“Deus escolhe a pessoa e dá o talento pra ela”. Foi assim que a nossa entrevista com Homero terminou no Museu do Surfe de Santos, naquela agradável tarde de inverno com as praias ainda fechadas sob decreto municipal.
As ondas entravam calmas próximo do Parque Quebra-Mar e o sol reinava soberano. À nossa frente, Homero mantinha-se iluminado enquanto relatava sua trajetória.
Para compreender o legado de Homero é preciso voltar ao passado. Ele é um autodidata que sempre busca inovações. Foi um precursor e um dos primeiros a fabricar pranchas e blocos. Um exemplo marcante da importância de Homero é o testemunho de Gary Linden.
O lendário shaper de San Diego esteve no Brasil no início dos anos 1970 e disse ter aprendido muito com Homero. Segundo ele, Homero tinha ideias e conceitos muito avançados para a época.
Homero é carioca. Viveu no Rio até os dois anos de idade. Em 1946 a família veio pra Santos. O pai de Homero, antigo funcionário do Cassino da Urca, virou dono de um bazar em São Vicente e vendia artigos de praia. Homero ganhava presentes da loja e sua vida mudou quando o pai lhe deu uma pranchinha pequena de madeira. Pegou gosto pelas ondas. Aquilo seria para sempre a sua vida.
Por volta de 1964, começou a produzir pranchas “caixa de fósforo”. Estava nascendo a SURMAR, primeira marca com a assinatura de Homero. Ela se tornou famosa e muita gente reconheceu a superioridade do modelo de Homero. Inventivo, ele substituiu o fechamento das placas de madeira com parafuso por um sistema de encaixe e vedação com cola. Mais leve, aumentou a flutuabilidade, tornando as pranchas manobráveis. Lá também foi feito o primeiro pranchão com bloco e resina para o amigo Zé Beto.
Da oficina caseira, Homero procurou um espaço para atender o aumento da produção. Na esquina da avenida Conselheiro Nébias com a Lobo Viana, existia uma casa e foi lá em um quarto alugado nos fundos que nasceu a SURMAR.
O cheiro e o barulho incomodavam a moradora da casa que passou a reclamar com o inquilino. Em 1967 Homero deixou a casa onde morava e passou a trabalhar em um cômodo no prédio dos Vergara na rua Prost Souza. Ele dormia no carro e trabalhava no espaço improvisado embaixo da escadaria com apenas uma lâmpada e uma mesa. Ele não precisava mais do que isso.
Nessa época começaram a se popularizar as pranchas de fibra. Homero se tornou um shaper. Ao contrário da produção industrial que usava molde, o artesão Homero modelava o bloco. A primeira prancha de fibra de vidro foi feita para o Junior Vergara. Nascia a marca Homero.
O negócio continuou crescendo. Homero inovava e a procura era cada vez maior. Ele expandiu os negócios para a avenida Epitácio Pessoa, 208. Um amplo espaço que pertencia ao Paulo Vergara. Era uma casa nos fundos de um amplo terreno.
As surf trips para desbravar novas praias e fundamentar a equipe fez parte de um processo que ia além da oficina e das competições. Grandes surfistas integraram e colecionaram títulos para equipe Homero Surfteam: João de Deus, campeão paulista 1970; Décio, campeão paulista 1971; Saulo Nunes, campeão do Torneio Internacional Cabalo de Totora 1972 e Orácio Moraes. E assim formou-se a lendária Homero Surfteam.
Muitos começaram a aprender o ofício com ele. Orácio Moraes foi o primeiro aprendiz. O rapaz começou como auxiliar, mas Homero viu a performance dele na água e se afeiçoou pelo jovem. Ele fez de Orácio um campeão e ofereceu o que tinha de melhor: seu poder de criação. Homero envergou o shape e criou o “bico de Alladin”. A prancha ganhou o nome de “Xperience” e foi motivo de graça, mas Orácio confiava no seu preceptor e venceu o campeonato. O primeiro aprendiz virou o campeão do Primeiro Torneio de Surfe do Canal 1, em 1973.
Homero fez do local um centro de referência, uma escola de ofícios. O SENAI do surfe. O mestre-artesão inventava e compartilhava conhecimento, criando oportunidades. Além disso, era um lugar aonde as pessoas e os surfistas se encontravam. A Epitácio Pessoa, no Conde do Mar, tornou-se em um pico de surfe fora da praia.
O lugar parece que foi ungido por aqueles que tiveram uma ligação com o mar. Nas proximidades do endereço, a região conhecida como Conde do Mar era o reduto da juventude e dos surfistas. Na orla da praia foi erguido um busto em homenagem ao Almirante Tamandaré, patrono da Marinha do Brasil.
A partir da década de 1970, a demanda aumentou e o fabricante de blocos Coronel Parreiras não conseguia atender aos pedidos de Homero. Ele enxergou a necessidade de fabricar os próprios blocos. Assim, o artesão passou a comprar matéria-prima na Dow Química e a produzir os blocos de poliuretano.
A fama de Homero ultrapassou limites e ele se tornou fornecedor para outros revendedores. Marcas e grifes surgiram e se fortaleceram com a qualidade de suas pranchas: Kamekameha, Gledson, Dhemy. A produção atingiu a escala industrial, sem abrir mão da supervisão e do tratamento artesanal de seu trabalho.
Homero seguiu criando. Foi contratado por um estaleiro em São Paulo para construir barcos. O último veleiro que construiu virou sua moradia por 15 anos, ancorado no Canal de Bertioga. Ele não tem faculdade. Visionário, tinha intuição e coragem de tentar e ousar.
Dentre suas inúmeras criações, destaca-se um sistema inovador e funcional, o jet-system. As quilhas deram lugar a buracos que canalizavam a água, dando projeção e controle. Com Homero tornou-se possível surfar sem quilhas.
Homero olha para mim. A minha expressão de espanto deve ter sido confundida com incredulidade. Homero pareceu não ligar, entendeu a minha reação e decifrou a minha última pergunta.
“As pessoas desconfiam que eu sou um escolhido. Deus escolhe a pessoa e dá o talento a ela. Eu trabalho pra Ele”.
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Foto de capa @shiroma_photoimage