De Volta Pro Futuro

Trindade, a saga

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A Trindade, famosa pelas sua ondas e sua beleza natural, é uma região no sul do litoral do Rio de Janeiro, que faz parte da reserva da Bocaina, e é composta por sete praias paradisíacas, montanhas com Mata Atlântica preservada caindo quase que diretamente ao mar, região de cachoeiras, piscinas naturais, ondas perfeitas e pesadas, e que tem uma história marcada por  muitos conflitos, invasões e desrespeito ao meio ambiente.

A região da Trindade sempre foi visitada por forasteiros, e serviu de moradia para diferentes povos e culturas. O primeiro povo que se tem notícia de que ali esteve em visita foi os Vikings, um povo nórdico que deixou suas marcas numa caverna entre a praia do Caxadaço e praia do Meio.

Arqueólogos franceses que estudavam os Fenícios na América estiveram lá nos anos 70 estudando essas inscrições. A região nessa época era habitada por selvagens canibais, os verdadeiros filhos da terra, os índios Tupinambás. Essa etnia indígena habitava a nossa costa desde São Sebastião (SP) até o norte do Rio de Janeiro, inclusive a região de Trindade. Eles eram assíduos comedores de gente, canibais, mas foram extirpados do Brasil na época da colonização, quando os portugueses e franceses passaram a frequentar a região.

Os portugueses ficavam mais no porto de Paraty, onde escoava o ouro vindo de Minas Gerais para a Europa, enquanto os piratas franceses frequentavam as praias da Trindade, Laranjeiras e toda essa região, para emboscar as naus portuguesas que seguiam cheias de ouro para Portugal. Isso era por volta dos anos de 1700.

Trindade, além de receber Vikings, recebeu então piratas franceses, talvez navegadores portugueses. Muitos dos atuais caiçaras desta região são claros e de olhos azuis, e isso é uma possibilidade de serem descendentes dos franceses misturados com índios? Eu não sei o que realmente ocorreu com os tupinambás, se foram extintos por doenças, se foram massacrados, ou se miscigenaram gerando o caiçaras que habita a região até os dias de hoje.

A partir dessa fase colonial, Trindade e toda a região no século 19 e 20 foi invadida por fazendeiros, que por sua vez trouxeram escravos africanos, que hoje habitam alguns quilombos na região. Fazendas de gado proliferaram, inclusive na Trindade, que possuía pastos para gado nelore no alto dos morros, onde é hoje o topo da estrada até o meio da descida.

Trindade recebeu vikings, índios tupinambás, franceses, portugueses, fazendeiros, escravos africanos, e para completar os índios guarani, que chegaram vindo do Rio Grande do Sul no século 19 e 20. Que miscelânea cultural e antropológica… O que mais poderia invadir a região? E a invasão não parou por aí. Vieram nos anos 60 e 70 construtoras multinacionais, jagunços capixabas, hippies, turistas e surfistas, para completar.

O surf surgiu em Trindade no início dos anos 70, quando ainda não existia a rodovia Rio Santos, através de dois surfistas judeus descendentes de franceses, o Andy e o Ilan Goldstein, que iam de Paraty no lombo de mula para surfar a onda da Pedra d’agua, o nome original do Cepilho. Foram eles que levaram os tais arqueólogos que detectaram as inscrições Vikings.

Com o surgimento da rodovia Rio – Santos, alguns surfistas malucos se aventuravam a descer aquela ribanceira de terra chamada de “Deus me Livre”, para explorar as ondas da região, mas eram pouquíssimos. Em compensação, os hippies chegaram com tudo na Trindade, e acampavam no paraíso, levando muitas drogas e bebidas.

O carioca príncipe João Orleans de Bragança e o paulista Paulo Motta, entre outros, sabemos que ali estiveram por essas épocas.

Ao lado da Trindade, a construtora canadense Brascan comprou a antiga fazenda de escravos, a Laranjeiras, e fez um condomínio de luxo. Um pouco além da Laranjeiras, um alemão, o Sr. Gibrailt, comprou toda a região da praia do Sono e dos Antigos, inclusive para o interior até o saco do Mamanguá, e investiu em gado, montou uma fazenda de búfalos, a fazenda Santa Maria.

Com o sucesso da implantação do condomínio Laranjeiras, a construtora tentou fazer um condomínio na Trindade e não conseguiu, e isso gerou muitos conflitos entre jagunços capixabas contratados pela construtora e caiçaras. Foi uma época sangrenta para a região. Muitas famílias foram expulsas das suas casas pelos jagunços – aquelas que não queriam vender suas posses – e algumas acabaram indo morar na praia da praia do Cepilho. Os costumes e tradições dos caiçaras em Trindade estavam em xeque nos anos 70.

Eu resolvi fazer essa introdução para que o leitor tenha uma ideia de que Trindade não é apenas uma região linda e com altas ondas, mas uma região com uma história complexa. Porém, vamos falar agora especificamente da invasão dos surfistas.

Como disse anteriormente, supõe-se que os primos franco judeus Andy e Ilan Goldstein descobriram essa onda indo em cima do lombo de mulas, vindos de Paraty, onde tinham uma casa. Com o passar do tempo e a inauguração da rodovia BR-101, a Rio-Santos, eles passaram a frequentar a Trindade no velho Karmanguia amarelo do Ilan, não revelando para ninguém as  ondas.

Eu conheci os dois primos no Guarujá, por volta de 1974, na época em que eles acabavam de chegar de uma aventura de surf pelo Peru, onde foram roubados e obrigados a regressar ao Brasil numa aventura sem precedentes, pelo Rio Amazonas, sem grana nenhuma, passando alguns dias numa ilha boliviana flutuante de papiro, numa comunidade de leprosos.

Ficamos bem amigos, sempre surfávamos juntos nas Pitangueiras, Pernambuco e em São Pedro, até que um dia eles revelaram a Trindade para nossa turma. Foi a convite deles, na Semana Santa de 1975, que fomos para lá em três carros e alguns amigos – o Renato Zimmermann, Marcelo Diniz, Romeu e Xan Andreatta, José Luis “Pantera”, Charlys Brown, Antonio Celso Fortino (Tonhão), meu irmão Augusto Alves e o Fernando Mesquita.

Eles fizeram um mapa para chegarmos ao paraíso, e nos aguardavam no pico. Lembro perfeitamente da nossa Brasília iniciando a descida da ribanceira de terra, e lá de cima se avistava o mar, e minha euforia em particular era muito grande, pois o lugar era bem isolado e pitoresco, uma verdadeira aventura. Descemos bem devagar, pois tinha muita lama na ladeira, e depois de uma meia-hora chegamos numa praia pequena cheia de rochas ao lado, e com ondas grandes e fortes quebrando, a tal da pedra d’agua que o Ilan e Andy tanto falavam e  que lembrava o canto do Arpex.

O Karmanguia do Ilan estava estacionado meio atolado, e com um recado no painel que dizia mais ou menos assim: “o carro não passa daqui, sigam a pé pela praia até o fim, estamos acampados dentro dos ranchos das canoas. Hoje quebrou 6 pés perfeito”.

E assim fizemos. Pegamos todas aquelas tralhas, prancha, comida, barraca, fogão portátil, roupas e fomos caminhando pelos labirintos de pedra e depois por uma longa praia até chegar nos ranchos das canoas dos caiçaras. Dentro de um rancho estavam os primos acomodados numa canoa, comendo pão sírio. Ao vê-los, eles nos acenaram e falaram “Bem vindos ao paraíso”.

De fato o lugar era mágico, natureza impecável, cultura caiçara intacta e ondas incríveis que eu nunca tinha visto no Brasil, e a prova dos nove foi no dia seguinte, quando o Cepilho ficou enorme e perfeito na pedra, e com canal para entrar.

Esse dia mudou a minha vida. Nunca mais abandonei essa região mágica e surfamos ali por uma década, sem crowd, algumas das ondas mais espetaculares que surfei no Brasil. Sou grato a Deus e aos Goldstein por terem nos aberto esse pico que ficou em segredo até 1985.

Depois dessa primeira ida, comecei a surfar com frequência na Trindade, mas sempre dependia de carona. As nossas barracas sempre estavam ali no Cepilho ou dentro dos ranchos. Na época não havia luz elétrica, a vila era minúscula e possuía apenas uma vendinha, que era do enigmático Plachet, o dono dos gados da região.

Uma vez sem opção de café da manhã, tomamos no Plachet cerveja quente com paçoca, num dia que quebrou o melhor Caxadaço da história.

As noites em Trindade eram bem escuras e estreladas, e sempre aparecia nas nossas barracas, à noite, um Bob Dilan Cover, que levava atrás dele uma procissão de malucos ao som de Mr. Tamborin.

Aos poucos fomos ficando amigos das famílias caiçaras, que nos receberam com muito carinho, o que nos fazia sentir como se estivéssemos em casa. Pegar tubos secos no Cepilhos pela manhã, almoçar um peixinho frito com arroz e feijão no forno a lenha na casa da dona Clara e seu Antônio, voltar a surfar, e à noite fazer uma fogueira e tirar um som naquela escuridão, sob um céu estrelado, era inacreditável.

Era um rotina tão boa, que nos fazia sonhar com uma chuvinha, para ficarmos presos e ter uma desculpa para os pais por não voltar na segunda-feira. E realmente uma chuva qualquer deixava a estrada de terra um sabão, e era praticamente impossível transpor a “Deus me livre” com um carro comum.

Num feriado de finados, acho que em 1976, passamos 10 horas empurrando os carros e só chegamos no alto da estrada anoitecendo, sujos de lama até a cabeça.

A vida em Trindade era muito tranquila. Os caiçaras tinham uma rotina muito simples e de total dedicação à natureza. Enquanto os homens se dedicavam à pesca e à agricultura, plantando mandioca, banana, mamão, buscando as lenhas, as mulheres cuidavam das casas e das crianças, da comida.

A maioria das casas era de pau a pique e chão de terra batido, sendo algumas em alvenaria e piso de cimento. A grande maioria dos caiçaras era cristã, alguns católicos e outros evangélicos.

O canto dos ranchos era o lugar mais agitado da Trindade, pois ali chegavam as canoas com os peixes todos os dias, e era onde as famílias ficavam sentadas aguardando as chegadas dos homens. Muitos urubus se aglomeravam por ali, aguardando uma sobrinha para eles.

O povo de lá era bem festivo, e a festa de Reis era, e ainda é, uma tradição dos moradores que saíam à noite tocando suas serestas tradicionais, entrando nas casas que recebiam os músicos. O cheiro de lenha queimada, os peixes secando com sal no varal, os cachorros e gatos soltos, meninas com suas roupas tradicionais aproveitando o banho do mar, enquanto os meninos empinavam suas pipas ou jogavam uma bola, tudo isso fazia parte do cardápio da Trindade dos anos 70.

As praias eram tão desertas e paradisíacas… Não dava para acreditar. A piscina do Caxadaço, a praia de nudismo e a praia do meio eram locais que regularmente íamos em dias de flat, e todos os fins de tarde na cachoeira para tomar banho na piscina natural. O paraíso existia e o nome dele era Trindade.

As ondas ali não se restringiam ao Cepilho, onde o fundo era bem variável, e em algumas ocasiões a areia da praia sumia e as ondas ficavam ruins, com backwash. Então, íamos na praia Brava, que tinha uma laje no canto direito que quebrava em dias de ondas grandes. Havia as ondas do Caxadaço, o inter rocks, cujo nome original era Tubular Point, no meio das pedras, ao lado do Cepilho, chamado cemitério das baleias. Tinha a laje na frente dos ranchos, no meio da praia da Trindade tinha o point chamado Sapo, e a onda da praia do meio que quebrava de frente às cavernas dos Vikings, e assim por diante.

Já como locais do pico, no feriado de finados de 1977, organizamos o primeiro campeonato de surf da Trindade, o I Granja pro Contest, em homenagem ao nosso bairro em Sampa, a Granja Julieta. A minha vizinha Filomena me ajudou a organizar, e tinha até um jornalzinho.

Convidamos vários amigos, até aqueles que nem surfavam, e montamos um grande acampamento no Cepilho, um tipo Woodstock. Apareceu até um cantor famoso, o Dudu França, que acampou junto com a galera. Convidamos também como juízes – abrindo o pico a eles – o Marko Arambasic, Roberto Moura, que futuramente fez os filmes Surf Adventures, e o Claudjones.

O mar estava espetacular, com swell de 1,5 metro de sul, água azul e muitas direitas tubulares canalizando para dentro da pedra. Os juízes ficavam nas cadeirinhas no alto da pedra, onde hoje tem um bar irregular. O mar estava tão bom que gerou um motim, e os juízes abandonaram as posições e foram para água. O Marko Arambasic pegou uns “trocentos” tubos no Backdoor de direita, e assim o campeonato acabou e me sagrei campeão, pois tinha mais pontos acumulados. O Romeu Andreatta ficou em segundo e o meu irmão Albertinho, com apenas 13 anos, em terceiro, a revelação do campeonato e que mais tarde se tornou um dos melhores surfistas dessa onda.

O ano de 1977 também foi marcado por fortes conflitos. Algumas famílias foram expulsas da vila e foram morar na praia do Cepilho. Entre elas a família do seu Antonio e dona Clara. Pudemos passar bons tempos ali com eles, que tinham uma família grande. Lembro bem das garotinhas Preta e a Branca, o Alonso, a Claurides e um bando de cachorros e galinhas.

Lembro bem dos almoços servidos no fogão a lenha, e os peixes secando ao Sol, a bica canalizada do rio com uma mangueira preta e o cantar do galo ao raiar das manhãs. Nossas barracas e pranchas espetadas na areia eram tão habituais ali, que fazíamos parte da família. Enquanto para nós era mágico estar ali, para eles a situação era dramática, pois a vila da Trindade era o verdadeiro lar deles que estavam vivendo ali no Cepilho de forma compulsória.

Muitas pessoas estavam envolvidas para reverter essa situação e expulsar a empresa da Trindade, daí surgiu o movimento ‘Salve a Trindade’. Foi em maio de 1977 que o movimento “Salve a Trindade” entrou no seu auge, e no Dia das Mães, 13 de maio de 1977, a empresa foi definitivamente expulsa, e foi homologado que a Trindade seria área de preservação, com a caravana ecológica que lotou a Trindade de jornalistas, prefeito, pessoas envolvidas na proteção, ecologistas, humanistas e nós surfistas.

Foi servido um belo almoço caiçara a todos, num dia histórico, e as famílias expulsas poderiam voltar para as suas devidas propriedades, e o Cepilho passaria a ficar inabitado. E foi nessa caravana de 12 e 13 de maio de 77, com dias de sol sem nuvem, vento terral, água azul turquesa com temperatura em torno dos 22 graus, swell de 1,5 metro, fundo perfeito, que quebrou um dos mares mais clássicos da história do Cepilho. Surfamos sozinhos e entubamos muito nesse fim de semana – eu, Andy, Ilan e Augusto.

Com a volta das famílias para a vila, o Cepilho ficou deserto novamente. Surfar sem ver as famílias ali na frente, sem aquele cheiro de lenha queimada, sem as crianças brincando na areia, deu um vazio muito grande, mas a vida continuava, e as minhas explorações na região também. Começei a fuçar as praias dali, e também em 1977, eu e um amigo, o Paciléu, chegamos pela primeira vez na praia do Sono.

Fomos andando desde a Laranjeiras com quinhentas tralhas nas costas, prancha, barraca, sleeping bag, comida, roupas, fogão e botijão de gás, debaixo de uma garoa fria pela antiga trilha, e que era bem mais longa e acidentada que a atual, e ao chegar na praia fomos sumariamente expulsos pelo seu Félix, um capataz mal encarado da fazenda, e tivemos que entrar numa D10 e empurrá-la até Laranjeiras no meio da lama, pois nessa época havia uma estrada de carro.

Tentamos novamente voltar lá ainda em 1977 com nossas namoradas, aí sim o Félix nos permitiu ficar na escola e não acampar. Surfamos os Antigos e o Sono ondas lindas, com água quente e clara, mas fomos expulsos novamente pelo próprio Sr. Gibrailt, o alemão proprietário da terra, só que dessa vez de barco. Ele entrou numa casa que nos servia um almoço, brigou com a dona da casa, nos fez um sermão e disse para irmos embora após o almoço. Fomos, mas sempre voltávamos.

Nesse interim, descobrimos as direitas clássicas de Laranjeiras no costão, pois havia surfado lá em 75, mas sem ondas. Quase não havia me deparado com a direita clássica que eu e o Paciléu mantínhamos em segredo. Algumas vezes abandonávamos a galera na Trindade inventando uma desculpa, e íamos com o fusca azul calcinha dele surfar sozinhos em Laranjas point, com uma autorização que eu tinha para entrar no condômino para ir ao Sono.

Mas, não demorou muito para nossos amigos descobrirem, e aí a Laranjeiras fazia parte do nosso cardápio na região. Regularmente íamos surfar na praia de Camburi da fronteira e em 84 cheguei andando pela floresta em Martim de Sá, com um amigo e uma namorada, a Monika Buger e o André Paglioli, encontrando ondas incríveis e desertas.

Estávamos no fim dos anos 70 e o Cepilho continuava sendo nosso parque de diversão particular. Muitos dos nossos amigos já não iam mais no pico, mas eu e o meu irmão Alberto Alves, o Fernando Mesquita, o Romeu Andreatta, Madureira, Marko Arambasic, Renato Zimermann, Marcelo Diniz e o Uri Goldstein continuávamos locais assíduos.

Uma nova galera começou a frequentar o pico conosco – Motaury, Milton Del Carlo, Tucano, André e Daniel Paglioli, Tim, Marcelo Escobar Bueno. Eu já tinha feito 18 anos e tinha uma Kombi “casa”, mas o Alberto e amigos, que eram menores, ainda tinham que pegar aquele ônibus até Ubatuba, dormir na praça, pegar o ônibus da manhã para Paraty, descer na BR e ir a pé até a Trindade subindo e descendo a ribanceira com as pranchas e malas.

Outro amigo, o Roberto Tatini, que levei lá em 79 junto com o Tony, da Kaluama, e o Charlys Magno, arrumou uma namorada caiçara e deixava as pranchas na casa dela. Ele sempre ia de ônibus até Ubatuba, mas em vez de passar a noite na praça esperando o ônibus da manhã, o maluco ia de skate à noite até Trindade, percorrendo uns 50 quilômetros.

No início dos anos 80, as coisas começaram a mudar e novas invasões chegaram à Trindade, a luz elétrica e a televisão. Lembro no dia que passaram os postes de luz e o seu Antônio me confidenciava que tudo iria mudar, e que as crianças não poderiam mais empinar suas pipas, pois os fio elétricos eram perigosos, mas a TV foi mais.

As caiçaras pequenas, que vestiam vestidos longos tradicionais, cabelos compridos e cheio de cachos, em pouco tempo mudaram os visuais e hábitos, pois a TV trouxe uma invasora que mudou a rotina das crianças, o show da Xuxa. Foi impressionante isso! A droga, a bandidagem, a bebida, os bares começaram a aumentar, mas o Cepilho continuava pleno, com suas ondas clássicas, sempre com esquerdas à la Rocky Point nos dias de leste – na época do inverno, quando as ressacas jogavam mais areia no canto das pedras – e direitas incríveis nos dias de swell de sul. Nada abalava a majestade do Cepilho, e o crowd comum em Ubatuba ainda não tinha chegado ali.

Quando o asfalto chegou, aí sim, as coisas melhoraram por um lado e pioraram por outro. Enquanto ninguém ficava mais preso nos dias de chuva, as construções irregulares começaram a aumentar e o número de visitantes triplicou. Não havia ali nenhum controle sobre o crescimento irregular e mal planejado.

Em meados de 1984, eu continuava a surfar sozinho em Trindade, e mesmo já sendo um dos donos da Revista Fluir e um fotógrafo de surf, nunca me passava na cabeça fazer uma matéria em Trindade. Mesmo que eu procurava manter uma linha editorial nada convencional, onde nunca entregava o pico, sempre criando nomes fictícios dos points, não me passava na cabeça divulgar essa região.

Em 1985, em viagem ao Cepilho, o meu irmão Alberto e o Avelino Bastos estiveram lá surfando com o nosso fotógrafo Alberto de Abreu Sodré, o Cação, que fez altas fotos dos dois no Cepilho. Essas imagens chegaram à redação e eu particularmente não gostei. O nosso diretor de redação, o Xan Andreatta, achou que deveríamos fazer uma matéria, e todos aprovaram, menos eu. Como vi que não tinha jeito, tentei convencer todos para criarmos um nome fictício e não entregar os bois, mas não fui acatado. Fui voto vencido na redação.

A matéria saiu na Fluir, com o nome da Trindade, e isso foi um golpe de misericórdia. A revista saiu num meio de semana, e logo no sábado o Alberto desceu a ladeira na tranquilidade de sempre, como sempre fazia, parando o seu carro no pico sozinho, mas na última ladeira que avistava já a praia, tomou um susto absurdo. Viu estacionado uns 30 carros, e ao chegar no pico o mar estava repleto de surfistas, um crowd selvagem, e ele foi ignorado e rabeado no pico por surfistas vindo de diversos lugares sem algum respeito. Na segunda-feira, ele me ligou super chateado, indagando o que a Fluir fez com o pico.

A publicação da Fluir de fato acelerou um processo inevitável, mas o choque foi tão grande, que o Cepilho de paraíso virou, no prazo de uma semana, um inferno. Como o pico já estava entregue, as revistas da época publicavam fotos com frequência. Eu mesmo acabei levando surfistas para lá para fotografar.

Estive, numa ocasião, com Richard Dog Marsh, David Macauley, Jamie Brisick, Kaipo Jaquias e Peter Wilson, que elogiaram muito o power das ondas do Cepilho. Durante o Sundek Classic 87, presenciei ali um show de Todd Holland, Fabio Gouveia, Vetea David e outros. Trindade agora era um pico internacional, quem diria…

Com o tempo, Trindade, Paraty e Laranjeiras passaram a ter seu próprios surfistas locais, aliás, excelentes surfistas e amigos, com destaque para Nathan, Bruno, Maguinho, Dulmar e Paulinho Andrade, entre outros tantos.

Continuei surfando no Cepilho até 2012, e até hoje não voltei mais lá para surfar. O lugar nunca mais foi o mesmo. O crowd ficou indigesto. Montaram no Cepilho um restaurante irregular sem a mínima preocupação com o meio ambiente, bem em cima de onde acampávamos. O lugar onde morou a família do seu Antonio, hoje, é um estacionamento.

A vila da Trindade se transformou numa pequena cidade, cheio de lojas, lan houses, hotéis, restaurantes, sem a mínima preocupação com o meio ambiente e o urbanismo. Tiraram muitas árvores na frente da praia da Trindade para construírem comércios, acabaram com os velhos ranchos e que deram lugar a bares sem saneamento básico. A cultura caiçara do pescador foi realmente trucidada, embora alguns ainda continuem. A droga, a bebida, a bandidagem, o crowd na água cresceram e não param de crescer. Bom para os comerciantes, mas ruim para a natureza e a cultura caiçara, que foi abalada.

No movimento de 1977, “Salve a Trindade”, esqueceram que não só um empresa multinacional de loteamento era nefasta para a Trindade, mas esqueceram que o homem vindo de fora, com sua ganância e desrespeito à natureza e aos verdadeiros habitantes da Trindade, homens que se aproveitam da falta de fiscalização das autoridades ambientais, que fazem vista grossa aos crescimento irregular, buscando interesses próprios, destruíram e continuam destruindo o paraíso chamado Trindade.

O vídeo abaixo narra a história da resistência dos caiçaras de Trindade, Ponta Negra, Sono e Laranjeiras (Paraty) contra grandes empresas que tentaram se apropriar de suas terras na época da construção da rodovia Rio-Santos, durante a década de 70, no século passado. Conseguiram em Laranjeiras, apenas. Em Trindade, persiste o conflito com uma companhia fantasma, que não assume sua identidade, e parece aguardar mudanças na legislação do uso do solo, estabelecida em parceria com as próprias comunidades, pelo Plano de Manejo da APA de Cairuçu, sob administração do ICMBIO. O recente assassinato de um jovem Trindadeiro, Jaisson Caique Sampaio, o Dao, por policiais a serviço da “companhia” reacende o conflito, 38 anos depois.