Leitura de Onda

Não é sobre surfe

Frente a um circuito mundial desequilibrado por metas corporativas, cenários idealizados e o esporte em segundo plano, Tulio Brandão fala sobre transparência, julgamento e princípios básicos de governança.

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Norte-americano Griffin Colapinto é o campeão do El Salvador Pro 2022.

Griffin Colapinto, o vencedor da etapa de El Salvador, merece seu lugar na final da WSL. Está surfando muito, com linhas precisas, fluidez, velocidade, transições limpas, manobras progressivas e boa escolha de ondas. Estava, sem dúvida, entre os melhores do primeiro evento do CT na América Central.

A história que se segue, portanto, não tem relação com este excelente surfista. Colapinto fez o que dele se esperava: surfou muito mesmo.

Dito isso, todo o resto sobre a etapa é infâmia. Decidi me reservar ao direito de não discutir onda por onda, como sempre, porque é outro o problema.

A WSL se perde cada vez mais na tentativa de direcionar o esporte para suas metas corporativas, para seus cenários idealizados de um esporte com representantes de várias nações numa decisão única, desprezando as diferenças reais que surgem da essência da disputa, dentro d’água, ou a dominância, ainda que temporária, de um grupo de surfistas de um país.

Filipe Toledo fica com a segunda posição na etapa.

A entidade se arvora, ainda, a fazer um discurso moderno, orientado para as políticas ESG (sigla para Enviromental, Social, Governance), provavelmente atrás do dinheiro de fundos que exigem esses princípios, mas não consegue sequer atender aos princípios básicos de transparência, ao, por exemplo, não informar os nomes dos juízes – muitos deles fracos – que decidem o destino dos melhores surfistas do mundo.

Como se não fosse suficiente, a entidade mantém, ainda, critérios de julgamento extremamente genéricos e subjetivos, e joga qualquer decisão na conta do “speed, power and flow”. Como diz um amigo, com o livro de regras da WSL, qualquer um pode vencer uma bateria, a qualquer tempo. Basta interpretar.

Quanto mais detalhado e transparente é o processo de julgamento, menos margem há para erros. Os critérios devem ser balizadores firmes de decisões, e não ferramentas genéricas para escolher vencedores com base em interpretações largas.

Transparência está no guia de governança de qualquer empresa séria.

A WSL precisa, ainda, rever a autonomia dos juízes, comprometida pelo poder conferido ao head judge nos julgamentos da elite. Se no início essa figura era apresentada como um especialista capaz de reduzir discrepâncias, agora ele parece funcionar como um guia para recomendar vencedores. Suas posições não são públicas, e podem ser muitas vezes o ponto de partida do erro. A decisão precisa, urgentemente, passar a ser tomada por juízes bem formados e com liberdade para dar notas sem interferência externa.

É tudo sobre autonomia e responsabilidade pública pelas decisões.

Taça estampa nomes de todos os campeões da história.

Nessa construção cada vez mais frágil de candidatos ao título para a decisão de Trestles, o circo da WSL arma a sua lona em Saquarema, sob pressão máxima. Protestos pacíficos serão sempre bem-vindos, mas é absurda qualquer insinuação de violência da torcida mais fanática. Isso jamais foi solução real para nada no mundo, e no surfe não será diferente. Estupidez gera estupidez.

A despeito dos erros de julgamento, Filipe Toledo, vice da etapa, segue mais firme que nunca na liderança – embora com o carimbo de duas derrotas em finais para Griffin, com quem provavelmente disputará o título em San Clemente.

Gabriel Medina, derrubado injustamente na semifinal, parece irremediavelmente fora do Finals, mas, em duas etapas, demonstrou estar um degrau acima dos demais para 2023. No mundo dos justos, ele deve ganhar pelo menos mais um título.

Italo Ferreira, derrotado por Filipe na semifinal, voltou a estar perto do ritmo e da forma técnica que lhe deram o título de 2019. Com o terceiro posto em El Salvador, entrou para o corte dos surfistas de Trestles, mas terá que suar para se manter com a vaga. No caminho, estão os juízes da WSL, o excelente Ethan Ewing e, quem sabe, John John Florence, se conseguir voltar a tempo de J-Bay e Taiti. O havaiano, afinal, seria a cereja no bolo para o desejo de diversidade de bandeiras no Finals.

Não há mais o que dizer, desta vez. Que toque a sirene em Saquarema.

Praia de Itaúna recebe a elite mundial do surfe em Saquarema (RJ).