Leitura de Onda

A queda do muro

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O título mundial de Gabriel Medina é uma queda do muro no universo do surfe. Foto: ASP
 

O acaso me fez ler “1989 – o ano que mudou o mundo” (Zahar), do jornalista americano Michael Meyer, enquanto Gabriel Medina fazia magníficas leituras de onda em Pipeline. O livro nos oferece um retrato detalhado da queda do Muro de Berlim, apresentando-o como resultado de uma série de movimentos no Leste Europeu praticamente imperceptíveis aos olhos viciados do grande público.

Nem o governo dos Estados Unidos, com seus inchados departamentos de investigação, previu aquela aterradora construção, que rachava em dois um país, destruída em pequenos pedaços. Não imaginaram que tijolos virariam souvenires.

A analogia é óbvia: o título mundial de Gabriel é uma queda de muro no universo do surfe. E, tal qual ocorrera na história do Velho Mundo, a conquista do brasileiro foi precedida por uma série de evoluções e movimentos – alguns deles não percebidos devidamente, sobretudo por quem nos vê de fora.

O caneco de Medina, para além do feito individual de gênio, é uma engenhosa construção de um país continental, com um povo repleto de virtudes e defeitos, que enxerga o surfe de modo profissional há pelo menos três décadas.

Li, aqui e ali, perigosas comparações entre o surfe e o tênis, quando se discutia os efeitos da conquista de Gabriel, por conta da comparação com Gustavo Kuerten, sobre os riscos da super exposição de um esporte sem a estrutura devida.”

O surfe não seguirá o mesmo caminho do tênis. Ponto.

No mundo das raquetes, antes de Guga, o Brasil vivia de espasmos individuais, como os dos monstros Thomaz Koch e Maria Esther Bueno. Depois de Guga, sobrou o esforço de talentos como Thomaz Bellucci, que hoje ocupa a modesta 65a posição no ranking da ATP.

No mundo das pranchas, desde o início dos anos 90, quando começamos frequentar as arenas da ASP, já estivemos, sem contar com os resultados de Gabriel, 15 vezes entre os 10 melhores do mundo, com Fabio Gouveia (5º em 92), Teco Padaratz (8º em 94 e 10º em 2000), Victor Ribas (6º em 95 e 3º em 99), Peterson Rosa (8º em 98, 7º em 2001 e 10º em 2004), Alejo Muniz (10º em 2011) e Adriano de Souza (5º em 2009, 2011 e 2012; 7º em 2008; 10º em 2010 e 8º em 2014).

Passamos longe dos espasmos individuais há pelos menos duas décadas. Em 1994, por exemplo, o Brasil ocupou o top 16 com um quarto dos surfistas da lista: Teco (8º), Jojó de Olivença (11º), Fabinho (12º) e Vitinho (15º). Em outros anos, Neco Padaratz, Guilherme Herdy, Filipe Toledo e Jadson André também ocuparam a lista dos 16 melhores do mundo.

Há, é claro, uma série de problemas com a formação dos surfistas brasileiros, a começar, como sempre, pela falta de apoio financeiro para as categorias de base. O país tem, ainda, gargalos não resolvidos no formato de seu circuito profissional. Mas a intenção deste texto acima é apenas marcar, em bom negrito, o resultado de todo o esforço histórico realizado pelo país – com seus erros e acertos. Eliminamos, com muito suor e intermináveis viagens, o enorme abismo que havia entre o surfe brasileiro e o da elite do esporte, especialmente em ondas boas.

O muro era enorme para quem o observou desde os 80. Quase uma cortina de ferro. Passamos a vida, por exemplo, a venerar o surfe de mitos como o goofy Occy. Ele surgiu no circuito no meio dos anos 80, mas só levantou a taça em 1999, depois de uma volta espetacular ao Tour.

O último título de um goofy, aliás, foi o do americano CJ Hobgood, que venceu quase acidentalmente em 2001, ano em que o circuito mundial foi interrompido no meio devido ao ataque de 11 de setembro.

Tom Carroll talvez tenha sido o maior de todos os surfistas de base esquerda, com dois títulos (83 e 84) e performances espetaculares em ondas mais agudas, como as de Pipe. Tivemos, ainda, títulos dos gauches Derek Ho (1993), Barton Lynch (88) e um bi do competitivo backsider Damien Hardman (87 e 91). 

Pois, pelo que aconteceu até agora com Gabriel, com um título mundial inquestionável aos 20 anos e exibições irretocáveis em todas as ondas, tudo leva a crer que a história do brasileiro, por mais espantoso que isso possa parecer aos mais velhos, será maior que a de seus predecessores goofies.

Ver o horizonte sem obstáculos nos faz perceber cenários antes inimagináveis. Em 2015, Gabriel terá a possibilidade de se tornar o primeiro bicampeão mundial da história com 21 anos, feito que nem Slater alcançou.

A vitória abre janelas importantes também para outros surfistas brasileiros. De alguma maneira, o olhar sobre o país foi estruturalmente modificado depois deste inesquecível dezembro em Pipeline.

Claro, ainda haverá quem ache isso tudo uma armação de mercado para conquistar o vasto mercado brasileiro. Ou ache que o surfista brasileiro segue sendo um mau sujeito, bandido, que está no circuito apenas para macular os loirinhos limpinhos do primeiro mundo. Haverá, ainda, quem ache que os melhores sempre estarão do outro lado.

Mas, de alguma maneira, conseguimos incutir na cabeça do mundo a ideia de que o Brasil é força dominante no esporte. E isso se refletirá no olhar dos estrangeiros sobre os brasileiros. Adriano de Souza, que tanto ajudou na construção desse castelo, agora tende a ser beneficiado por ele. Assim como todos os outros.

O muro no chão jogou luz também sobre os grandes heróis do esporte. O abraço que Mick Fanning deu em Gabriel, dentro d’água, logo após perder a bateria que daria o título ao brasileiro, é um emblema de como deve ser o mundo. Fanning, além de um fantástico surfista, tricampeão do mundo, é um homem de verdade.

O título do brasileiro provavelmente desencadeará, ainda, um efeito dominó em outros muros. Como disse o gerente de circuito da ASP, Renato Hickel, o caneco representa uma conquista não só para o Brasil, mas para todos os países que sempre orbitaram perifericamente no esporte, sem o brilho da Austrália e dos Estados Unidos. A vitória do Brasil, explica ele, torna possível que um garoto da China, do Chile ou de qualquer outro país também acredite que pode chegar lá.

Mas, assim como o muro de Berlim, para cair é necessário mais que uma onda de movimentos pretéritos. É preciso um empurrão extra, uma onda de vontade irrefreável, a manifestação da natureza das coisas.

Na Alemanha, foram os jovens da Cortina de Ferro, em frente ao principal posto de controle, que encararam a Volkspolizei (polícia estatal), com gritos de “Abram!”. Do outro lado, jovens ocidentais também berravam, cada vez mais alto, “Venham! Venham!” Em algum momento, a guarda da fronteira não mais conseguiu segurar a multidão e ordenou: “Abram as portões”.

No surfe, além do empurrão dado por diversas gerações de brasileiros, foi a explosão incontrolável de talento de um provável gênio do esporte que detonou definitivamente o muro. Fez-se história.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".