Leitura de Onda

O implacável Robinson

Colunista Tulio Brandão considera justa e inquestionável vitória de Jack Robinson sobre Gabriel Medina em Teahupoo, Taiti.

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Jack Robinson, legítimo campeão do Tahiti Pro 2023 em Teahupoo.

Jack Robinson venceu Gabriel Medina de maneira justa e inquestionável, na final mais tensa do ano até aqui, que valia a última vaga disponível no WSL Finals. Tático, preciso, técnico e sobretudo, dono de um sangue mais gelado que as águas de Western Australia (como diz o velho amigo Diogo), Robbo optou pela guarda da prioridade e por uma criteriosa seleção de ondas para vencer o tricampeão.

Eis uma medida dessa estratégia: Robinson, em todas as baterias do evento, surfou apenas 26 ondas. Gabriel, apenas na semifinal e na final, 24.

Mas nenhuma análise estatística, isoladamente, daria conta de explicar o resultado. Afinal, com a mesma estratégia utilizada na final, de surfar múltiplas ondas e se desapegar da prioridade, Gabriel deixou seu rival John John Florence em combinação.

Ao mesmo tempo, é fato que Robbo tem sido mais mortal que os adversários ao adotar essa estratégia seletiva. Nas condições instáveis do dia decisivo em Teahupoo, numa bateria com dois surfistas igualmente capazes de produzir notas excelentes, a vitória costuma ficar com quem pegar a melhor onda.

Um outro aspecto tático que tem dado certa vantagem velada ao australiano é o timing de suas melhores ondas. Robinson não se importa em sair atrás do placar nas baterias. Pelo contrário, usa isso a seu favor, na construção de uma história de reação, que costuma sensibilizar juízes. Ao produzir seu resultado no terço final da bateria, ele oferece não apenas um xeque-mate ao adversário, mas também a quem dá as notas.

Imagina como seria mais difícil o julgamento desta final se Gabriel tivesse surfado a sua melhor onda nos segundos finais de disputa? Qual seria a encrenca desses juízes para tirar a vitória do brasileiro? Kelly Slater nos ensinou que construir grandes histórias é quase tão importante quanto surfar bem as melhores ondas.

Há, entre amigos, quem insista em desqualificar a subjetividade do julgamento, como se não fôssemos, nós mesmos e os juízes, sujeitos repletos de pontos de vista. Nunca é demais repetir: a decisão foi merecidamente para Robinson – mas não apenas pelo surfe, e sempre por tudo, e também pela bela história contada na final.

Para chegar ao primeiro (e esperado, pelas características de seu surfe) título na onda taitiana, além da vitória sobre o tricampeão, o australiano eliminou Yago Dora e Leo Fioravanti, dois surfistas até então no páreo por uma vaga para o WSL Finals.

Yago Dora exibe o refinamento adequado para se sentir confortável em Teahupoo. Ano que vem tem mais.

Yago: pronto para 2024

Yago estava na lista de Trestles até a última etapa. Perdeu a vaga, mas deixou excelente impressão, de um novo surfista “clutch”, capaz de virar sob pressão, agora bem mais competitivo, mas desde sempre dono de um refinamento técnico incomum. A virada sobre Kelly Slater, nos segundos finais, é para guardar na gaveta das melhores memórias. O americano vinha surfando bem, ao contrário do que aconteceu em toda a temporada, mas parou para a gana de Yago. Restou ao 11 vezes campeão mundial um aceno negativo com a cabeça, como se não concordasse com o resultado dos juízes. Um lampejo completo do velho Kelly, no jogo mental e no surfe.

Contra Robinson, Yago cometeu erros táticos, mas foi capaz de brigar pela virada na última onda. O vizinho lá de casa ouviu um berro quando a prancha saiu do pé do curitibano na volta do belíssimo aéreo de rotação na última onda. Lamentei muito pela eliminação de uma provável potência nas finais de Trestles e pelos juízes terem sido poupados de ter que julgar aquela onda com a manobra completa.

Leo Fioravanti encerrou a fantástica temporada com um terceiro lugar numa onda que domina integralmente, mesmo palco em que ele defenderá a bandeira da Itália nos Jogos Olímpicos de 2024. Na semifinal, perdeu para Robinson porque não achou a segunda onda. Na disputa olímpica do ano que vem, se a onda vier, não se surpreendam: pode vir junto uma medalha no peito do simpático surfista de Roma.

Gabriel Medina barra John Florence e faz a sexta final da carreira no Taiti, com duas vitórias e quatro vice-campeonatos.

Gabriel: um tombo, duas feridas

O tricampeão foi o mais insinuante e espetacular surfista do evento. Melhor que Robinson, mas, na final, não conseguiu reproduzir o ritmo de outras baterias. Na tal construção da história, o clímax do roteiro veio cedo demais, diante da necessidade de vencer Florence tão cedo, nas quartas-de-final da prova. A partir da semifinal, contra o havaiano Barron Mamiya, talvez por querer levar seus tubos a um limite extremo de profundidade, passou a errar com mais frequência no diálogo com a bola de espuma.

Abriu a final, no entanto, de modo muito consistente, dando a entender que dominaria mais um adversário pela estratégia do estrangulamento psicológico, diante das notas e da sucessão de ondas surfadas. Mas Robinson (mais uma vez contra brasileiros) seguiu impassível, um Bruce Lee, para no momento certo remar em duas ondas e virar a bateria. Implacável.

Vai haver quem diga que Gabriel merecia mais em sua nota na casa de 8, ou que as duas ondas de Robinson foram altas demais. Um erro. O australiano, como já explicado acima, escreveu com méritos a história de sua vitória.

A derrota de Gabriel não é apenas o quarto vice-campeonato do surfista em seis finais disputadas em Teahupoo (apesar das derrotas em baterias decisivas, ele é de longe o surfista mais vitorioso nos últimos dez anos por lá).

O tombo impediu, antes de tudo, que o mundo visse o tricampeão novamente em Trestles, desta vez com um belo desafio de recuperação pela frente: sair do último posto para o primeiro, a la Stephanie Gilmore. Não seria uma história pronta: afinal, o pico tem um dono atual e outros desafiantes, mas, sim, uma alternativa possível de roteiro para o WSL Finals. Para tristeza de quem gosta de surfe e alegria dos adversários, o tricampeão não poderá sequer tentar este caminho em 2023.

Robinson e João Chianca, os dois últimos classificados, também podem surpreender rivais nesta mesma jornada para o título mundial. Quem está lá, pode. É fato, no entanto, que, se o Finals fosse numa onda oca de consequência, ambos despontariam como favoritos destacados. No parque de diversões de San Clemente, no entanto, será uma surpresa vê-los chegar longe.

Alguém pode lembrar da vitória de Robinson no México, mas naquela etapa ele não foi nem de longe o melhor surfista. Não o julgariam com tanta condescendência em Trestles, sobretudo pela posição que o australiano ocupa no Finals.

De volta a Gabriel, o tombo gerou outra ferida: a impossibilidade de o tricampeão alcançar a vaga olímpica pelo critério da WSL. Os dois postos ficaram com Filipe Toledo e João Chianca, pelo surfe que fizeram durante toda a temporada.

Agora, resta ao tricampeão uma possível terceira vaga concedida ao país vencedor por equipes no ISA Games de Porto Rico, ano que vem. Mas qual será o critério para a concessão da vaga? Terceiro melhor brasileiro? Dono de mais títulos? Ou, a favor de Italo Ferreira, um prêmio ao atual campeão olímpico? Outra questão: como convencer adversários a competir numa seletiva em busca da tal terceira vaga para concedê-la ao surfista mais dominante da arena olímpica de Teahupoo? Complexa a questão.

Filipe Toledo não brilha em Teahupoo mas volta no ano que vem para tentar o ouro olímpico.

De volta a Chianca e Filipe, no Taiti, ambos estiveram apagados.

Chianca foi precocemente derrotado na repescagem por um dos locais assombração de tops, Kauli Vaast. Mereceu muito a vaga nas finais, pela extraordinária campanha na primeira parte do ano. Um prêmio importante para um grande surfista, que parece estar apenas no início de uma possível vitoriosa carreira na elite. Há alguns ajustes a fazer para, nas próximas temporadas, brilhar numa diversidade maior de ondas.

Filipe, depois de confirmar a condição de número 1 para Trestles, deliberadamente preferiu não correr mais riscos na etapa. Pareceu querer perder a bateria de oitavas para outro local, Mihimana Braye. A sensação era a de que o atual campeão mundial ficaria triste se vencesse a disputa.

A contusão de Ethan Ewing nos treinos do Taiti, que provavelmente vai tirar o australiano do WSL Finals, pode ter influenciado a decisão. A aparente lógica de Filipe parece pertinente, se vista apenas do ponto de vista da estratégia para Trestles.

A questão é que o campeão não demonstrou, até hoje, dominar Teahupoo. E, em 2024, ele terá naquele pico uma rara janela de medalha olímpica. Aí voltamos à importância da construção de histórias: olhando por uma perspectiva menos estratégica, ele talvez tenha perdido boa oportunidade de romper com os insucessos recentes no pico e de tentar construir, com desprendimento e esforço, uma nova relação com o Taiti, aproveitando o holofote da etapa da elite.

A favor dele, está o largo tempo até os Jogos: Filipe tem quase 1 ano de janela de treino para se internar no Taiti com os amigos locais e sair de lá pronto para reverenciar Barão de Coubertin. Talento, como já dito inúmeras vezes nesta coluna, não falta ao ubatubense. Ao contrário, sobra. Chegou a hora de acabar com a sina.

João Chianca também está classificado para o Finals e pode ser o cara em Trestles.

A dinâmica de Trestles

De volta ao conforto de San Clemente, se Ethan realmente não estiver em condições e se Chianca ou Robinson não resolverem quebrar o Fantasy, ainda vale o que escrevi na coluna da etapa de El Salvador.

Isso, claro, se Ethan realmente não estiver em condições. E se Chianca ou Robinson não resolveram quebrar o Fantasy e as casas de aposta do mundo.

O roteiro parece consolidado para uma disputa de locais, mas entre duas nações, se é que isso é possível. De um lado, Filipe, comandante incontestável da temporada de 2023 e melhor surfista daquele pico; de outro, Griffin Colapinto, um dos únicos no mundo capazes de confrontar o talento do brasileiro naquela onda, que terá a seu favor uma vontade subliminar do circo de ver novamente um campeão mundial nascido na cultura continental dos Estados Unidos.

Filipe, portanto, não poderá surfar para vencer na casa dos décimos. A briga vai ser dura, mas levo fé no já confirmado poder de decisão do campeão. Afinal, o surfista mais moderno do mundo é também um demolidor de finais.

Que toque a sirene de Lowers.

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