Leitura de Onda

Ele venceu os melhores

Tulio Brandão analisa melhores performances na largada do CT em Pipeline e enaltece campeão Jack Robinson, como um dos favoritos ao WSL Finals.

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Jack Robinson exibe maturidade competitiva e capacidade de crescer em situações adversas.

Estava escrito no fundo de Pipeline que o campeão sairia da inesperada chave da morte na primeira etapa do auspicioso CT 2023. Nem o swell sem pulso, a escassez de tubos e o excesso de areia no coral impediram a coroação de Jack Robinson. O australiano não foi campeão se esgueirando entre coadjuvantes – como tantas vezes acontece em competições. Ao contrário: venceu eliminando, em sequência, os dois grandes favoritos descolados do evento, Gabriel Medina e John John Florence, e de lambuja parou João Chianca, um cada vez mais forte protagonista do pico.

É hora de evitar ressalvas à vitória do australiano. “Ah, mas aquela nota 6 da final foi completamente descabida!”. Sim, foi, e eu disse o mesmo. Juízes erram, e, concordo, ele é um surfista recorrentemente beneficiado em baterias de resultado apertado. A gente sabe: australiano não ganha o CT faz mais de uma década.

Mas, ali, em Pipeline, o surfista nascido e moldado na selvageria de Margaret River venceria, de fato, o vice da etapa, Leonardo Fioravanti. Desta vez, estendam o tapete vermelho para o Jack, líder do circuito mundial e, desde já, candidatíssimo a Trestles.

Seus atributos, para além do surfe, ainda não foram devidamente jogados no holofote. O australiano tem uma incrível capacidade de concentração, combinada a uma fúria competitiva vista em muito pouca gente no tour. Antes das baterias, Jack tem sido filmado no ritual da respiração holotrópica, uma técnica de relaxamento e ampliação de consciência que usa ferramentas de hiperventilação.

Robinson aplica técnica de relaxamento e ampliação de consciência antes das baterias.

Durante a disputa, é muito fácil perceber que seu foco está afiado. Não comete erros, executa movimentos sempre precisos e caminha confortavelmente no limite da sua possibilidade técnica. Entropia mínima. Além disso, ele parece gostar de baterias difíceis, cresce na adversidade. Na entrevista logo depois da vitória sobre Gabriel, disse que preferiria ter enfrentado o rival nas fases decisivas.

O curioso é que, apesar da vitória incontestável, Jack foi campeão sem sequer uma onda na casa do excelente (acima de 8), embora tenha eliminado adversários que construíram essas notas durante a prova – como Gabriel, com um assustador tubo de costas para a onda sem mão na borda no round 32; John John, com um ainda mais assombroso canudo para Backdoor; ou mesmo Chianca, que abriu sua primeira bateria da temporada com uma bomba de 8,5 pontos.

Noves fora a certeza de que o australiano pode produzir, se tiver oportunidade, notas máximas com facilidade em ondas tubulares, sua lacuna de excelência neste Pipe acaba reforçando atributos de concentração e competitividade.

O swell torto e fraco, o fundo com excesso de areia e o vento errado transformaram o evento num pesadelo para diretores de prova. Desta vez, não há culpados. A natureza resolveu não colaborar mesmo. Na quinta, um amigo que ficou no arquipélago contou que Pipeline amanheceu com vendaval, chuva e sem onda. Fica ainda mais difícil para a organização quando se compara o evento deste ano com o de 2022, quando Kelly Slater venceu em condições épicas. Coisas do surfe. Num esforço de memória, já vimos outros Pipes infames. E o melhor, continuaremos vendo, até tocar a última sirene, não importa a condição do mar.

Aguerrido Leo Fioravanti leva Itália pela primeira vez a uma final no CT.

Leo Fioravanti levou a Itália pela primeira vez na história a uma final da elite do surfe. Isso não é pouco – quem aqui não se lembra da glória de Teco Padaratz e Fabio Gouveia nos idos de 1989/1990, nas primeiras finais e vitórias do Brasil na ASP?

Nascido em Roma, Leo já está acostumado a batalhas épicas para se manter na elite. Já sofreu contusões importantes, como em 2017, quando quebrou duas vértebras na mesma Pipeline que o consagrou esta semana, ou no fim do ano passado, época em que perdeu seu histórico patrocínio da marca Quiksilver. (Não é preciso dizer como estão os gestores da empresa depois de verem o pupilo romano chegando à final no primeiro evento de CT sem a logomarca no bico da prancha em 15 anos).

Leo fez campanha regular, sem um brilho excessivo, mas, assim como seu rival na final, com sua já conhecida fúria competitiva – que por vezes extrapola para o contato físico, como na disputa de remada com Cal Robson durante as oitavas. Começou apagado, derrotado no round eliminatório para o brilho de Gabriel e John John, e adiante sua chave foi mais tranquila que a de Jack, mas eliminou no caminho pelo menos uma aposta para a temporada, que surfa muito bem aquela arena: Griffin Colapinto.

A temporada de 2022 do italiano no Challenger Series foi irretocável. Além de ser o campeão, posicionou-se, em ondas distintas, como um dos poucos surfistas claramente superiores na divisão de acesso. Seu lugar está no CT – e aqui não tem cota de surfista italiano. Leo tem surfe mesmo, ainda que não seja progressivo.

Não será surpresa ver Ibelli brigar pelo título do Pro Pipeline nos próximos anos.

Daqui a alguns dias, em Sunset, onde surfa bem, ele tem a chance de se posicionar de modo confortável para o resto da temporada. A ver qual será o fôlego do italiano e de que maneira esse bom resultado pode soltar o seu surfe em 2023.

O Brasil ocupou as duas vagas do pódio de terceiro lugar do evento com surfistas de fora da lista de eternos favoritos da temporada, mas não em Pipe. Caio Ibelli e João Chianca, pela recorrência de boas performances em distintas condições do pico, carimbam seus nomes na lista restrita de nomes capazes de vencer a prova. Estarão sempre na briga. Não será mais surpresa uma vitória lá ao longo de suas carreiras.

Em 2023, Pipe viu um outro João em ação. Tão bom quanto o do ano passado, só que desta vez definitivamente mais focado em antes de tudo vencer baterias. Deu resultado. Ele parou na semi, para Leo, apenas porque o mar, a aquela altura um liquidificador de ondas fechadas e tubos esparsos, não lhe deu oportunidade.

Logo nas duas primeiras baterias, aplicou uma vergonhosa combinação de resultados em Kanoa Igarashi, surfista maduro apontado como candidato a uma vaga em Trestles. Na primeira, não eliminatória, marcou a soma 12,83 contra 1,0 do adversário. E, na segunda, já no round 32, fez média de 12 contra risíveis 2,87. A má qualidade do mar, sim, poderia justificar derrotas acidentais infames como as do japonês, mas duas vitórias seguidas sempre querem dizer alguma coisa. Ali, naquela condição de onda, João é superior. Ou mais que isso: é um dos melhores surfistas do mundo.

João Chianca mostra que é um dos melhores surfistas do Tour em ondas tubulares.

A cada etapa em Pipeline, Caio enriquece a sua já magnífica história. Depois da saga de 2022, quando saiu de uma quase aposentadoria para a consolidação na elite a partir de um convite de contusão da WSL, o paulista construiu uma nova odisseia na prova deste ano. Começou vencendo o venerado Kelly Slater, que defendia o cetro de campeão da prova, despachando-o para um seeding desconfortável.

(Aqui um rápido parêntese: parabéns para a WSL pela retomada do seeding reward, regra que premia o surfista vencedor da primeira fase com uma escalada no seeding e, pelo menos teoricamente, evita um confronto precoce com os melhores do mundo. Neste Pipe, porém, a combinação de surpresas da fase não eliminatória – com derrotas, por exemplo, de John John e Kelly -, associada ao seeding artificial de John John e Gabriel – que não estiveram entre os cinco melhores do mundo em 2022 por contusões -, bagunçou o chaveamento e gerou a chamada “chave da morte”.)

De volta a Caio, foi emblemática a entrevista que deu logo após a primeira vitória, em que relatou o seu esforço, inédito da carreira, de pré-temporada. Disse nunca ter realizado um treinamento físico e técnico tão intenso e que, por isso, ao entrar na água, sentia-se mais tranquilo do que nunca. Estava – e está – pronto para o ano.

Seu preparo técnico e emocional foi colocado à prova especialmente do round 32, contra o local Ezequiel Lau. Cometeu uma interferência tola, o que, nas condições difíceis de Pipe deste ano, praticamente inviabilizaria a vitória. Não desta vez: buscou uma nota 7 e deixou o havaiano precisando de um 3,51. Lau surfou para 3,10 e, já na areia, ao saber o resultado, Caio explodiu em alegria, como se tivesse feito, ali, as pazes com os infortúnios da carreira.

Quinto lugar é resultado satisfatório para Filipe Toledo na etapa de Pipeline.

Se repetir o resultado de Sunset ano passado, aposto que contará história diferente ao longo do ano, sem uma sucessão de derrotas precoces, como aconteceu em 2022.

Outras menções são necessárias neste primeiro evento do ano:

Filipe Toledo, que igualou seu melhor resultado na história da etapa, perdeu chance de ir mais longe, numa rara condição em que ele dominaria a onda de Pipe e Backdoor. Foi derrotado para Chianca por pouco. De todo modo, o quinto lugar é alvissareiro para quem domina a maior parte das próximas etapas do ano.

Gabriel deu um show nas primeiras fases do evento, mas não conseguiu se ajustar à prancha nas oitavas, contra Jack. Em 2023, num ano com tantos candidatos ao protagonismo no auge de suas carreiras, está claro que qualquer vacilo será fatal.

O evento feminino deu muito certo. As surfistas se adaptam cada vez mais ao surfe de tubos daquela arena e, este ano, tiveram o conforto de um swell mais fraco, ideal para o caminho de evolução. Destaques para a excelente bateria entre Lakey Peterson e Tyler Wright (vale rever no site), e, claro, para a campeã Carissa Moore, que começa a enterrar a derrota de Trestles, uma das maiores injustiças já cometidas pela WSL.

Qualquer erro pode ser fatal para Gabriel Medina em 2023.

Por último, mas não menos importante, Kelly. O campeão, aos 50 e tal e diante das instabilidade do swell, não resistiu. Está claro que ele precisará, neste ano, de eventos em condições épicas para sonhar com a vaga olímpica para Teahupoo 2024 pela WSL. A disputa dos americanos será dura, com muita gente em boa forma, no continente e no arquipélago. Há, ainda, o caminho incerto de uma terceira vaga pela ISA.

No mais, Sunset é logo ali.