Muitas águas

Aqui se faz, aqui se paga

0

O fotógrafo Motaury e o amigo Bob viajaram a bordo de um veleiro pela costa da Nova Zelândia. Foto: Arquivo Pessoal Motaury.
Em janeiro de 1991, com passagem marcada para Austrália e uma escala na Nova Zelândia, seria um desperdício não conferir melhor a terra dos kiwis, como são chamados os neozelandeses, a fruta e também um pássaro endêmico das ilhas.

 

Foi então que veio à minha mente a imagem de Bob, um amigo da cidade de Auckland que eu havia conhecido alguns anos antes, na Marina Laranjeiras (RJ), quando ele dava a volta ao mundo em seu veleiro.

 

Na época, Bob passava alguns meses no litoral do Brasil. Tive a oportunidade de conhecê-lo num fim de semana na casa do Bruno Alves, um dos fundadores da revista

Motaury e o casal de amigos neozelandeses posam para a foto histórica em frente a delegacia local. Foto: Arquivo Pessoal Motaury.
Fluir. Ainda o encontrei outras vezes, inclusive no campeonato Hang Loose 86, em Florianópolis, mas desde então havíamos perdido contato.

 

Não sabia se ele estava viajando pelos sete mares, se estava em Auckland ou mesmo se lembraria de mim. Peguei então o cartão de Bob, já quase esquecido na agenda, e não precisou mais que um telefonema para que ele fosse me apanhar no aeroporto.

 

Assim que desembarquei, um “senhor” de terno e gravata apareceu em minha frente. Era Bob! Olhamos um para o outro com aquela cara de interrogação, mas em poucos minutos estávamos numa marina alucinante, em pleno coração de Auckland. Removido o “disfarce” e já de bermuda e boné, ali estava o Bob que eu havia conhecido, junto à sua companheira Mandy.

 

Bob não tinha casa nem apartamento, posses desnecessárias para quem vive numa ilha e tem um veleiro enorme e superconfortável. Na verdade, ele era um bem-sucedido executivo de vendas que, de tempos em tempos, parava de trabalhar e viajava por meses, ou anos, em seu iate.

 

Era tudo o que eu poderia querer de um início de férias: um veleiro de 57 pés, suavemente atracado numa marina em Auckland, com tempo de sobra para viajar e um país-ilha inteiro para ser desvendado e surfado. Fiquei instalado na cabine de proa. Meu desejo inicial era conhecer Raglan, a famosa onda kiwi que esteve tantas horas em minha imaginação. Para chegar a esta maravilhosa esquerda, que fica no lado oeste da ilha, era necessário um carro.

 

Partimos então para um tour. Já com as pranchas no rack, depois de vermos que as condições não estavam boas em Raglan, paramos num parque para conhecer um pouco mais da fauna e flora locais. No estacionamento, comentei com Bob: “E aí, as pranchas podem ficar largadas no rack?”.

 

Ele respondeu: “Aqui não é o Brasil, pode ficar tranqüilo”. Passamos uma hora vendo os bichos, mas a fissura do surf falava mais alto e eu queria ir embora. Fui na frente, caminhando para o carro, e quase não acreditei quando não vi as pranchas em cima do carro. Numa das capas estavam minha roupa de borracha, lycra, botinha e cordinhas. Era o começo da minha viagem e eu teria ainda quase um mês na Nova Zelândia, outro na Austrália e outro em Bali. Encrenca, brother!

 

Bob chegou e ficou abismado. Sentamos na sarjeta por alguns instantes. Desiludidos, começamos nossa busca. Rodamos por mais de uma hora e nada. Fizemos então um boletim de ocorrência e, como já estava escurecendo, fomos para um hotel descansar.

 

##

A viagem em busca das esquerdas de Raglan quase virou uma barca furada depois do roubo das pranchas. Foto: Arquivo Pessoal Motaury.
A situação era constrangedora. Bob chateado por não me ouvir e nos colocar naquela situação e eu triste pela perda dos equipamentos e por dar esse incômodo todo para um cara que estava sendo muito gentil comigo e fazendo de tudo para me agradar. Ficamos nos desculpando um com o outro e o jeito foi dormir pra esquecer. Antes, porém, falei com Deus pedindo o impossível.

 

Dia novo, vida nova. Na saída do hotel, Bob perguntou: “Para a direita vamos às praias e para a esquerda, às montanhas. Qual direção seguir?”. Respondi que fôssemos para as montanhas ver os vulcões, pois sem minhas pranchas não queria nem olhar o mar.

 

E lá fomos nós. A sensação de perda ainda

A história de Motaury relata que mesmo em países de primeiro mundo, todo cuidado é pouco. Foto: Arquivo Pessoal Motaury.
era forte e eu não parava de pensar em como faria para surfar. Passados 40 minutos na estrada, “crash”! Um acidente acabara de ocorrer logo adiante.

 

Coisa rara, pois as rodovias neozelandesas são superseguras e relativamente vazias. Um carro que devia estar apenas um quilômetro à nossa frente parou para ajudar, pois foi o primeiro a ver a batida. Nós estávamos na seqüência e também paramos para oferecer socorro.

 

Nada de mortes, nem feridos, mas algo chamou a atenção do Bob no outro carro parado: as pranchas. Sim, as pranchas! A polícia chegou num instante, e , em seguida, mais carros.

 

Eu nem me liguei nas ditas cujas, mas Bob foi conferir. Como quem não queria nada, pediu para ver as pranchas, dizendo que queria comprar uma. Ele abriu a capa e, para nossa surpresa, era a minha prancha.

 

Não acreditávamos direito no que estava acontecendo. Abrimos a outra capa e lá estavam minhas duas pranchas, a lycra, a botinha, as cordinhas, a roupa de borracha, tudo intacto! Bob foi logo apertando o cara e falando alto: “Ladrão, Ladrão”. Um policial se alarmou e correndo veio ver o que acontecia. Provamos então que as pranchas eram minhas, pois descreviam exatamente como estava no boletim de ocorrência, já nas mãos do Bob.

 

Seguimos então para a delegacia mais próxima. Os ladrões eram três maoris (população nativa), dois caras e uma mina. Eles diziam ter comprado as pranchas e que não sabiam de nada. Foram então interrogados separadamente e questionados sobre detalhes como com quantas notas haviam comprado as pranchas. As versões eram completamente diferentes e ficou comprovado para os policiais o que já era óbvio para nós: tinham sido eles mesmos.

 

Eu estava eufórico e alegre e os ladrões simplesmente arrasados. Iam ficar ali mesmo, presos. Porém, antes de mudar de rumo e ir surfar, pedi para o policial tirar uma foto minha ao lado do ladrão. Click!

 

Estava registrado. Ainda falei pro maori: “Olha, nunca mais faça isso, cara. A gente colhe o que planta”. No mês que se seguiu, peguei várias ondas alucinantes, conheci bem as ilhas Sul e Norte, fui para Queenstown pular de bungee-jump e ainda passei dez dias em Raglan, pegando ondas de mais de dois metros. Olhei para o céu e agradeci a Deus, minha oração fora ouvida.

 

Esta história foi publicada inicialmente na revista Fluir e contada por mim, nestes anos, a muitos e muitos amigos. Fico feliz de dividir com os internautas do Waves mais essa aventura.

 

Grande abraço.