focar somente no WCT e acreditar que pode ser campeão. O lance também é que muitos brasileiros correm todas as etapas de 5 e 6 estrelas do QS por causa do dinheiro, já que não podem se dar ao luxo de não correr, como os gringos.
Quais foram os melhores brasileiros na Tríplice Coroa para você?
Sem sombra de dúvida podemos ver pelos resultados. O Moura quebrou, chegando a duas semifinais, Pigmeu também, quase classificando para o WCT; Bruno Santos conquistou a segunda posição nas triagens do Pipe Masters contra 30 especialistas, e vimos vários brasileros, como Fábio Gouveia, Yuri Sodré, Renato Galvão, Danilo Costa, Mandinho, Herdy, Raoni, Mineirinho, entre outros, quebrarem em algumas baterias e não conseguirem chegar lá. A cada ano estamos nos especializando mais em tubos e ondas grandes, e isso está refletindo nos resultados.
Você vê um brasileiro campeão do WCT nos próximos anos?
Já vejo há muitos anos, mas surf é imprevisível. Achei que o Neco seria logo que entrou, achei que Marcondes Rocha seria a maior esperança Júnior do Brasil depois do ISA de 2000, mas ele “sumiu”. Raoni, Nunes e Moura enchem meus olhos. Já vi tanta gente aqui no Hawaii quebrar e sumir no outro ano, como Kai Henry, Nainoa Surrat e outros. Vejo tanta gente surgindo e sumindo que fica difícil prever. Todo ano acho que algum brasileiro pode ganhar no Tahiti, Fiji ou Pipe pela dedicação de alguns, mas ainda não aconteceu, apesar de termos chegado perto. Acho que os juniores terão grandes chances, pois estão fazendo tudo certo. Bons técnicos, bom preparo, viajando muito e surfando ondas boas e grandes há muitos anos. Quando estiverem surfando tubos e ondas grandes como estão em ondas pequenas e médias teremos um campeão na certa. Esta é a fórmula do sucesso, só falta mais dinheiro e patrocinador bom para esta molecada.
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O que tem a dizer sobre os testes de drogas em surfistas e juízes nas etapas européias do circuito mundial?
Acho excelente, pois dará mais credibildade ao esporte. As drogas atrapalharam muitas gerações de surfistas e de juízes, acho que o esporte tem que estar totalmente desvinculado de drogas e ter uma imagem que venda bem para conseguir patrocinadores de peso que não sejam marcas de surf, como Nike, Reebok, Coca-Cola, Ford, Microsoft, American Express e outros.
Assim como temos no golf, tênis, futebol americano e futebol. Só acho que se maconha for incluída pode tirar muita gente do Tour. Sei que as drogas atrapalharam muito a minha vida e de minha familia e preferia não vê-la fazer parte da vida de ninguém ou de qualquer esporte.
Para os havaianos, Carlos Burle desrespeitou o convite ao Eddie Aikau quando optou por correr o mundial de tow-in em Jaws. Foto: Bruno Lemos / Lemosimage.com. |
O que você acha do resultado de Danilo Couto no último Billabong XXL Awards e da ausência de Carlos Burle no Eddie Aikau?
Acho que o Danilo devia ter ganho, pois nos últimos anos tinham dado o prêmio às ondas mais cascas-grossa, como as de Makua Rothman e Burle, premiados pelo grau de dificuldade. A dele (Couto) sem dúvida foi mais difícil, mas a do Cabrinha foi realmente maior ou teve mais massa d’água. Quanto ao Burle, é um grande amigo meu e acho que devemos ter um brasileiro no Eddie. Ele foi prejudicado sensivelmente quando optou por correr o mundial de tow-in em Jaws, em vez de disputar o Eddie Aikau, como também por ter faltado ao outro evento por contusão. Os caras acharam um desrespeito ao convite. Quem não quis perder a vaga, como Brian Keaulana, Tony Ray, Ross Clark, Brock Little, que estavam treinando no evento de tow-in, e inclusive eu, como juiz, que já estava no aeroporto indo pra Maui, voltamos para o Eddie, pois já tínhamos um compromisso de muitos anos e um respeito pela tradição do evento. Estou escrevendo uma carta para a Quiksilver e para a famíla Aikau, mostrando que, como nação, temos adquirido o direito de ter alguém nos representando, mas tenho que ter cuidado, pois faço isso como brasileiro e amante de ondas grandes, e não como juiz.
Como foram os episódios da pressão colocada por Sunny Garcia em Paulo Moura e Bernardo Pigmeu nas etapas havaianas?
Acho uma baixaria, mas ouço falar de pressões e intimidações em eventos desde os anos 60. Michael Peterson era mestre nisso na Austrália, até mesmo contra os próprios australianos. Os aussies comeram o pão que o diabo amassou com os havaianos nos anos 70 e hoje em dia isso continua com quem não toma uma atitude. Essa pressão com australiano não funciona mais. Com o Moura, parece tê-lo afetado nos eventos de Haleiwa, mas em Pipe ele foi na atitude e perdeu precisando apenas de um 6, sendo que tinha a segunda maior nota da bateria. Vi Bruno Santos ficar em segundo contra mais de 20 locais casca-grossa. Tem que ter atitude e partir pro tudo ou nada. Pra ganhar respeito tem que surfar pra ganhar e se for agredido levar ao conhecimento da ASP, que deveria tomar uma atitude. Os juízes e a direção da ASP não podem fazer nada se não presenciarem o fato.
O que explica o domínio australiano no WCT e QS?
Eles têm todas as grandes marcas bancando os principais eventos do ano, como Quiksilver, Billabong e Rip Curl. Têm apoio do governo para os surfistas e bons patrocínios, bons eventos o ano inteiro, uma qualidade incrível de ondas com muitos dos melhores tubos, como Kirra e Snapper, e ondas grandes também. O esporte é super respeitado, bem como sua história. Nomes como Mark Richards, Tom Carroll, Rabbit Bartholomew, Cheyne Horan e Occhilupo são considerados verdadeiros heróis, ou seja, um grande respeito ao passado. A rivalidade é muito grande e pra ser um dos melhores australianos você tem que realmente estar entre os melhores do mundo. Acho super justo, mas estamos chegando lá e temos visto com o Kelly e o Andy que não adianta quantidade, mas sim qualidade e constância. Eles têm sido vice há vários anos e devem estar engasgados. Ser vice lá não vale nada.
Como está o famoso crowd havaiano?
Insuportável, como na maioria dos lugares do mundo. Hoje em dia só surfo Makaha às 7 da manhã e ao meio-dia, pois tem pouca gente na água e conheço todo mundo. Caio também em vários picos por aqui que não sei nem o nome. Contanto que não tenha crowd, prefiro surfar com pouca gente ou com amigos do que ficar disputando onda. Vou correr, andar ou nadar. Como viajo quase o ano todo pro Tahiti, Fiji e Bahia nas melhores épocas de onda nesses lugares, não me preocupo em surfar, só caio quando está bom mesmo e sem crowd, mas deixo de pegar muita onda por isso.