Leitura de Onda

Blindem o garoto

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Gabriel Medina é uma máquina de vitórias, um competidor furioso, um talento descolado de sua geração. Basta reencontrar seus instintos vencedores, treinar muito e, claro, se vale uma pequena sugestão, ficar bem longe do oba-oba. Foto: Divulgação ASP.
 

A cena de Kelly Slater partindo brutalmente sua Channel Islands em três pedaços, em pleno palanque do Rip Curl Pro, logo após a derrota no terceiro round na etapa portuguesa, é reveladora da pressão que o americano vive, ainda que tente maquiar sua condição psicológica com sorrisos e as velhas frases leves.

Kelly desmente de certo modo sua consagrada imortalidade ao sucumbir de maneira tão descontrolada às intempéries da competição, mas não cabe culpá-lo. O melhor de todos os tempos montou uma equação de difícil (mas não impossível) solução: competir aos 42 + vencer garotos 20 anos mais jovens + ganhar o 12o título mundial para encerrar a carreira em paz.

A loucura é que, assim mesmo, ele conseguiu o que queria: levar a disputa do título para Pipeline, arena onde historicamente tem a maior vantagem técnica sobre quase todos os adversários. O único ao seu lado no reinado da onda mais emblemática do mundo é o havaiano John John Florence, fora do páreo.

Sim, não duvidem, Kelly está vivo na disputa pelo título. A combinação de resultados não é muito provável, mas ele sabe como pressionar oponentes com performances arrebatadoras na bancada de Pipe. Vencer é o óbvio ali. 

A cena de Gabriel Medina abandonando a bateria antes da hora, com a certeza de ter garantido a nota ao surfar uma onda intermediária num mar com critérios de julgamento randômicos, é igualmente reveladora da enorme panela de pressão em que foi lançado o garoto brasileiro. Quem lembra suas jogadas táticas geniais em outras etapas do ano estranhou o comportamento.

Medina tem sido assediado e celebrado como nunca. Tapinhas nas costas, campanhas de apoio, entrevistas para as principais emissoras do país, instagram com craques do futebol, celebridades declarando apoio público, cobertura generosa da mídia impressa. Virou um ídolo nacional.

Na segunda, Galvão Bueno, em seu programa semanal no Sportv, disse, no ar, que um amigo já teria feito uma música para celebrar o título certo do surfista.

“Vai ser no Havaí”, vaticinou o apresentador.

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A cena de Kelly Slater partindo brutalmente sua Channel Islands em três pedaços, em pleno palanque do Rip Curl Pro, logo após a derrota no terceiro round na etapa portuguesa, é reveladora da pressão que o americano vive, ainda que tente maquiar sua condição psicológica com sorrisos e as velhas frases leves. Foto: Bruno Lemos / Liquid Eye
 

Nenhum desses movimentos – seja o dos repórteres, das celebridades ou de Galvão, pode ser condenado. Parece claro que vivemos, de fato, um ano histórico no surfe brasileiro. O que Gabriel fez até aqui, não importa o resultado, não tem precedentes. Mas parece igualmente claro que faltou uma blindagem, vital a um garoto de 20 anos que foi repentinamente exposto à expectativa de um país inteiro, e que anteontem só era reconhecido por loucos aficionados em surfe.

Lembrei inevitavelmente a Seleção de 50, diante do primeiro título, com a concentração na véspera da final invadida por políticos, imprensa e palpiteiros. Sorte nossa, e de um país inteiro, que as fantásticas vitórias de Medina ao longo do ano lhe deram crédito, o benefício do erro. No futebol, a segunda chance veio apenas oito anos depois.

Mesmo com o inesperado resultado em Portugal, Medina está mais vivo do que nunca na disputa pelo título mundial. Não serei eu o louco a ensinar o que ele e sua equipe têm que fazer para chegar lá. Eles sabem.

Charles, o padrasto, tem sido um craque na preparação técnica e psicológica. Não há outro treinador capaz de deixar garoto tão comprometido e afiado. Digam o que quiser: Charles tem sido fundamental na campanha histórica de 2014.

Medina é uma máquina de vitórias, um competidor furioso, um talento descolado de sua geração. Basta reencontrar seus instintos vencedores, treinar muito e, claro, se vale uma pequena sugestão, ficar bem longe do oba-oba.

Diante da assustadora imagem de Kelly Slater e Gabriel Medina afundados na panela de pressão, o velho surfista de gelo Mick Fanning acordou de sua hibernação. Ele costurou sua vitória com apresentações ora consistentes ora apenas suficientes. Jogou o jogo.

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Diante da assustadora imagem de Kelly Slater e Gabriel Medina afundados na panela de pressão, o velho surfista de gelo Mick Fanning acordou de sua hibernação. Foto: David Nagamini
 

Fanning surfa muito. E não erra. Quem erra são os outros. E ele vence.

O tricampeão não liga se passar a temporada inteira sem ser muito badalado se, após a última etapa, levantar o caneco. Está ali para tirar o título dos outros, com um surfe irretocável, rápido, contundente como uma navalha afiada.

Na final de Portugal, deu de cara com um desinteressado Jordy Smith, que deixou escapar uma vitória possível ao pegar apenas uma onda na bateria. Mick surfou como quis, mesmo sem a prioridade, perto do gigante sul-africano.

Mas Jordy, vejam só, merece o agradecimento do torcedor brasileiro. Afinal, como bem lembrou o leitor amigo Fábio Dutra, o sul-africano foi o cara que venceu John John Florence na final de Trestles e na semifinal de Supertubos.

JJ perdeu, com isso, a chance de ouro de decidir o título em casa, jogando seus adversários na, aí sim, verdadeira panela de pressão: o inverno do North Shore. Locais, pressão no pico, ameaças fora da água e outros componentes poderiam facilmente propiciar a maior recuperação para um título mundial já vista.

Não deu, mas o havaiano deixou um aterrador cartão de visitas para 2015. É, desde já, pelo que fez nas últimas etapas, um dos favoritos reais ao título da próxima temporada. Em Portugal, mais uma vez, foi o melhor surfista.

Se adquirir mais consistência em ondas sem tubos e sem rampas para manobras aéreas, ficaria perto do rótulo de imbatível. Perto.

Outro que aparecerá em 2015 na lista dos favoritos é o cada vez mais maduro Jordy. Ganha peso competitivo a cada temporada, e pinta como contender.

De volta ao presente, que fim de temporada ganhou a ASP, hein? Um americano, melhor surfista de todos os tempos e rei em Pipeline; um australiano, tricampeão e dono do mais preciso surfe de competição do mundo; e um brasileiro, garoto, 20 anos, chamado de freak até por quem não quer o primeiro título do Brasil.

Slater precisa vencer de qualquer maneira, o que não costuma ser um problema naquela arena. A vitória também diminuiria um pouco a lacuna deixada pela temporada sem conquistas. E precisa de muita sorte para ver eliminações precoces de seus adversários, especialmente de Medina.

Medina provou seu talento. Eu diria que, hoje, pelo seu histórico de vitórias no Taiti e em Fiji, confio mais no potencial do brasileiro em Pipeline que em muitos beach breaks espalhados por aí.

Fanning não está tão confortável, apesar da vitória. Ano passado, venceu com um notão apertado e contestado pelo concorrente Slater. Ele jamais foi o cara em Pipeline, mas, como dito, está à espera do erro dos outros. É um grande jogador.

Um nono lugar deixaria Medina muito perto do título, pois obrigaria Fanning a fazer a final. E isso significaria provavelmente, como diz o amigo Dutra, vencer Slater ou JJ, em pleno universo oco de Pipeline, numa semifinal.

Não basta ser de gelo para alcançar esse feito. É preciso mais. Será que ele consegue? E, agora, depois da vitória em Portugal, na mira dos holofotes, o gelado Fanning certamente dividirá a panela de pressão com Medina e Slater.

O jogo está totalmente aberto.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".