A parada de Trestles de 2014 teve tantos elementos importantes que preferi descontruir a etapa num mosaico de informações distintas. Tivemos a primeira vitória em WCT de um surfista da nova geração na onda de San Clemente, uma enorme pressão sobre a liderança de Gabriel Medina, alguns erros de julgamento e um novo cenário para o fim da temporada.
Vamos às peças do quebra=cabeça.
1 – Jordy Smith, um surfista amado por combinar manobras contemporâneas com um vigoroso carving, venceu com justiça. Talvez o melhor surfista da etapa tenha sido John John Florence, que encaixou seu surfe veloz e inventivo nas bem pontuadas direitas, mas perdeu porque há coisas que só acontecem com JJ.
O havaiano merece uma deferência também porque, nas duas últimas etapas, foi o melhor surfista. A despeito da qualidade de seu surfe – ele era, de fato, o melhor na água em Trestles– o surfe de JJ parece ter, ainda, alguns vícios e limitações, como um arco falho de backside e movimentos que se apoiam excessivamente sobre o fundo da prancha, sem o recursos das bordas.
Os arcos de Jordy e de Adriano de Souza, por exemplo, são superiores aos de JJ.
O julgamento não tem observado essas lacunas e pontua as ondas do havaiano levemente acima do padrão. Ainda assim, todas as vitórias em baterias disputadas por ele foram merecidas.
É óbvio que ele não é o único a ter vícios e limitações – todos têm, com a diferença de que, na maior parte dos casos, perdem pontos por isso.
2 – As excelentes performances de Jordy e JJ jogam luz sobre a renovação dos campeões em Trestles. O julgamento da etapa do WCT, historicamente conhecido por premiar o surfe clássico de nomes como Kelly Slater, Mick Fanning, Joel Parkinson e Bede Durbidge, começa lentamente a se aproximar do Prime, onde os surfistas progressivos vêm dominando nos últimos anos.
Ainda há um caminho importante pela frente. Um dos critérios que talvez precise ser avaliado com mais calma é o da subvalorização das esquerdas.
Sabidamente, a melhor onda de Trestles – a que oferece mais recursos – é a direita, mas isso não pode ser uma questão dura, imutável. Vi muitas canhotas mal julgadas, em horários que as direitas não ofereciam nada além de uma parede tímida para uma sucessão de cutbacks. As esquerdas bem pontuadas normalmente vinham com manobras aéreas muito impactantes.
3 – Gabriel Medina perdeu de maneira absolutamente justa para Ace Buchan. O australiano fez dois bons resultados sucessivos nas arenas que ele mais domina – a esquerda tubular e a direita muito manobrável. Ace tem um dos melhores backsides do mundo – consegue ser polido, vertical e veloz. Só lhe falta um pouco de pressão, o que sobra em Medina. Mas o brasileiro optou pela esquerda, que, como já dito, sofre de um achatamento crônico de avaliação.
Medina jogou o tempo todo, desde o primeiro round, sob uma enorme pressão, e não conseguiu se conectar de maneira contínua às ondas de Trestles. Alternava apresentações sólidas com outras que não passavam do mediano. Ainda assim, para o cenário apresentado, fez um bom resultado, mostrando que é capaz, sim, de suportar o calor de ser o líder.
Na França, ele se sente em casa, e a massa que lota as areias, que também não tem origem saxã e jamais viu um local vencer no WCT, costuma apoiá-lo em suas investidas no surfe moderno. Há uma identificação óbvia. Podemos esperar, portanto, pelo menos na praia, um cenário mais amistoso para o brasileiro que lidera o ranking mundial.
4 – Trestles foi palco de uma das maiores pressões já sofridas por um líder de ranking mundial na história.
Parte da imprensa estrangeira – vale grifar o parte – fez uma campanha difamatória contra Gabriel, associando-0 a um surfista que não respeitaria os outros na água. Até mesmo a ASP andou escorregando em edições de transmissão online, comentários de narradores e em posts no Facebook, como o que pede que o leitor compare ondas nove e alto de Medina e de JJ. Detalhe: elas foram surfadas em baterias e condições de mar bem distintas.
O importante é não fazer nenhum juízo de valor sobre as reações. Medina, além da posição de líder e, portanto, de surfista a ser destronado, perseguido, representa a possível quebra do mais importante tabu da história da ASP: se conseguir se manter no topo, será o primeiro surfista de origem não saxã a conquistar o título mundial masculino.
É natural – e esperado – que haja resistência. Não faríamos diferente se fossemos nós os surfistas com reinado ameaçado. É do ser humano querer manter seus feudos intactos. A pressão, no entanto, é absolutamente externa ao julgamento. Ou seja, o título mundial continua dependendo exclusivamente das surpresas que Medina será capaz de apresentar até o fim do ano.
5 – O julgamento de Trestles ficou um pouco perdido na definição de critérios. Não havia, no entanto, nada direcionado contra Medina ou contra qualquer outro brasileiro. Tive a sensação de que o board de juízes discordaram em muitas ondas. Boto na conta desse momento de transição dos critérios em Trestles, em que as manobras progressivas ganham um peso que antes não tinham.
Em diversas baterias, as notas eram corrigidas e compensadas, mas em alguns momentos, de meu ponto de vista, deram a vitória ao surfista errado. No round 4, Joel Parkinson não virou a bateria sobre Taj Burrow. Na mesma fase, Miguel Pupo surfou mais que Medina, embora tenha perdido na soma. Já o costarriquenho Carlos Muñoz, a meu ver, não venceu o round 1. Seu surfe progressivo, embora seja vistoso em vídeos, ainda não tem a pressão nem o uso de borda exigidos para pontuar bem no WCT. No round 5, apesar do inacreditável vacilo de Taj, acho que Slater não virou, de fato, a bateria.
Isso acontece em todos os eventos. Erros são parte do jogo, para todos os lados. Está cada vez mais difícil julgar surfistas com equilíbrio técnico tão grande.
6 – Para encerrar o mosaico, um pouco de tudo. A pressão existe, tem muita gente desconfortável com a liderança de Medina e há um equilíbrio grande no tour. Nada disso, no fundo, é novidade: Medina terá que atropelar todos os obstáculos existentes e surfar muito se quiser ser campeão mundial.
Continua no caminho certo. Que venha a França.