Saí da festa de 50 anos do Carlos Burle, domingo passado, com o livro dele nas mãos e a certeza de que daria uma lida transversal nas 294 páginas antes de escrever a coluna. Não consegui. “Carlos Burle – profissão: surfista (Primeira Pessoa – Sextante)”, que será lançado nesta terça, às 19h, na Travessa do BarraShopping, no Rio, não merece o pobre instrumento das leituras dinâmicas.
Lido o primeiro capítulo, sobre a infância rica em sentidos num engenho de Nazaré da Mata, cidade pernambucana a 70 quilômetros de Recife, decidi respeitar a cadência dos escritos do surfista, que fez o livro a partir de depoimentos ao jornalista André Viana. É como respeitar a preparação para as ondas gigantes, remada a remada.
Do que já li e ouvi, do próprio Burle e de quem preparou o livro, são palavras sinceras. O mais importante surfista de ondas grandes da história do Brasil decidiu narrar sem filtros suas experiências, do sexo às drogas, dos descaminhos da infância aos caminhos de adulto, dos grandes acertos aos erros infames, dos medos assumidos à coragem de enfrentá-los e, claro, das ondas gigantes e dos caldos que enfrentou na vida.
Estão no livro a incrível saga do primeiro título mundial de ondas grandes da história, no México, e um sincero (e corajoso) mea-culpa dos erros cometidos no dia da quase-morte de Maya Gabeira e da maior onda que ele surfou na vida, em Portugal.
Burle não é um super-herói. Não existem super-heróis.
Numa das inúmeras vezes que estivemos juntos, há uns 15 anos, vivi um dia sem heróis e vilões com Burle e Eraldo Gueiros, eterno parceiro de tow in do biografado. A pauta, para um jornal do Rio, era a busca de uma onda de laje entre Grumari e Guaratiba, num dia de ressaca de Sul. À nossa disposição, havia apenas uma voadeira com motor de popa duvidoso.
Embarcamos, os três, pelo canto direito da praia, bem colado ao costão, numa zona relativamente abrigada das maiores vagas. O barco avançou num raro momento de calmaria. Tudo parecia correr bem, até que ouvimos o motor engasgar, bufar, hesitar. Ao fundo, uma série apareceu. Burle e Eraldo debatiam como consertar o motorzinho de 30hp enquanto a primeira onda, danada, deformava o horizonte.
Grudei as mãos na borda do barquinho de alumínio e botei uma perna para fora, à espera do naufrágio, mas a dupla deu um jeito de manejar a voadeira de modo a passar as duas primeiras da série no último suspiro, no instante final antes da crista virar espuma. No átimo seguinte, o motor resolveu acordar e conseguimos passar as demais ondas com mais conforto.
Burle e Eraldo sabiam dos riscos da escolha de um barco para águas abrigadas, com motor duvidoso e um repórter a bordo. Mediram os riscos – sabiam que eu surfava desde garoto, tinham consciência de que o mar não estava gigante e resolveram ir adiante. Bancaram, poderiam ter se queimado. Em algum momento, entendi que aquilo era, num certo sentido, o espírito do surfe de ondas grandes. Por mais que eles, dali em diante, se limitassem aos melhores equipamentos de segurança, com equipes bem preparadas e suporte de grandes empresas, ali, na remada final da montanha d’água, o risco será sempre iminente. E, nesse ambiente, não há heróis ou vilões. Há apenas sobreviventes.
Burle posiciona-se com honestidade entre esses dois mundos, ou melhor, entre todos os mundos de um cara real, com suas complexidades e virtudes. Não tem medo de se expor, de avançar sobre terrenos pantanosos e tabus. Por isso, minha aposta é num livro rico, uma biografia longe dos limites dos textos autorizados, verdadeira.
A quem dropar, boa leitura. E boas ondas.