Leitura de Onda

Jadson somos nós

0
980x654

Jadson André garante a permanência na elite mundial depois de uma incrível reação na reta final do Qualifying Series. Foto: © WSL / Cestari.

 

O ano era 2007. Jadson André disputava o ISA Junior em Portugal, categoria sub 18, quando ouviu alguns de seus adversários saxões o mais repugnante dos insultos racistas: “macaco!”. No quarto do hotel, à noite, o potiguar nascido numa família humilde de pescadores na Vila de Ponta Negra, em Natal, desabou em prantos.

Mas Jadson é mais forte que eles, e sabia disso. Venceu o evento de forma avassaladora e transformou Portugal num de seus palcos preferenciais.

A história, contada no vídeo “Brink: Surfing’s New World Order – the story behind Gabriel Medina’s World Title”, do site Inertia, certamente não foi a primeira pedra no caminho daquele garoto. Nem seria a última.

Veio a elite, em 2010. Dono de um surfe progressivo, ele tinha um aéreo rotacional inovador, que naquele momento poucos conseguiam reproduzir. A técnica lhe deu o que parecia ser um prêmio em seu ano de estreia: a vitória na etapa do WCT de Imbituba, derrotando na final o intocável Kelly Slater.

O americano, péssimo perdedor e figura mais influente no universo do surfe mundial, tratou de dar um gosto amargo à conquista do potiguar. Iniciou uma campanha, com declarações agressivas, para passar ao mundo a ideia de que Jadson não era a versatilidade necessária à elite. Desafiou-o a enfrentá-lo em Pipeline.

As palavras do maior campeão de todos os tempos se espalharam pelos cérebros suscetíveis do mundo do surfe. E logo Jadson passou a ser tratado como o surfista de uma só manobra. Todos nós desconfiamos disso, de verdade. Lavagem cerebral.

O filho da inspiradora dona Francineide Conceição não acreditou. Seguiu lutando, limitado por julgamentos com teto cada vez mais baixo, mas sem desistir jamais de ser um surfista da elite. Em 2013, ficou pela única vez fora do WCT, mas voltou no ano seguinte, impondo-se sobre a novíssima geração que tentava lhe tirar o espaço.

Carne de pescoço, Jadson se viu novamente em situação difícil em 2016. Perdeu seu principal patrocinador, sofreu algumas lesões, foi prejudicado num julgamento infame contra Julian Wilson na etapa de Portugal e, no quarto final da temporada, estava seriamente pressionado pela possibilidade de rebaixamento na elite e sem grandes perspectivas de se classificar pela divisão de acesso.

Antes da etapa do WQS de Floripa, o Hang Loose, quando estava em 58o lugar, nem o mais louco otimista apostaria um vintém nas chances do potiguar se manter pelo circuito qualificatório. Mesmo com o vice-campeonato na ilha catarinense, chegou ao Havaí na pressão, 15 postos atrás da linha de corte da classificação para a elite.

Raça, raça, raça.

Foi buscar um brilhante quinto lugar no QS de Haleiwa e chegou a Sunset precisando de uma semifinal para manter vivo o sonho. No minuto final das quartas, extraiu a fórceps, de forma inacreditável, a classificação na disputa. Saiu da água sem saber que o resultado lhe garantia vaga na da elite em 2017 e, ao ser informado, ajoelhou-se, numa reação que misturava alívio por tirar o peso das costas e gratidão a seu Deus.

Noves fora deuses ou santos, Jadson é o único responsável pelas suas conquistas. Merece cada vintém conquistado. Até porque, sem hipocrisia, ele está no grupo de surfistas impactados por um olhar crítico prévio. Não importa a performance, essa turma terá quase sempre notas ligeiramente achatadas em nome de um parâmetro.

Jadson tem talento, radicalidade e explosão, mas não é um fora de série da elite. Seu surfe ainda tem, sim, algumas pontas soltas. Também está longe de ser um produto do medíocre padrão “White anglo-saxon protestant”, recorrente na World Surf League.

Exatamente por isso, suas sucessivas conquistas profissionais têm um valor real, verdadeiro. São vitórias que dão legitimidade ao esforço, ao trabalho e à dedicação, são conquistas que nos fazem acreditar no poder do ser humano.

Jadson é um de nós. E isso o faz ser muito melhor que todos eles.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".