O campeonato em Bells Beach, na Austrália, é talvez o segundo evento de surf mais importante do mundo – e certamente o mais tradicional – depois do Pipe Masters.
A comoção via redes sociais causada pela vitória de Adriano de Souza e o desempenho acachapante de quase todo o time brasileiro na disputa deste ano, repercutiram no tom da significativa alegria gerada em quem, de alguma forma, acompanha o surf profissional brasileiro.
E foi tomado por essa alegria que me animei a conectar algumas linhas sobre este evento, depois de sei lá quanto tempo sem publicar alguma coisa sobre competições de surf.
Porque de vez em quando uma competição de surf é assim? Capaz de proporcionar uma vasta gama de emoções obrigatórias numa boa sessão de entretenimento – como poucas atrações veiculadas na internet são capazes de fazer.
Tudo começou morno nas marolas geladas de Bells e acompanhei o evento com o mesmo interesse do surf reporter Máurio Borges, que postou com sua franqueza habitual: “Não tenho mais saco para assistir aos eventos da ASP na net. Locuções chatas, tanto na Gold como agora em Bells. Essa fórmula de competição está desgastada faz horas. Agora vejo somente os melhores momentos e olhe lá. Já se foi o tempo de querer ficar por dentro de tudo…”.
Naquela hora meus dedos instintivamente quiseram apertar o famigerado botão “curtir” para o comentário.
Mas, nada como um dia depois do outro, ou melhor, dois dias após o outro. Os dois dias finais do evento em Bells foram divertidos de assistir e me fizeram lembrar de premissas óbvias: não basta ter alguns dos melhores surfistas do mundo se as ondas estão medíocres.
Campeonato de surf tem que ter ondas boas e ponto final. E ter muito mais rasgadas agressivas na parede do que piruetas aéreas em junções deformadas. Isto aconteceu em Bells. Um campeonato cheio de emoções e drama.
Ao ligar o webcast, as longas séries de direita marchando em Bells capturaram o meu olhar em algum momento entre o segundo e o terceiros rounds.
Das primeiras rasgadas, lembro que para o Alejo Muniz faltou uma segunda onda para ter chances de virar a bateria. Eis que surge o ápice da emoção, o chamado “momentum” que os gringos tanto falam. Uma vibração crescente que foi se construindo ao longo da baterias.
Nas rasgadas de Willian Cardoso e Raoni Monteiro, que atropelaram os dois primeiros colocados no ranking mundial, tive a confirmação de que esta manobra desperta no surfista que assiste o impulso de urrar o som do movimento no momento em que ele é executado.
Uma descarga de adrenalina pura, que ouso chamar de “a essência do surf”. Infelizmente meu vocabulário literal não me permite descrever este som com alguma precisão, mas você leitor sabe do que estou falando.
Mas voltando ao aspecto mundano da disputa, o tal do Slater não estava nos seus melhores dias na bateria com Willian.
O mesmo Willian que me deixou chateado meses atrás ao assistir a sua eliminação ao vivo em Sunset – uma onda onde ele tem tudo para se destacar, quando perdeu a bateria e a chance de classificação direta para o WCT, surfando sem convicção numa prancha que parecia grande demais para a ocasião.
Já no caso de Raoni, que veio na sequência, o camarada Parko estava surfando no topo das suas forças, numa onda feita sob medida para quem surfa com graça e estilo, como dizem. Mas daí voltamos para os momentos em que a vontade de vencer se realiza por meio da única forma de agressão sadia que existe.
As surras na parede de Bells são tão empolgantes como um gol, um nocaute ou qualquer entretenimento visual que o valha. Raoni venceu por uma margem mínima de vontade e água jogada para o alto, num duelo com médias superiores a 19 pontos.
Foi um prenúncio do que estava por vir. E aqui chegamos a Adriano de Souza, o mais obstinado de todos os obstinados surfistas brasileiros.
Lembro que ouvindo a sempre temerária transmissão dos gringos, eles comentavam a vitória de Adriano no round 3, citando que ele “estava com um patrocínio novo, uma tal de “Peña” (e não Pena) que “alguém tinha falado que era um time de futebol no Brasil, ou algo assim”.
Sim, esta confusão com o apoio que ele tem do Corinthians foi um dos muitos momentos de humor involuntário durante a transmissão.
De nada adiantaria explicar que a Pena é uma marca de surf brasileira do Nordeste. Que é a única empresa nacional do segmento que decidiu apostar suas fichas e bancar o patrocínio do surfista brasileiro profissional mais bem ranqueado há anos.
OK, ele poderia ser um bad boy e não gerar retorno positivo de imagem – diria alguém do marketing. Mas, quem conhece sua trajetória sabe que a determinação e a disciplina são seus principais atributos.
No ultimo mês de dezembro, peguei o mesmo voo com Adriano do Hawaii até Floripa. Ele voltava de uma temporada curta e pouco produtiva nas ilhas, em meio à turbulência do estremecimento de sua relação com a Oakley e, vá lá, meio que ofuscado pelo sucesso de Gabriel Medina e com a chegada da novíssima geração representada por Filipe Toledo.
Já tinha o visto cabisbaixo em Oahu e, depois, com um ar de cansaço extremo durante as escalas da viagem. No desembarque em Floripa não resisti e o cumprimentei: “É bom voltar pra casa, não?”. Ele sorriu e seus olhos e palavras expressaram o desejo de descanso para recuperar as forças e voltar à luta no ano seguinte.
Eis que, depois de quatro meses, Adriano está lá tocando (e quebrando) o sino sagrado do surf com o seu largo sorriso característico. Na bagagem do surfista brasileiro profissional mais bem sucedido de todos os tempos, vitórias improváveis sobre prodígios do estilo como Kolohe Andino, o eterno ídolo local Mick Fanning e Jordy Smith, que, na minha visão, estava surfando com uma linha e fluidez superior a de Parkinson.
Mas, infelizmente para talentos natos como Jordy, nem só de estilo se ganha uma competição – aliás, acho que somente com estilo não se ganha quase nada de significativo nesta vida – e Adriano aplicou a sua obstinação ferina às táticas e, sobretudo, à preparação física e mental para o evento.
Assim, volto aos nossos famigerados locutores da transmissão em inglês, que resolveram começar a tecer elogios a Adriano quando os australianos já eram carta fora do baralho e o brasileiro chegava como favorito à bateria final contra Nat Young.
Eles falavam sobre Adriano ser um dos competidores mais dedicados, que treinou por mais tempo e com maior antecedência em Bells que os seus colegas do tour. De como ele adaptou o seu surf de curvas curtas para os grandes arcos do surf de linha em ondas volumosas como as de Bells. De como ele era humilde no respeito à história de Bells, no reconhecimento dos antigos ídolos do surf australiano e na vontade de aprender a dominar aquela onda difícil, lapidando suas manobras em muitas e muitas horas de surf no pico.
Sim, Adriano nunca será o mestre do estilo, nem o tube rider mais destemido, nem o power surfer que mais levanta água numa manobra, e nem tampouco o mestre de aéreos criativos adapatados das pistas de skate.
Sim, Adriano pode ser campeão mundial com base em sua consistência, da mesma forma que Parko – talvez o seu maior antagonista em termos de surfar bem sem fazer esforço – foi no ano passado.
E fará isso surfando quase tão bem quanto os seus melhores adversários em cada uma de suas especialidades. E, na maioria das vezes, em condições normais de temperatura, pressão e consistência das ondas, ele só será derrotado por quem conseguir igualar a sua determinação e vontade de vencer.
Isto tudo, somado à experiência adquirida ao longo de muitos anos surfando entre os melhores, o coloca no auge do seu jogo e o mais forte candidato do Brasil (ok, junto com o Medina que é capaz de tudo!) a tornar-se o primeiro brasileiro campeão do circuito mundial de surf.
Bem, mas certamente você já ouviu esse papo antes.
Então termino esta reflexão tentando me lembrar de algum outro esporte onde o martelado “complexo de vira-latas” do brasileiro seja mais invocado do que no mundo do surf. Em vão. E vejo que, para o bem e para o mal, o aspecto patriótico é o que se sobressai nas redes de opiniões fomentadas, tanto no Brasil quanto nas publicações estrangeiras que repercutiram os acontecimentos em Bells. Gosto de pensar que Adriano e seu patrocinador brasileiro estão pouco ligando pra isso.
No meu caso particular, o que fica depois de todas as baterias que assisti neste campeonato é a pura e simples vontade de ir pra água e sair rasgando tudo.
Nestas horas posso afirmar com convicção que o surf competitivo é sim um componente importante do prazer de deslizar nas ondas.
Luciano Burin é carioca, jornalista e escreve para o blog Surfecult.