Seguimos com nossas matérias sobre shape e design para dar uma ajudinha aos leitores do Waves na hora de escolher uma boa prancha. Nesse contexto, certamente o bottom (fundo), desempenha um papel crucial na determinação de como ela se comporta na água.
Há uma lenda que diz: a prancha pode estar toda torta, mas se o fundo estiver bom, ela anda. Concordando ou não, o segredo de uma boa prancha começa no fundo. Surfistas e shapers frequentemente experimentam várias formas de fundo ou bottom – como é chamado entre os shapers – para alcançar características específicas: velocidade, controle e manobrabilidade.
A seguir, algumas formas comuns de fundo e combinações encontradas no design de pranchas de surfe. Procuramos associar os fundo a atletas, pranchas e fatos que sirvam como referência, além claro, da opiniões de shapers.
(Surfing Way Of Life de Phil Wilson – filmado em 1965 época dos fundos flat).
FUNDO FLAT – O primeiro fundo a ser utilizado em pranchas de surfe. Esse fundo, apesar de atualmente ser muito pouco usado, se combinado a alguns fatores, entre eles pouca curva de fundo (rocker) e um posicionamento de quilhas adequado, já fez muita gente andar bem.
Principalmente se considerarmos que o surfe da época dos fundos flat, tinha outra abordagem – muito menos radical. As primeiras experiências com pranchas de fibra, lá pelos idos de 1960, mostram isso. Um fundo flat proporciona estabilidade e velocidade razoável, sem aquele drive extra que nos acostumamos com a evolução do concaves.
Atualmente esse tipo de fundo pode ser encontrado em pranchões, versões alternativas de fishs, pranchas retrô. Em pranchas de alto desempenho, ou mesmo as releituras, esse bottom é descartado. Podemos defini-lo como sendo de manobrabilidade limitada em comparação com formas de fundo mais complexas.
(Modelo “Uber Twin” Cabianca começa com um single concave, entra em um double e sai em V no final da rabeta).
V-BOTTOM – Normalmente usado entre as quilhas, auxilia na troca de borda para borda. O V-bottom, como o nome diz, é um fundo em V. Podemos dizer que depois do fundo flat, ele foi a primeira evolução em termos de design e até hoje é utilizado: com variações e da mesma forma que foi criado.
Talvez o V, por conta das várias combinações com as quais se encaixa, seja o fundo mais utilizado até hoje. Os V foram recurso fundamental para o estilo de surfe mais voltado para manobras, que surgiu na metade da década de 1960.
Inicialmente composto por dois caimentos nas bordas, formando um V a partir da longarina, angulados, que se encontravam no centro e corriam longitudinalmente pelo terço traseiro da prancha, o design inspirou a criação de um modelo de prancha de surfe com o mesmo nome pelo lendário shaper australiano Bob McTavish.
McTavish investigou ainda mais o desempenho de seu amigo e colega fabricante de pranchas, o kneeboarder californiano George Greenough. Em março de 1967, ele implementou o design do fundo em forma de V em sua primeira Plastic Machine – uma prancha de 9 pés x 23 polegadas que apresentava uma amplitude de manobrabilidade sem precedentes e, posteriormente sendo aprimorada para comprimentos mais curtos, desencadeou a revolução das shortboards.
(Bob McTavish surfing in Fantastic Plastic Machine 1969).
CONCAVES – A REVOLUÇÃO MAIS SIGNIFICATIVA DOS ULTIMOS TEMPOS – Talvez o primeiro registro que tenhamos de fundos côncavos em pranchas de surfe, seja quando em 1972, os irmãos californianos Malcom e Duncan Campbell desenharam a Bonzer: modelo de três quilhas, no qual duas quilhas laterais parecidas com lemes ficam ligeiramente à frente da quilha central grande, e dois concaves percorrem as seções do meio e da rabeta.
Alegava-se que o design era mais rápido e mais manobrável do que as pranchas padrão de uma única quilha, mas o fato é que as bonzer seguem sendo pranchas muito pouco usadas e consideradas alternativas.
(Vídeo Bonzer).
Após as Bonzer, houveram algumas experiências no que diz respeito a fundos côncavos. Entre elas a concepção da the Tri-plane hull por Al Merrick (que popularizou esse tipo de prancha nos anos 1980, imas que foi introduzido pela primeira vez pela Hobie Surfboards em 1968, depois retrabalhado pelos modeladores Jeff Ho e Mickey Fremont no final dos anos 70).
Esse fundo compreende em dois concaves ao longo de toda a prancha, bem marcados, como se fosse dois double concaves unidos . Nesse caso o fundo côncavo é flanqueado em ambos os lados por superfícies planas que se estendem até as bordas, causando menos perda de velocidade do que uma prancha normalmente plana na parte inferior. Esse fundo também não se popularizou, apesar de ter tido experiências bem sucedidas. Provavelmente, as curvas e plugs utilizados à época, não se encaixavam com esse tipo de fundo. (assista ao vídeo e entenda melhor)
Saiba mais sobre a Inferno 72.
Mas a popularização total dos concaves, mais uma vez, passa pelas mãos de Al Merrick. No caso em suas mãos e nos pés de Kelly Slater e da chamada Geração Momentum, em 1991. O bonde puxado por Kelly também contava com Andy Irons, Taj Burrow, Rob Machado, Shane Dorian, Ross Williams, Taylor Knox, Shane Hering, Shane Powel, CJ Hobgood, todos municiados de suas pranchas super estreitas e finas: shapes que tinham em média 17′ 1/2″ a 18′ de meio, e menos de duas polegadas de espessura.
No bottom, sempre um concave fundo, combinados a muita curva de rocker, conceito totalmente contrário do usado atualmente, no qual as pranchas são menores, mais retas, e mais robustas.
Na prática, a capacidade dos concaves de canalizar a água sob a prancha ajuda a criar sustentação, dar pressão, e reduzir o arrasto, resultando em um aumento na velocidade e na resposta da prancha.
Os concaves tornaram-se uma característica comum em muitos designs de pranchas de surfe modernas, utilizadas em diferentes combinações com outros elementos de design, como rockers e outlines, para atender às necessidades específicas dos surfistas em diferentes condições de onda.
(Marcio Zouvi fala sobre a Inferno 72).
SINGLE CONCAVE: Procurado pelos surfistas mais experientes por ser o mais veloz e deixar a prancha mais dura, com drive. Pode ser aplicado em toda extensão da prancha (full concave), só no meio (concave) ou ainda só na rabeta (tail concave).
Um concave simples é uma “vala” em forma de V invertido (o oposto do V-Bottom), que percorre quase todo o comprimento de uma prancha e tem o objetivo de manter o fluxo de água contínuo, aumentando a pressão e a velocidade na resposta das acelerações.
Projetado para permitir que a água passe sob o bico, depois meio, e flua diretamente pelas quilhas e rabeta da prancha, o single concave proporciona um surfe rápido e direcional, sendo perfeito para ondas grandes e limpas, mas há adaptações, como a suavização de sua profundidade, que podem gerar excelentes resultados em ondas pequenas, mexidas e fracas. Tudo depende dos ajustes que o shaper fizer.
(Guga Arruda fala sobre pranchas de alta performance).
DOUBLE CONCAVE esse fundo compreende em dois côncavos, uma de cada lado da longarina, iniciando no meio do shape e alongando- se até o final da rabeta. Esse seria o double mais tradicional.
Contudo, há outras possibilidades, como o double concave que vai desde o bico até a rabeta. Apesar de pouco usual, esse tipo de fundo pode ser aplicado e pode funcionar muito bem. Uma combinação bastante utilizada nas pranchas de hoje é o single to double, combinação do single concave com o double.
Nesse caso o single começa no bico se se funde com o double em direção à rabeta. O double concave deixar a prancha um pouco mais solta, sem perder pressão.
A Power Light trabalha com configurações inovadoras que combinam carbono e madeira
SINGLE > DOUBLE CONCAVE – O concave simples para duplo é extremamente popular nas pranchinhas modernas de alto desempenho. A fusão do double com o single, tem como principal função, aliar a pressão do single, com a manobrabilidade do doube.
O princípio desse fundo visa fundir o double concave na parte de trás, iniciando perto das quilhas e acabando no finalizinho da rabeta, assim, quando um surfista realiza uma curva, a água será direcionada em duas direções diferentes, proporcionando uma sensação de uma prancha mais solta e manobrável, com velocidade.
A maioria das pranchas modernas de alto desempenho usará a combinação de concave simples e double. Ter a velocidade de planeio do concave simples e a “soltura” do double realmente faz a diferença em termos de desempenho.
(Gabriel Medina utiliza entre outros, o single to double).
Saiba mais sobre o shaper Johnny Cabianca
CANALETAS Em 1965, Greg Noll shapeou duas ranhuras rasas, uma de cada lado da longarina, em seu modelo semigun e em versões selecionadas de seu modelo Da Cat, chamando isso de ‘Slot Bottom’ (Fundo com Entalhe). É discutível se essas ranhuras se qualificam como canaletas.
Em 2016, Noll disse ao site Swellnet que fez isso apenas como um truque para vender pranchas – mas a lenda havaiana Ben Aipa dá os créditos das canaletas a Noll. “Aquilo foi o nascimento do fundo com canaletas”, disse Ben Aipa sobre os entalhes de Noll. “A ideia pode ter vindo do passado – talvez de Simmons ou Blake – mas Greg foi o primeiro a incluir o entalhe como um elemento de design em pranchas de produção.”
Noll construiu pranchas com Slot Bottoms por apenas dois anos, 1965 e 1966, e apenas em pranchas selecionadas. Outros shapers, como Dewey Webber e Dale Velzy, contornaram a parte inferior de uma prancha, mas Noll foi o primeiro a ter as primeiras fotos conhecidas.
Após 1966, a ideia desapareceu por quase uma década antes de ressurgir em quatro locais diferentes na costa leste da Austrália, aproximadamente ao mesmo tempo.
(Matt Hoy em ação com suas canaletas).
Atualmente as canaletas ficaram relegadas às pranchas chamadas alternativas, contudo, nos anos 1980, houveram muitas experiências com canaletas de todos os tipos: quatro canaletas, seis canaletas, canaletas no meio da prancha, canaletas saindo na rabeta.
Hoje há algumas combinações com canaletas e concaves, canaletas únicas saindo na rabeta, entre outros tipos. O fato é que em se tratando de design de pranchas, os testes nunca se esgotam.
Entre alguns surfistas que usaram bastante esse tipo de prancha, podemos citar o australiano Matt Hoy, um daqueles aussies da geração rebelde da Austrália que nunca foi campeão mundial, mas que carimbou de forma contundente sua história no esporte.
(Prancha Crazy Wave da Pro Ilha tem uma canaleta suave).
SINGLE > DOUBLE > VBOTTOM Às vezes, um shaper decide utilizar três fundos diferentes na mesma prancha. Começando com um concave simples na frente, para um bom fluxo de água e velocidade, um double perto da rabeta para maleabilidade e velocidade, e depois um pouco de V na rabeta, apenas para uma manobrabilidade adicional. A teoria aponta para uma prancha solta, veloz e versátil.
Contudo, a grande dificuldade de um shaper, é saber equilibrar elementos. Nesse contexto podemos dizer que a receita: bottom, rocker, colocação de quilhas, espessura, outline, material utilizado, bordas, faz total diferença entre uma prancha mágica e um toco. O ideal é experimentar sem preconceitos, sempre tendo um shaper fazendo os ajustes. A eterna busca pela prancha mágica também continua.
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