O historiador Sérgio Buarque de Hollanda certa vez definiu o brasileiro como um homem cordial, que pensa a partir da afetividade, não se preocupa com questões raciais e tem uma queda irresistível pela aventura. Heitor Alves é um homem cordial.
Sua personalidade gentil e olhar sem preconceito transparecem nas entrevistas que concede à ASP. No microfone oficial, ele preferiu não expor os jornalistas da entidade ao constrangimento: não comentou, ao vivo, as injustificadas notas baixas que recebeu.
Vi aqui e ali algumas interpretações para a bigorna que afunda o julgamento de Heitor. Uma delas falava que seus arcos de frontside eram interrompidos no meio, em duas
etapas, e, por isso, não estavam fluídos. Outra dizia que o problema era a prancha, muito larga.
Discordo de todos. Para mim, Heitor Alves apresenta, nesta temporada, uma das melhores performances já vistas por um goofy brasileiro da era pré-Medina e Pupo. Foi mal julgado em algumas ondas de Jeffrey´s Bay, onde apresentou um belo backside.
Foi novamente mal julgado em Trestles, embora tenha perdido justamente. Não alcançaria Kelly Slater naquela semifinal mesmo com notas precisas, mas o julgamento achatado deixou o americano em posição confortável para apresentar todo o seu repertório.
Heitor garantiu, com um discurso humilde, a simpatia dos jornalistas e comentaristas em Trestles. Num primeiro momento, temi pelo surfista, já que a cultura dominante da ASP, de americanos e australianos, adora ver surfistas de países sem tradição em posição de reverência e respeito. Assim, fica mais fácil de manter o controle.
Quando perdeu, subiu para conversar com os juízes. Sem tom de cobrança, perguntou o que ele deveria fazer para que suas ondas fossem mais valorizadas. Os juízes gostaram da postura do brasileiro e lhe deram mais explicações que dariam a quem chegasse com raiva.
Isso me fez pensar que talvez Heitor pudesse estar no caminho do bom malandro. É o cara que vai chegando, devagarzinho, com muito respeito, sem gerar atrito com ninguém e, quando todos menos esperam, ele está lá, no alto do pódio. Se for isso, é coisa de gênio.
Deve ser, até porque Heitor já tem bagagem suficiente para saber que ali, naquele circo, ninguém é melhor que ninguém como ser humano. E, quem está na luta, terá sempre o direito – e o dever – de brigar até o fim para destronar os campeões.
Do seu jeito, Heitor ficou em quinto na etapa de Nova York e terceiro em Trestles. Se o circuito tivesse começado agora, estaria atrás apenas de Slater e Owen Wright. Nas quartas-de-final, o surfista cordial venceu o amigo Adriano de Souza por uma minúscula margem.
Adriano vinha surfando muito bem, mas perdeu pela terceira vez seguida para um compatriota. Falta de sorte. Adriano faz um perfil distinto de Heitor: é brigador, mas joga dentro das regras, embora os mesmos atores que elogiam Heitor queiram lhe imputar injustamente a fama de Dick Vigarista.
O top 4 fez muito bem ao se posicionar para Kelly Slater logo depois de sofrer com a marcação sob pressão do australiano Taj Burrow, dono de notória fama de bonzinho. Bradou como se quisesse fazer justiça, depois de ser insultado pelo americano, ano passado, em Porto Rico.
Vigarice por vigarice, o que dizer de Joel Parkinson, que enganou Julian Wilson no round 4, foi premiado pelos juízes com uma nota alta que o empurrou sem escalas para as quartas-de-final e, quando chegou lá, encontrou um enfurecido Julian de novo?
Foi justamente atropelado.
Trestles parece afeita aos arcos de Slater. O americano, em forma esplêndida, virou mais rápido e mais forte nas ondas californianas. Owen Wright é o adversário perfeito para o dez vezes campeão: não entra em seus joguinhos, costuma ser mortal na reação e domina o repertório necessário para alcançar pontuações vencedoras. Se a final tivesse mais cinco minutos, os dois provavelmente se alternariam na liderança até tocar a sirene.
Owen cada vez mais se consolida como único jovem surfista do mundo em condições de tirar o 11º doce da boca de um senhor de quase 40 anos.
Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.