Leitura de Onda

“Clutch”

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Nas fases finais de Portugal, Filipe Toledo assombrou os lusos com performances notáveis, soltas, despreocupadas. Foto: WSL / Aquashot / Poullenot

 

“Clutch” é uma expressão em inglês com vários significados. Um deles, informal e usado no meio do basquete americano, refere-se à pessoa capaz de vencer, de ser precisa em circunstâncias decisivas. É meu sobrinho Lucas, um fissurado em cestas de três, quem explica o termo: uma qualidade atribuída a jogadores raros, que se comportam bem diante de situações de extrema pressão.

Na NBA, pode ser a cesta no minuto final de um playoff. No surfe, é segurar a barra de conquistar o título mundial no peso de Pipeline.

Filipe Toledo é o primeiro candidato a “surfista clutch” do ano. Nas fases finais de Portugal, assombrou os lusos com performances notáveis, soltas, despreocupadas. Como se aquilo não valesse nada. Na entrevista pós-vitória, disse ter ouvido de um amigo, no meio do evento, que assumiria a vice-liderança caso vencesse.

Não deu bola. Tinha muitas baterias com que se preocupar. Usou o bom artifício para afastar a pressão enquanto era tempo. Em algum momento, entre uma onda e outra, certamente se lembrou da vantagem da vitória. Mas atropelou a ansiedade, mostrou-se pronto para a panela de pressão do Havaí.

Depois da vitória no Brasil, Filipinho andou um tempo apagado, sem pulso. Um olhar pouco atento acreditaria que o holofote tinha lhe tirado o brilho. Mas não. O ubatubense talvez tenha tropeçado em ondas que exigem novas linhas, onde ele ainda precisa amadurecer. O que é natural, para um garoto de 20 anos.

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Ítalo Ferreira tem a qualidade rara do camaleão, que muda de cor diante da onda. Sua capacidade de se adaptar a condições desconhecidas ou, muitas vezes, praticamente insurfáveis – como foi o caso das fases finais lusas – é inspiradora. Foto: WSL / Poullenot

Nem Mick Fanning, talvez o surfista mais overall da atualidade, mantém o padrão vencedor em todas as ondas do circuito.

Pesa muito a favor de Filipinho, na avaliação de sua capacidade de ser “clutch”, seu histórico em finais. “Nada a perder”, costuma dizer o garoto quando lhe perguntam sobre a razão de suas incríveis performances, com uma nota dez em cada decisão e vitórias inquestionáveis em todas as disputas – Snapper, Rio e Supertubos.

O que lhe faltou no ano foi regularidade. Ninguém pode querer tudo, ainda que seja de um garoto fora de série capaz de vencer sempre com notas máximas.

Mesmo assim, chega ao arquipélago com a vantagem nos descartes. Se perder a partir da fase 4, obrigará seus adversários a irem mais longe para tentar o título. A essa altura, deve estar sonhando com Backdoor.  

Em Portugal, Filipinho conseguiu o feito de parar um trator com motor turbo chamado Ítalo Ferreira. Que assombro, o garoto potiguar! Atropelou até a instabilidade do mar dos últimos dois dias – turbulento, espumado, de difícil leitura, quase um xadrez. Em sua chave, estava muito melhor do que todos os outros – inclusive do que o gigante Gabriel Medina, derrotado por ele duas vezes na prova.

Ítalo tem a qualidade rara do camaleão, que muda de cor diante da onda. Sua capacidade de se adaptar a condições desconhecidas ou, muitas vezes, praticamente insurfáveis – como foi o caso das fases finais lusas – é inspiradora. Admirável.

Na final, contra Filipe, mostrou que ignora a opressão de uma nota dez do adversário ao buscar, ele mesmo, a onda perfeita (ou quase, graças a dois juízes mais duros). Seu aéreo estratosférico – entre os mais altos já executados na elite do surfe – deixou lusos loucos e ameaçou a liderança aparentemente indestrutível de Filipinho nos minutos finais da decisão. Se viesse mais uma onda, não há dúvida que o potiguar mudaria a história da etapa portuguesa. Ele é um clássico surfista “clutch”.

Ítalo começou 2015 visto com desconfiança pelos próprios brasileiros. Vai encerrar o mesmo ano lutando por uma vaga entre os cinco melhores do planeta.

O céu é o limite em 2016. O potiguar só precisa driblar – e estou certo de que é capaz disso – o fim do bônus da novidade, da surpresa nas notas. No segundo ano, o olhar dos juízes para ex-rookies costuma ser menos complacente. Eles se importam menos com os movimentos que já conhecem, ressaltam mais as pequenas lacunas técnicas.

A missão é dar um jeito de seguir surpreendendo. E, nas férias, meter a cara no inglês. Sim, a WSL ainda liga para isso.

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Gabriel Medina viveu o céu e o inferno em Portugal. De novo. Foto: WSL / Poullenot

Gabriel Medina viveu o céu e o inferno em Portugal. De novo.

Na fase 3, diante de Caio Ibelli, numa saborosa reedição da final do King of the Groms de 2009, mostrou a dominância e o brilho das últimas etapas. Jogado nas cordas depois de um tubo 9,77 de Caio, Gabriel mostrou por que é um surfista “clutch” por natureza. Virou, a menos de dois minutos do fim, com um aéreo rotacional longo, num mar que não oferecia muitas alternativas, aterrissando de maneira perfeita.

A praia veio abaixo, e Gabriel parecia a caminho de mais uma final.

Mas o campeonato parou por muito tempo, o mar mudou, os astrais dos surfistas se transformaram. O espírito vencedor do campeão mundial, aparentemente irrefreável, foi golpeado num mar de loteria, a partir no round 4. Gabriel não foi brilhante e deu o azar de encontrar duas vezes um dos surfistas mais encaixados naquele mar.

O quinto em Portugal, no entanto, coloca o surfista de Maresias em condição muito semelhante a que estava Mick Fanning em 2014, com a diferença de que o brasileiro tem uma vocação inquestionável para os tubos de Pipeline.

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A derrota precoce de Adriano de Souza o coloca numa situação com a qual está acostumado na vida: lutar contra tudo e contra todos. Foto: WSL / Poullenot

A derrota precoce de Adriano de Souza o coloca numa situação com a qual está acostumado na vida: lutar contra tudo e contra todos. Ele vai a Pipeline nesta situação. Lá, não é o mais destacado, mas talvez tenha sido um dos que mais evoluiu. Além disso, parece que foi convidado por Jamie O’brien para ficar em sua casa, na cara do gol, e ganhou uma licença no line-up que só quem é abraçado por um havaiano consegue para treinar nos tubos de Pipe.

Pelas circunstâncias, Adriano sabe que não desponta como favorito. E talvez goste disso. Mas sua raça nos faz crer em conquistas impossíveis.

De volta ao basquete, Lucas me lembra de um tal de Reggie Miller, do Indiana Pacers, que não era conhecido pelo poder de decisão. Em 1995, nas semifinais da conferência, contra todos os prognósticos, ele fez oito pontos em menos de seis segundos, com duas bolas de três, e virou um jogo que parecia impossível.

A jogada tornou-o um dos maiores “clutchs” da história.

A condição de líder, de camisa amarela, afetou os resultados dos dois principais líderes do ano. Desde que a perdeu, Adriano voltou a surfar solto. Agora é Mick, o último e mais importante candidato ao título da temporada. Depois de assumir a ponta em Trestles, fez um insosso quinto na França e um décimo-terceiro em Portugal.

Ainda assim, Mick é o favorito. Maduro, no auge da carreira, tricampeão mundial e consistente em todas as ondas (mesmo sem ser vencedor), ele sabe o caminho da vitória e da derrota. Já surfou pressionado em Pipe em 2013 e saiu de lá com o caneco, apesar de muita gente ter visto um julgamento condescendente com ele. Para mim, o australiano venceu apertado, mas venceu – fez o que seria exigido de um campeão.

Agora, a briga é contra um bando de brasileiros famintos, além dos aussies Owen Wright e Julian Wilson, que correm por fora, esperando uma tragédia coletiva. Será, talvez, o maior teste da carreira de Mick. Uma prova que o consagrará definitivamente como um surfista completo e, principalmente decisivo, ou deixará um amargo gosto em sua boca, que só poderá ser tirado em 2016.  
   
No fim das contas, ser um surfista “clutch” é ter uma vontade irrefreável de vencer, tão grande que supera com folga todos os medos. Se continuarem na dúvida, perguntem a Michael Jordan, que já venceu partida de playoff com febre de 40 graus fazendo mais de 40 pontos.  

Ou, claro, mandem cartas a Kelly Slater.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".