Leitura de Onda

Um evento para quem?

0
1400x842

John John Florence vence o Oi Rio Pro sob chuva, em mar storm, impraticável. Foto: © WSL / Smorigo.

 

Chuva. Frio. Vento. Mar storm, impraticável. Quinta-feira afeita apenas a um público de iniciados com tempo livre e muita disposição. Se a World Surf League (WSL) queria enterrar de vez a etapa carioca do circuito mundial, não poderia ter sido mais eficiente. Mas, se queria fazer a coisa certa, nossa, deu um histórico tiro no pé.

Passei o dia sem entender por que diabos, numa etapa em que o público é a força-motriz do evento, os patrocinadores investem tubos em campanhas de marketing direto na praia e a janela de realização seguiria por mais dois dias, decidem finalizar o evento de forma tão melancólica para os amantes do esporte.

Peço desculpas aos surfistas e leitores. Desta vez não vou falar do brilhante John John Florence, dono do belo troféu da etapa, que surfou o fino num mar grosso; do preciso aussie estreante Jack Freestone, que vai jogar duro com a Tempestade Brasileira; do potente Dusty Payne, que mostrou ao mundo o surfe que sempre teve; de Gabriel Medina, melhor surfista do evento ao lado do campeão; e de Miguel Pupo e Adriano de Souza, que fizeram boa campanha, finalizando na quinta posição num mar difícil.

Prefiro começar pelos órfãos da etapa, os apaixonados por surfe, que tentavam entender, indignados, a razão de se finalizar o evento num dia morto. Em todos os cantos com aficionados, reinava aquele vazio de quem é tratado com indiferença. A decisão da WSL parece ter ignorado a mais importante variável da etapa carioca, o público, e um erro dessa magnitude não costuma ser perdoado. A fila anda.

Muitos amigos acompanham o circuito mundial de verdade. Discutem, xingam ondas mal julgadas, escolhem ídolos entre as pranchas da elite, se encontram em bares nas etapas distantes. Imagine o anticlímax dessa galera na última quinta. Outros vão mais longe: compram passagens, como um camarada que mora no Ceará, para ver a final no Rio. “Estou chegando aí na sexta muito cedo”, me avisou, na quarta, por telefone.

As empresas envolvidas no esporte, seja como patrocinadoras do evento ou dos surfistas, também esperavam por algo mais interessante que oferecer visibilidade para a marca numa quinta chuvosa de mar storm. Ações de marketing foram afogadas pela decisão de antecipar a decisão. Ficaram no estoque, bem longe da praia, toda sorte de produtos associados ao evento. E, na gaveta, a expectativa de retorno.

Desta vez, nem deu para usar a desculpa da previsão de ondas. A Surfline, previsor oficial da WSL, apontava desde segunda-feira que a melhor condição do mar ocorreria na sexta-feira, dia sem chuva, para a alegria do público. Ou seja, o campeonato foi realizado sabidamente fora da janela ideal de ondas.

Nos bastidores, o que se fala é que a decisão teria sido tomada pelo receio da pluma de esgoto alcançar o evento do Postinho. Se conversassem com algum especialista em dinâmica de águas costeiras, veriam que, pelas correntes (Sul) e ventos (Nordeste) previstos, as chances de a mancha alcançar o evento na sexta-feira eram nulas.

2048x1225

Surfista e engenheiro Guilherme Aguiar faz um levantamento interessante para provocar o debate. Foto: Reprodução.

 
O símbolo desse desastre foi um post da WSL, no Facebook, anunciando que a loja montada no palanque do Postinho ficaria aberta na sexta e no sábado, quando já não havia surfistas, festas e magia. É difícil vender um esporte dessa forma.

Entendam, o texto está crítico, é meu papel. Mas, ao mesmo tempo, reconheço o esforço gigantesco que os organizadores fizeram para realizar a etapa do Rio este ano, mesmo com o boicote público de alguns e as críticas veladas de muitos outros, além do grave problema de saneamento e da luta contra imprevistos, como a ressaca que destruiu o palanque original. Buscaram refúgio em Grumari, que não quebrou bem, voltaram para o Postinho, conseguiram rodar o evento sem esgoto, se desdobraram.

Uma batalha difícil, sobretudo se levarmos em conta que este foi o último ano de contrato com a Prefeitura do Rio, maior patrocinadora do evento. Não cabe aqui condenar ninguém, mas é preciso identificar os erros para seguir adiante.

Página virada, agora é o momento de definir em que sítio será realizado o evento brasileiro que reúne os melhores surfistas do mundo. Será que fica no Rio? Sai?

A esta altura, os fóruns de surfe pipocam com apostas de todos os tipos, todas considerando a melhor onda – normalmente segundo a visão dos próprios locais.

Saquarema e Maresias me parecem, do ponto de vista da qualidade da onda, as opções brasileiras que mais atendem aos critérios de onda da elite do esporte. Mas é preciso fazer uma leitura honesta dessa história, sem bairrismos: o Brasil não tem ondas de qualidade internacional. Há um abismo intransponível entre a percepção que nós temos de onda boa, na nossa rotina, e o que a elite entende como mar clássico.

Guilherme Aguiar, bom surfista e engenheiro de mãos cheias, fez um levantamento interessante para provocar o debate. A partir dos informes diários aqui do site Waves, ele fez gráficos dos picos mais citados como alternativa durante a janela de evento. O recorte revelou, entre outras coisas, que pelos informes nenhuma onda estava melhor que a do Rio durante os dias de evento “on” deste ano.

É preciso lembrar, ainda, que informes normalmente são feitos por locais, que têm uma visão particular do pico, mais ou menos crítica. E que, normalmente, este olhar é bem diferente do critério da WSL. O fundo de Grumari, por exemplo, tem apresentado ondas cheias, afeitas a amadores iniciantes, mas não aos surfistas da elite. O mar clássico do local da Vila, com longas paredes manobráveis, certamente não corresponde à onda desejada por surfistas como Gabriel Medina.     

2048x1273

A partir dos informes diários do site Waves, Guilherme fez gráficos dos picos mais citados como alternativa durante a janela de evento. O recorte revelou, entre outras coisas, que pelos informes nenhuma onda estava melhor que a do Rio durante os dias de evento “on” deste ano. Foto: Reprodução.

Há ainda barreiras de infraestrutura, em todos os cantos, não só no Rio. Teve um ano na Praia da Vila em que o evento ficou ilhado, sem internet nem nada, no meio da chuva. Na última etapa do CT realizada em Saquarema, surfistas reclamaram do ágio cobrado nas diárias de pousada – é aquela ideia de querer resolver o ano numa semana. Circulou a história, à época, de que a PM da região teria arrochado atletas e organizadores em duras infames. Dizem que Al Hunt teria sido visto nu, numa dessas revistas arbitrárias a que acabamos nos acostumando, dentro de uma cabine da polícia no caminho do evento. O verão de Maresias, superlotado e com problemas de infraestrutura, é um convite à reflexão sobre a capacidade do pico para receber milhares de pessoas num espaço tão curto de tempo, de modo tão intenso.

O Brasil não é mesmo para principiantes, já dizia Tom Jobim, mas merece por várias razões ser mantido no circuito. É preciso tomar muito cuidado com esse olhar excessivamente crítico do estrangeiro. O mundo é diverso, em termos de onda, organização e até de alegria. Se quiser confirmar o status de esporte mundial, a WSL terá que entender e aceitar essas diferenças. E nós, claro, temos que lutar para fazer as coisas cada vez melhor, sem perder nossa cultura.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".