Qual seria a minha lembrança mais remota do contato com as ondas?
É curioso que eu não tenha parado para pensar nisso antes. A não ser de forma poética: “Eu vim ao mundo preparado pras provas / na barriga da minha mãe eu já treinava as manobras / Eu chorei quando nasci, eu tinha um pingo de mágoa / me tirando da barriga me tiraram da água / o meu lugar é na água, se eu tô nela me deixe / com a minha prancha em companhia dos peixes” (trecho da letra de “Obrigado mar por isso tudo”).
Morando no Rio, filho de pai e mãe separados que costumavam ir à praia nos fins de semana, eu ficava brincando na beira do mar como a maioria das crianças, chutando a água que vinha com as ondas, cavando buracos que viravam piscinas, cavando a areia molhada dos buracos para pegar tatuís, construindo castelinhos de areia e colocando os tatuís e as joaninhas para passear nas construções… Como é bom buscar essas lembranças.
E pensando nisso tudo, me lembrei agora de uma música que eu conheci um pouco depois, quando ainda era criança. “Como uma onda (Zen-Surfismo)”, do Nelson Motta e do Lulu Santos, cantada pelo Lulu, mexia comigo e já me fazia viajar nessa comparação do ritmo da vida com o do mar. Estamos falando de 1983, quando eu “já” tinha nove anos de idade, e “Como uma onda” estourou nas rádios como uma onda no shorebreak de Waimea, sendo incluída no ano seguinte na trilha do clássico filme “Garota Dourada”, do diretor Antônio Calmon.
Eu não sabia muita coisa da vida, e nem do mar, mas já entendia bem essa comparação.
Nessa idade, até os 12 (e sem prancha), eu morei em bairros sem praia, como Tijuca e Humaitá, mas minha mãe nos levava (eu e meu irmão Tiago) para Ipanema e também para a chamada Praia do Pepino (canto direito de São Conrado), e nos fins de semana em que estava com meu pai, ia a pé para a praia de Copacabana, em frente à Constante Ramos, onde ele morava. São lugares de ondas fortes, perto da areia, e mais cedo ou mais tarde, mesmo sem querer, eu seria obrigado a levar meus primeiros caldos, mesmo se fosse pra água apenas com a intenção de me refrescar depois de jogar uma bola.
Conclusão: o caldo, na minha vida, surgiu antes da onda.
Talvez por isso eu sinta prazer até hoje quando levo uma vaca. Alguns amigos comentam, quando me veem descendo umas ondas fechadas ou tentando uns drops atrasados impossíveis e voltando sorrindo pro pico.
Um amigo de São Conrado, Diego, que foi morar em Portugal, conversando comigo na água, num pico pesado e perfeito (cujos locais não gostam que divulguem muito o nome), me contou que o pessoal já está acostumado a vê-lo passando perrengue na zona de impacto, embaixo das séries maiores e em cima da laje mais rasa. No começo ficavam preocupados com ele, depois já reagem aos risos, e enquanto o brazuca está tomando na cabeça eles dizem um para o outro: “ele gosta”!
Quando meu amigo me contou isto, justificando que assim consegue pegar várias intermediárias que sobram e encaixam mais secas na laje, eu entendi que no fundo ele também curtia os momentos de sufoco com as séries que vinham mais atrás mais ou menos, como eu nas embicadas e despencadas dos meus quase-drops, que enchem meu cabelo de areia em São Conrado e me obrigam a usar capacete quando o fundo é de pedra ou coral. Meus amigos também comentam rindo “o Gabriel é maluco!” ao notarem que eu gosto.
Mas não sou o único! E hoje entendo que esta sensação boa não é masoquismo, mas sim um prazer nostálgico que ressuscita em minha alma o Gabrielzinho criança sendo sacudido pra lá e pra cá pelos poderosíssimos “caixotes” de meio metro no posto 5 de Copa. É mais ou menos igual a quando o nosso pai nos levanta nos braços dentro de uma piscina e a gente já começa a rir antecipando o tombo e pede ansiosamente: “Me joga bem alto, pai, mais alto, vai!”
E as ondas? Ah, as ondas…
A descoberta das ondas, a busca por elas, os encontros. Sua fascinante chegada, ganhando volume de longe no nosso campo de visão ou subindo de repente à nossa frente, o gostinho de ser carregado por elas, a emoção, a velocidade, o visual…
As ondas e a onda que as ondas me dão serão um dos temas principais desta coluna, com seus inúmeros desdobramentos e assuntos agregados, é claro, já que essa é a natureza da água e nos somos feitos 70 por cento de água, por isso precisamos fluir. “Be water, my friend”, já dizia Bruce Lee, em uma de suas frases mais célebres. Eu poderia humildemente “melhorar” essa frase, agora já sabendo os benefícios que essa descoberta me trouxe e me traz: “be salt water, my friend”, ou ainda “be waves”!