Tomei uma garrafa de vinho, comi mais do que devia, falei compulsivamente com todos à minha volta. Sentei em frente à tela branca do computador.
Kelly Slater conquista o histórico, mágico e inigualável décimo título mundial dias depois de seu único algoz da vida morrer estupidamente num quarto de hotel. Tudo numa semana só, com uma intensidade difícil de ser processada. Só o tempo e o vinho ajudam nessas horas.
O caminho até o título teve uma passagem tortuosa, sobretudo para quem assistia do Brasil. O evento estava no round 4, e Adriano Mineiro vencia com folga Kelly e Jeremy Flores. Numa disputa de ondas normal em competições, o brasileiro acabou impedindo a passagem do americano, e os juízes sapecaram-lhe uma interferência. Até aí, nada. Kelly sabia que, ao submeter Mineiro a uma interferência, avançaria.
Mas, ao sair da água, o americano esquentou nossos ouvidos ao fazer declarações duras e grosseiras contra Mineiro.
Desta vez, não havia tempo para polêmicas. Nas quartas, Kelly encontrou novamente o brasileiro. Pressionado pela culpa que lhe foi injustamente imposta na última bateria, Mineiro deixou seu algoz passear pelo line-up e escolher as melhores ondas nos cinco primeiros minutos de bateria. Deixar o quase Deus solto na água é o mesmo que ficar em combinação. Kelly, a despeito da ajuda, surfou de forma mágica na bateria. Fez um 9 e um 9 e alto consecutivos, com tubos limpos e plásticos. Ainda descartou notas superiores a 8.
Mineiro talvez tenha feito bem em aliviar uma onda para o americano na bateria que definiria o título mundial. Aquele era o momento de Kelly. Insistir em barrá-lo irritaria todo mundo em Middles, do garoto fissurado de Porto Rico aos juízes. E, ao aliviar sua competitividade, o brasileiro acabou neutralizando o incidente, e ouviu de um já coroado decacampeão mundial elogios à sua competitividade. Kelly disse que Adriano tem o espírito guerreiro de Andy Irons.
Ao toque da sirene, Kelly se transformou no único atleta contemporâneo entre todos os esportes a ter na bagagem dez títulos mundiais. E, como já era esperado, lembrou de quem devia no discurso do título. Chorando copiosamente, disse que não estaria ali não fosse Andy e dedicou a conquista mais importante de sua vida à família Irons. Um decacampeonato é muita coisa. Ele não é mais o Pelé do surf. Já passou da hora de mudar o ponto de referência: o Pelé é que foi quase um Kelly Slater.
A diferença entre os dois – como já dito em outra coluna – está na evolução do esporte. O americano foi exposto a praticamente todas as variações do surf e, camaleão, resistiu a todas. Pelé manteve-se no topo num esporte com menos mudanças estruturais. Não teve que aprender a dar alley-oop no quarto final de sua carreira.
O décimo título, é claro, levanta a dúvida: a carreira do quase Deus Kelly terá um fim? No sábado, ele nos deu a impressão de que, do alto de seus 38 anos, poderia seguir por anos a fio sem qualquer prejuízo à sua performance. Mas, se eu tivesse que fazer uma aposta, diria que ele para no fim do ano. Não por cansaço ou deficiência técnica, mas por estratégia.
A última de suas vitórias carrega todos os símbolos de sua carreira. Ele conquistou o cabalístico décimo título no redondo 2010. Finalmente encheu as duas mãos. Está confortável no recorde de canecos levantados na elite da ASP: são 45 vitórias. Seu grande rival já não está entre nós. Ainda que tenha sido sempre capaz de se atualizar diante das novas fronteiras do esporte – e até de estar sempre à frente deles – Kelly sabe que a roda não para de girar.
E acompanhá-la requer um esforço físico e mental fenomenal. Foi o que ele fez por todos esses anos.
Há uns três anos, o jornalista Jordan Tappis, da extinta revista inglesa Adrenalin, perguntou como ele descreveria a si mesmo se fosse um psicanalista. Kelly não hesitou: “Transtorno obsessivo compulsivo misturado com um pequeno transtorno de personalidade limítrofe quando se refere às coisas que amo”. Ninguém disse que é fácil ser Kelly Slater.
Fez todo o sentido do mundo ver sangue nos olhos de Slater mesmo depois de vencer o décimo título mundial. Se ele realmente encerrar a carreira em dezembro, obsessivo como só, vai querer sugar todo o doce suco da glória que restar até o fim da temporada 2010.
Em Porto Rico, tirou o doce da boca de Taj Burrow na semifinal competindo como se aquilo valesse a vida. Taj perdeu a linha com mais uma derrota: saiu da água furioso, socando a prancha. Na final, mostrou ao mundo a diferença entre o bom surf nota 7.50 de Bede Durbidge e a sua performance outstanding, nota 10.
Caso prevaleça a lógica da aposentadoria, ele deve chegar à Pipeline mais obcecado que nunca com o título da etapa. Vai querer homenagear com uma vitória histórica o velho rival Andy, que o massacrou naquela bancada um par de vezes. Torço para que o irmão genial e caótico de Andy, Bruce, esteja pensando o mesmo. Seria fantástico ver Kelly contra um Irons talentoso pela última vez.
Mas seja lá o que o americano escolher para o futuro próximo, já terá deixado o seu legado. Mais que isso: será um surfista perene, no segundo significado do Aurélio: “que não acaba; perpétuo, imperecível, imperecedouro, eterno”.
Vai permanecer no surf de cada um de nós e em todas as ondas para sempre.
Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.