Desde o primeiro dia em que decidi surfar a pororoca, criei uma relação inexplicável com a lua e até sonhava com ela. Passei a acompanhar hipnotizado o seu ciclo diariamente.
As ondas fluviais estão totalmente relacionadas à variação entre as luas cheia e nova. Outro fator importante é o equinócio, momento em que a órbita da lua se aproxima da Terra e aumenta a influência de um astro sobre o outro.
Com essa combinação de fatores lunáticos, a maré invade a foz de alguns poucos rios no mundo e traz a força suficiente para produzir as conhecidas ondas intermináveis.
Num primeiro momento, programei a trip para a lua nova do último carnaval, mas vários imprevistos rolaram e tive de remarcar para a lua cheia seguinte em março.
Por um azar do destino, no feriado do carnaval uma moto me atropelou no acostamento e colocou novamente em xeque a viagem. Eu já tinha pagado metade trip e fiquei realmente abalado com o risco de adiar novamente.
Apesar de a radiografia não acusar fratura, o pé ficou inchado por vários dias, e só na última semana antes da lua cheia, as coisas começaram a melhorar. A cada dia eu recuperava os movimentos do pé.
Gozado como quando nos voltamos com intensidade para um objetivo, o universo inteiro conspira a favor. Pouco antes de embarcar, entrei no elevador de um prédio corporativo na Avenida Paulista, São Paulo (SP), e um desconhecido puxou papo de elevador.
Eu esperava ouvir algo como: “Que demora”, mas ao invés disso o rapaz me perguntou: “Você viu a lua?”
Tudo certo para viajar. Tomei um avião para São Luís (MA), e fui recebido no aeroporto pelo meu guia Jerônimo Júnior Minhoca, vice-presidente da Abraspo (Associação Brasileira de Surf na Pororoca).
Quando chegamos à cidade onde passa o rio da pororoca nordestina, o piloto da lancha ainda não tinha chegado. Minhoca conhece muito bem a onda, mas não sabe pilotar o barco. Peguei no sono pesado antes das dez da noite e acordei às cinco da manhã, depois de sonhar que o piloto tinha dado o cano.
A primeira pergunta que fiz ao acordar foi se o motorista tinha chegado. Nisso, o surfista local Vinícius Cabocão acordou também e me deu um esculacho. Ele ligou a minha pergunta ao padrão de paulistano estressado que nunca desliga, e soltou: “Relaxa paulista! Você está na Amazônia!”.
Para os geógrafos, o rio Mearim é considerado pré-amazônico, mas a legislação ambiental classifica a região como Amazônia legal. Fosse ou não na Amazônia, a sensação era a de estar na maior floresta do país.
Felizmente, o piloto chegou aos 45 segundo tempo e ainda era gente boníssima. Tinha a batata da perna talhada por um jacaré, que o atacou enquanto pescava em um rio da região.
Apelidado de Sunny Garcia, o motorista falou para eu ficar tranquilo, pois os jacarés não aparecem quando a pororoca chega.
Apesar de até fazer sentido, não engoli totalmente a teoria. Entre as fotos que o Minhoca me mostrou, tinha uma com um bodyboarder sendo rabeado por um réptil de cabeça erguida. Claro que isso não era um pretexto para amarelar em cima da hora.
Já a caminho das ondas, vimos que o volume de água estava inferior ao esperado para março. Bancadas secas de areia brotavam onde normalmente a onda entra com tudo. Por conta disso, o piloto Marcony decidiu não ir até a primeira bancada, apelidada pelos locais de Paredão da Morte.
Esse lugar fica bem perto do mar e é a porta de entrada da ondulação. O local recebe a maior e mais forte onda do rio, mas a lancha teria que passar por um trecho com águas rasas demais, que não permitiriam a navegação.
Atracamos em uma margem onde havia uma planície com vista privilegiada para o Paredão da Morte. Chegamos meia hora antes da onda entrar e ficamos ali. Todos estavam adrenalizados à espera do barulho ou da visão da espuma.
Quando entrou, vimos claramente a espuma pequenina marchando em nossa direção. Não tenho ideia da distância, mas certamente alguns quilômetros.
Voltamos ao barco e nos preparamos para surfar. Ver a onda de frente pela primeira vez, quebrando a poucos metros do barco, em meio aquele barulho todo da lancha voadeira, gera uma sensação indescritível e bem diferente de tudo que já vi no mar.
De uma hora pra outra, a aparentemente inofensiva ondinha empareda, e aí tem que pular na espuma e remar com força para a onda não passar e você fica para trás.
A primeira onda veio com um tubo perfeito perto da margem. Todo mundo gritava para o piloto ir lá, mas definitivamente ele não precisava de orientações e parecia mais focado que nós.
Fui o primeiro a pular da lancha. O tubo já quebrava quase nas minhas costas quando percebi que se não remasse mais forte, não conseguiria entrar. A densidade da água doce é bem menor, então você flutua menos.
Felizmente, a estratégia da remada reforçada funcionou e consegui entrar no trilho. A parede estava linda, uma pintura convidativa para manobras. Segui o conselho dos mais experientes e fui conservador na onda.
A sensação de surfar uma onda que espuma arrasta na margem de um rio, já fazia valer mais do que qualquer manobra bem executada. Ninguém mais surfou aquela onda, o que também é raro em uma pororoca.
Ela também não durou uma eternidade, apenas um pouco mais do que uma onda de mar, mas já fez valer cada centavo e energia investidos para estar naquela manhã de lua cheia no rio Mearim.
Logo que acabou a onda, o susto. As marolas que passam atrás se unem ao fluxo da correnteza e começam a jogar você para a margem. Os animais não são o principal risco de surfar a pororoca, e sim essas marolas.
Você pode ser arremessado e facilmente quebrar a perna. Graças às orientações do Minhoca de e remar para o meio do rio quando a onda acabar, livrei-me de algumas roubadas e o piloto me resgatou rápido.
Embora quebrem várias ondas, a única longa é a primeira. Ela reforma em outras bancadas e a energia só acaba depois de duas horas ou mais.
Mais à frente, na bancada do Aranha, uma espuma de meio metro rendeu três divertidos minutos de surf com direito a uma parede para a direita e outra para a esquerda no final.
Surfar essa onda foi muito bacana, não por ser a mais longa da minha vida, mas por dividir com mais oito surfistas. Quando a onda termina, todos estão tão empolgados que gritam como se fossem crianças.
Outra onda quebrou de gala, bem colada à margem, igual a minha primeira. Desta vez, ficamos de espectadores. Quem curtiu a onda foi uma comunidade de ribeirinhos, que a aguardava ansiosamente.
Quando a direita passou, a pequena multidão aglomerada no topo da margem gritou toda empolgada, como se fosse um gol. Meia dúzia de nativos se jogaram no rio.
Incrível ver a cena do nosso barco-camarote. Alguns pularam com tocos velhos, outros foram na base do bom e velho jacaré, mas só um conseguiu pegar a parede da onda.
O nativo usava uma prancha amarelada de sol e foi o tempo todo deitado. O caboclo não precisou fretar barco, não gastou dinheiro e mesmo não tendo surfado as outras seis ou sete ondas que surfamos, parecia o mais feliz do dia.
Depois de o fenômeno passar, nos reunimos em um botequim às margens do rio para confraternizar. Cervejas geladas, banhos de rio, histórias e muitas risadas.
Depois, ainda acompanhei o Minhoca até a casa do prefeito de Arari (MA), Leão Santos, com quem tomamos um café e puxamos uma prosa sobre crescimento sustentável de Arari através do surf na pororoca.
Na manhã seguinte, a mesma movimentação rumo às ondas, desta vez um pouco mais tarde. A pororoca é um relógio que acompanha as variações diárias da maré.
A cada dia que passa, as duas ondas, sempre uma de manhã e outra de noite, entram um pouco mais tarde. Nesse dia, o piloto Marconi propôs inovar quando já estávamos a caminho da foz.
Sugeriu nossa passagem ao Paredão da Morte. Se não acharmos o caminho fundo, havia o risco de atolar ou de entrar lama no motor. Por outro lado, estava em jogo também a possibilidade de pegar a melhor onda do pico.
Nós, surfistas, ficamos sem resposta. Ninguém queria assumir publicamente o risco, embora acredite que todos pensavam a mesma coisa: quem não arrisca não petisca.
Coube ao nosso piloto casca-grossa tomar a atitude de navegar bem devagar para achar os caminhos mais fundos. No meio do nada, um pescador recolhia sua canoa de madeira antes da passagem da pororoca. O piloto Marcony não teve dúvidas. Acelerou o motor na direção dele e perguntou se dava para passar.
O pescador respondeu rapidamente que não, pois estava tudo seco. Mas o cara não estava para brincadeiras e não se deu por satisfeito. Desligou o motor e mandou todo mundo sair do barco para empurrá-lo na fina camada de água em cima do banco de terra.
Era uma corrida contra o tempo. Sem o barulho do motor, já se ouvia perfeitamente o barulho da onda a caminho. Empurramos e quanto ela se tornou visível, todos se esforçaram muito para chegar logo à parte funda do rio e evitar dois grandes problemas: sermos atingidos pela onda e perdê-la.
Todos pularam para dentro da lancha e mal o piloto acelerou, já estávamos cara a cara com a onda. Completamente diferente de tudo o que tínhamos visto até então. Uma esquerda de um metro e meio perfeita, como aquelas que desenhávamos nos cadernos do colégio.
Pulei no ponto certo, mas até agora não consigo entender o que houve. A espuma me engoliu e a prancha não entrou na onda. Revendo o vídeo do momento, não me conformo com o que aconteceu.
A pororoca não permite vacilos. Perdeu a bancada, já era. Só dará para surfar nas outras ondas mais à frente. Minhoca, o guia, foi o terceiro e último a tentar o Paredão da Morte. Com sua experiência de mais de 10 anos na onda, simplesmente sumiu de vista.
Na foz do rio, a natureza é mais ampla e assustadora. Dizem que em setembro, no auge da seca, a água salgada predomina e os tubarões cabeça-chata infestam o local, rico em matéria orgânica e perfeito para abrigar os berçários da espécie.
Graças a Deus não demorou para eu ser resgatado ali, mas a tensão bateu novamente quando fomos procurar o Minhoca, o único que conseguiu pegar a onda.
Vimos um tronco boiando na boca do rio Pindaré e tentamos ir até lá. Estava muito raso e voadeira atolou. Para piorar, o motor começou a pipocar até parar de funcionar. A tensão chegou ao máximo quando o experiente piloto disse que nunca tinha passado por algo semelhante.
Felizmente o motor voltou a funcionar em alguns minutos e a voadeira desencalhou. Logo depois vimos a cabeçinha de Minhoca lá longe, na direção do rio Mearim.
Resgatamos eles e alcançamos a pororoca para surfá-la nas outras bancadas. Depois disso, o resto já não parecia mais aventura. Novamente as marolas perfeitas fizeram a alegria de todos na parte estreita do rio. Numa das últimas ondas, a minha quilha travou numa colônia de uma planta aquática chamada Mururus e tomei um baita tombo.
Assim chegamos ao fim de dois dias que pareceram um ano. Hora de deixar a selva amazônica e voltar para outra selva de pedras chamada São Paulo.
Auera Auara!