Leitura de Onda

Correio de J-Bay

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Mick Fanning retorna a Jeffreys Bay depois de encontro assustador com tubarão em 2015. Foto: Reprodução.

 

Caro Mick,

Desculpe o mau jeito. Sou meio estabanado e não enxergo bem, especialmente naquela água turva de J-Bay. Não me lembro bem a situação, mas acho que a cordinha ficou presa no meu nariz e tive que cortá-la. Acho que esbarrei sem querer.

Sim, sou perigoso, eu sei. Posso matar, e lá onde vocês pegam onda, tem uma turma grande de amigos temidos. Maas acredite: em nossa própria casa, o mar, morremos muito mais que matamos. Muitas de nossas famílias estão ameaçadas de desaparecer, como a do velho Gralha, a do Martelo e a do Mangona gente boa.

Preciso te confessar que, nas nossas águas gélidas, você é meu favorito no Fantasy. Um surfista de movimentos limpos, suaves, precisos. Como as notas modais daquele tal de Miles Davis em Kind of Blue, nosso disco predileto por aqui. Surfe sem quique, música sem excesso. Tons certos, arco bem feito.

Sentimos cada movimento de vocês lá do fundo. O que vale é o ritmo.

Alguns de meus primos apostam em outras linhas bem feitas – aqui quem não sabe desenhar as ondas não arruma nada.

Tem nosso amigo local, que já esteve perto da gente várias vezes, um cara grandão, o que mais enterra a borda na parede destas ondas. Pega muito.  

Tem aquele brasileiro osso-duro – até os bichos brabos aqui de baixo têm medo dele. O cara é o que mais fica dentro d’água. Parece que você perdeu o título para ele na última prova ano passado – desculpe mais uma vez, atrapalhei o seu ano, né?

Tem aquele louro que tentou te salvar quando achou que eu tivesse te atacando – corajoso ele. Ou doido mesmo. E talentoso, especialmente nas nossas longas ondas.

Tem um grupo de favoritos que está sempre nas cabeças entre os apostadores: aquele careca cheio de taça, que não envelhece, o tal australiano que risca a onda com mais beleza que força e outros velhos que andam especialmente bem na nossa superfície.

Mas o pessoal aqui anda encucado mesmo é com outro brasileiro, que ano passado voou como um pássaro duas vezes na mesma onda. Os mais conservadores no bar do Dentuço reclamam, dizem que isso não se faz em J-Bay. Mas já tem um bando com piercing na barbatana achando que o garoto está trazendo o futuro para a África.

O problema é que, para ver esses movimentos, a gente tem que ir para a superfície.

Este ano, os donos do tal campeonato instalaram uns aparelhos que detectam a nossa presença por perto. Eles têm razão, não convém deixar carne fresca para um bando de mandíbulas descontroladas. Veremos à distância. Mas tem que reforçar com eles que há risco também fora das disputas, quando vocês resolvem treinar de manhã cedo.

Bom, é isso. Torço de verdade por você, Mick. E, se Deus quiser, nenhum hooligan fanático aqui debaixo vai aparecer para estragar a festa do surfe.

Forte abraço e boas ondas,
Tuba. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".