Lembro com uma riqueza cruel a minha fúria contida de moleque de 14 anos, em pleno Pontão do Leblon, quando disputei a primeira onda com um pranchão. Eu via o cara, um sujeito bem mais velho e mais antigo no pico, surfar uma onda boa, voltar remando para o outside e se posicionar distante de mim, sem que eu pudesse dizer que ele me fazia a boia.
Aí, vinha outra série e ele entrava lá atrás, numa parte da onda absolutamente fora do alcance de um adolescente magricelo a bordo de um foguete 5´8” borda fina da Power Tools.
Naquele dia, só consegui surfar de verdade depois de bater um papo na boa com o cara. O argumento dele até tinha lógica, mas cheirava a sofisma: “Longboard é mais antigo que a pranchinha e, portanto, tem prioridade”. Perguntei se, cinco anos antes, ele surfava de pranchão. Ele riu, e me deixou surfar em paz.
Desde então, comecei a pensar num código imaginário de conduta dentro da água, mesmo sabendo que era absolutamente impraticável na selvageria reinante nos line-ups.
O tempo passou e novas pranchas surgiram para infestar o pico. A polêmica voltou com mais força quando inventaram o tow in. A velha carência de bom senso da minoria fez com que algumas duplas resolvessem dividir ondas nem tão grandes assim com surfistas de remada.
Em praias do litoral de São Paulo, estado com maior poder aquisitivo e, portanto, com mais motos aquáticas na água, houve atritos sérios e campanhas abertas contra a modalidade.
Alguns picos notadamente adequados ao jet-ski, como Mavericks e Jaws, perderam espaço para o surfe de remada. Em Mavericks, hoje, a moto aquática tem função prioritária de resgate.
Em Jaws, na última temporada havaiana, Danilo Couto mostrou ser possível surfar no braço em ondas de 60 pés. Com a novidade, o crowd na remada tende a engrossar no próximo inverno, deixando o caminho curto para os jets.
Alguns anos atrás, surgiu o Stand Up Paddle (SUP). Lembro de um amigo, editor de Arte do Globo, praguejando contra mais um concorrente no line-up, logo depois que fiz matéria sobre a novidade para o jornal.
O SUP, é verdade, não tem as restrições impostas a um esporte que usa motor (tow-in) e, ao mesmo tempo, conta com a propulsão luxuosa de um remo. Um bom praticante de SUP deixa qualquer pranchão para trás.
O receio do meu amigo, entre outras coisas, era tomar um SUP na cabeça, por irresponsabilidade de um praticante com pouca técnica. E – os próprios atletas de stand up reconhecem – o risco realmente existe.
Curiosa foi a guerra velada entre o SUP e o pranchão na praia da Macumba, principal reduto dos longboarders do Rio. Como a onda lá é cheia, o surfistas de pranchão, em geral, sempre tiveram vantagem em relação às mini-models.
Com a chegada do SUP, o cenário mudou: as pranchas a remo esperam as ondas mais no outside que todos os outros surfistas. Os pranchões, que tinham poder de remada sobre as pranchinhas, agora sofrem com SUPs.
A resposta passa exatamente pelo uso do poder. Numa sociedade organizada, o poder é regulado pela cultura ou pela lei. No trânsito de Paris, por exemplo, a bicicleta tem realmente prioridade sobre os ônibus.
Se um motorista atropela um ciclista, está frito. Ele deve saber que, por estar sobre um veículo muito maior, deve respeitar o menor. O mar não precisaria chegar a esse extremo: bastava que as pessoas fossem rigorosas no respeito à prioridade no pico. Todo mundo sabe como respeitar, mas pouca gente respeita.
Num ambiente em que muitas vezes impera um localismo tribal, que expulsa surfistas da água, bate em quem contesta o sistema e arranha os carros de forasteiros, um código de conduta e ética tão sofisticado é, no mínimo, uma piada.
A questão é que, com o desenvolvimento dos esportes de prancha, estamos chegando a uma encruzilhada. Ou o line-up se organiza e se respeita, ou rapidamente entrará em colapso. Se nada for feito, a melhor diversão já inventada pelo homem tende a se tornar apenas estressante e sujeita a acidentes diários, sem qualquer prazer.
Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.