Surf sem barreiras

Negros, muçulmanos e aborígines

0

Jojó de Olivença, primeiro negro a conquistar o título brasileiro de surf profissional. Foto: Pedro Monteiro / Localshorts.com.br.

Estávamos no inverno de um ano que não lembro bem, de certo apenas na década de 80.

 

Fui a São Paulo pegar minhas novas pranchas; havia fechado um bom patrocínio com uma marca de pranchas chamada Surfari, de uma família de surfistas paulistas, que tinha como shaper o engenheiro Júlio Altemani.

 

As pranchas eram muito boas e os Altemani estavam querendo ampliar o seu mercado para o Rio e Bahia. Chegando a Sampa logo conheci o outro surfista contratado. Lembro bem, estava um frio de congelar os ossos com aquela típica garoa paulistana.

 

Eu era moleque, carioca da Zona Sul, que naquela época era o maior pólo lançador de surfistas de competição do Brasil, e achei tudo muito estranho.


Jojó foi o melhor negro do mundo em termos de resultados e expressão internacional. Foto: Ader Oliveira.

Senti-me chegando a um outro país, frio e sofisticado, mas a surpresa mesmo foi quando fui apresentado ao meu novo companheiro de equipe.

 

Tratava-se de um negro chamado Jocélio de Jesus, vindo de um lugar que eu nunca tinha ouvido falar. O cara estava de braços cruzados, de sandália, morrendo de frio.

 

Os Altemani perceberam que ele não tinha casaco, ou talvez ele nunca tenha tido um casaco, pois além de sua origem humilde, a região de Olivença, lugar de onde veio, jamais o cobrara um casaco.

 

Não era comum encontrar bons surfistas negros naquela época no Rio. O Gironso era muito bom, mas era mulato, não era negro como Jocélio.

 

Tinha alguns no Arpoador que vinham do Cantagalo, mas talvez não a ponto de serem contratados para competir por uma marca paulista.

 

Não que não fossem bons. Na verdade eram acomodados, dificilmente saiam do Rio. Em seguida tive oportunidade de conhecer meu companheiro de equipe surfando em Ubatuba e em várias outras praias, sempre competindo muito bem.

 

Aliás, o cara era iluminado. Nunca caía da prancha. Era muito religioso e parecia que sua fé movia as melhores montanhas para debaixo de seus pés. Quem competiu contra ele sabe do que estou falando.

 

Fora d´água ficava pregando seu evangelho de forma implacável e quando ia para água o seu Deus retribuía com muita gratidão, para o nosso desespero.

 

Tive a oportunidade de ser, se não me engano em 1988, crucificado pela sua fé. Foi durante uma bateria das quartas-de-final do Town e Country Surf Pro em Saquarema. Se ele me vencesse se consagraria campeão brasileiro profissional.

 

Com sua calma habitual foi logo presenteado com uma direita perfeita e ganhou a bateria. Era então campeão brasileiro. Pela primeira vez na história do surfe tínhamos um negro campeão brasileiro de surfe profissional.

 

Ora, pensando bem, foi uma grande vitória para todos nós, afinal esporte no Brasil que não tem um negro campeão não deveria ser considerado esporte. Era mais um sintoma que o nosso surfe estava se popularizando.

 

Apesar de ter perdido aquele campeonato sempre lutei por isso, embora isso sempre irritou muita gente, principalmente alguns críticos que não conhecem nada da história do surfe brasileiro e ficam hoje irritados com os brasileiros no WCT.

 

Voltando para o Jojó, seus feitos não ficaram por ai. E por falar em WCT, foi lá que ele foi parar, sem muita dificuldade, da mesma forma que ganhou seu primeiro casaco em São Paulo. Por ali ficou alguns anos, fez do WCT a sua Bahia.

 

Tornou-se o melhor surfista negro do mundo de todos os tempos em termos de resultado e expressão internacional. Não conheci nenhum grande surfista negro na Califórnia ou Virginia Beach. Por que eles não têm surfistas negros? Por que ninguém nunca falou sobre isso no Brasil ou no mundo, com tantos críticos e entendidos de surfe?

 

Será que é porque isso não vende camiseta de marca gringa? Ou talvez não seja cool ou soul? Pois então, repetindo, o Jojó de Olivença é o melhor surfista negro do mundo de todos os tempos em termos de resultado e expressão internacional.

 

Por incrível que pareça, esse é um grande segredo que o cara que perdeu aquela bateria vem contar para vocês, depois de quase 20 anos. Já imaginaram isso em outros esportes? Já imaginaram o basquete sem o Michael Jordan e o futebol sem o Pelé? E o surfe, como ficaria sem o mágico Tinguinha?

 

Nós, brasileiros, podemos ter um futuro brilhante, pois não excluímos possíveis Michael Jordans, Pelés e Tinguinhas de tentarem uma carreira no WCT.

 

Aliás, agora nós temos também o melhor surfista muçulmano do mundo da história do surfe e, quem sabe um dia, nós não venhamos a ter também o melhor surfista aborígine do mundo.

 

Pois é, aqui no Brasil talvez eles tivessem mais chance nas mãos de pessoas, como um Otoney Xavier (técnico da equipe brasileira) por exemplo, que, aceitando e trabalhando tais diferenças em silêncio, vão fazer do Brasil, em alguns anos, a maior potência do surfe mundial.