A onda de Molly Picklum não me sai da cabeça. Que pancada. Demorei para entender como ela fez aquilo. Demorei ainda mais para aceitar como aquela revolução em formato de batida não mereceu um dez unânime. Não lembro de ter visto ataque semelhante em Sunset – entre homens e mulheres.
A nova geração feminina, agora liderada pela inspiradora australiana de Gosford, é o guarda-chuva de novidade e fantasia em que me abriguei nessa decepcionante temporada havaiana, pelo menos para brasileiros.
Sejamos justos: em Sunset, no masculino, Jack Robinson também nos concedeu momentos mágicos. Na boa escolha do dia decisivo, em ondas sólidas delineadas por uma brisa de trade wind, o australiano deu mais uma mostra de como domar, com um surfe refinado e leve, a onda grossa de águas profundas mais famosa do mundo.
Robbo é um profundo conhecedor de ondas de verdade. As paredes que lhe renderam a vitória, desde as quartas-de-final contra Italo Ferreira até a final em que jogou Kanoa Igarashi em combinação, não surgiram na sua frente por acaso. Há diversas camadas de técnica ali, como posicionamento, ponto de remada, atitude, trilho escolhido, etc.
Isso vale muito. E, claro, é um recado para quem não se dispõe a entender Sunset.
Kanoa, o vice, extraiu o resultado de sua incrível concentração e sua disciplina quase ninja. Na pré-temporada, internou-se em treinamentos intensivos e, já na segunda etapa do ano, colhe frutos iniciais. O resultado foi uma surpresa, já que ele não estava entre os mais brilhantes no dia decisivo e segue, em alguns movimentos, abusando do fundo da prancha, em detrimento da borda. Ainda assim, se vira.
John John Florence, o novo dono da camisa amarela, é outro que dá gosto de ver em Sunset. Os caminhos encontrados pelo havaiano naquela massa d’água são criativos e, assim como Robinson, revelam o seu domínio pleno daquele espaço.
Florence surfou o fino mais uma vez e, apesar da derrota precoce para um renovado Jordy Smith nas quartas, sai do Havaí onde merece estar: na liderança.
Já o sul-africano, que parou nas semis para o competitivo Kanoa, renasceu depois de anos de hibernação quase completa, quando dava a crer que tinha sucumbido definitivamente ao domínio brasileiro. Dono de um dos mais belos estilos do tour e de uma linha de onda irretocável, de poucos e precisos movimentos, Jordy surfou e competiu bem tanto em Pipeline quanto em Sunset.
Sua intimidade com Oahu, construída à base de esforço e tempo, desta vez rendeu frutos. A elegância que lhe falta fora d’água, onde se enrola com declarações pouco respeitosas aos adversários, sobra no momento em que sobe na prancha.
Sei que ainda é ridiculamente cedo para isso, mas deixo uma lembrança: Jordy sempre foi um dos melhores do mundo em Trestles. Já venceu no pico e tem um domínio absoluto daquela condição fun de mar, que de algum jeito lhe remete à sua Durban natal. Ainda que ele não tenha o jogo aéreos atualizado, se conseguir se meter entre os cinco finalistas do ano, o tabuleiro de favoritos terá que ser rearrumado.
Ryan Callinan, o único sobrevivente goofy na semifinal, deu uma valiosa lição aos surfistas de base esquerda de todo o mundo – inclusive os revelados em nossos trópicos. Sua onda nota 9 das quartas merecia mais décimos e, mais importante, a atenção da turma que insiste em surfar com o fundo da prancha de costas para a onda. Ryan deu uma lição de jogo de borda no ataque de Sunset.
Italo salva, no modo Italo
Uma rara boa notícia em meio ao tombo brasileiro foi a performance de Italo Ferreira no arquipélago. O campeão de 2019, de volta à plena forma, vence com armas particulares. Feliz, enérgico, veloz e potente, ele encontrou meios de se adaptar com pranchas grandes e de atacar com precisão o lip de Sunset.
Venceu a maior parte do confronto com Robinson, nas quartas, e só foi derrotado para a melhor onda do evento na minha visão. Se o potiguar ampliar o uso de borda nas manobras em Sunset, entra definitivamente para o time de favoritos da onda.
A temporada segue agora para Portugal, arena dominada por Italo. Lá, ele tem tudo para confirmar sua condição de candidato brasileiro a um lugar em Trestles.
A tempestade brasileira em sua maior crise
Seria exagero vaticinar o fim da tempestade brasileira. Afinal, os cumulus nimbus ainda estão vivos, apenas pouco ativos. Mas, não há dúvida, a sucessão de fatos ocorrida neste início de temporada põe em xeque esse histórico de domínio.
Foi uma tempestade perfeita às avessas.
Primeiro, João Chumbinho quarto do mundo em 2023 e surfista olímpico, sofre um gravíssimo acidente. Torço muito pela sua recuperação, mas o fato é que sabemos muito pouco sobre recuperação e data de retorno. Além da ausência sentida de um grande surfista, há um óbvio tombo emocional de todos os brasileiros que integram o WCT com o drama vivido por João.
Depois, numa bizarra sucessão de más notícias, durante a etapa de Pipe, o melhor surfista do mundo, Filipe Toledo, desiste de uma bateria sob a justificativa intoxicação alimentar e, na semana seguinte, anuncia que vai se retirar da temporada. Perdemos o cara que vinha ditando, na elite, o modo de fazer mais contemporâneo do esporte.
Não há qualquer exagero em dizer que ele liderava o Brasil. Ou, mais que isso, o surfe.
Com a temporada ligada, as expectativas se voltaram para Gabriel Medina, surfista de costas largas que sempre aguentou a pressão de Oahu. Mas, estranhamente, o tricampeão fez duas de suas piores apresentações da carreira, do ponto de vista técnico, tanto em Pipeline quanto, agora, em Sunset.
Gabriel jamais declarou amor por aquelas direitas volumosas, mas parece ter iniciado a temporada sem a sua incrível capacidade de se adaptar às distintas condições de mar. Ele sempre foi o melhor nesse quesito e, desta vez, sucumbiu grosseiramente aos desafios de Oahu. Em Sunset, errou, de modo estranho, manobras que costuma dominar, e pareceu novamente não estar em seu modo de fúria competitiva.
De longe, Gabriel parece viver boa fase na vida. As derrotas não aparentam abalá-lo como no passado – isso pode ser uma dádiva para a saúde mental, mas no mortal ambiente competitivo do surfe, às vezes não dá certo.
Se é um cansaço legítimo de uma vida dedicada à extenuante obrigação de ser o melhor do mundo ou apenas um desligamento temporário, típico de início de temporada, saberemos adiante. Por ora, em 26º no ranking, o tricampeão tem como meta imediata se livrar da ameaça de degola no corte. Depois, pode pensar em ser campeão novamente. A porta continua aberta.
Neste momento, ele está na água em Porto Rico, atrás da vaga nos Jogos de Paris. Se conquistar esse objetivo primário, temos uma ideia do que ele será capaz na volta ao circuito mundial.
Na sequência de surpresas não esperada, chegamos a Yago Dora. Sua notável evolução técnica nas últimas temporadas nos levou a incluí-lo na lista restrita de candidatos reais ao título de 2024. Depois de um não mais que razoável nono lugar em Pipe, Yago entrou para a lista dos que brigaram com as condições de Sunset.
Entendo o desespero incontido da falta de oportunidades em condições muito difíceis, mas não convém, jamais, culpar o mar grosso de Oahu pelas derrotas. É mais fácil trabalhar para conquistar os atributos necessários ao campeão do pico, já listados.
A temporada ainda pode ser generosa com Yago. Para mim, o filho do eficiente treinador Leandro Grilo é hoje o goofy com o mais completo jogo de borda em esquerdas de manobra no mundo. A abordagem de backside também foi bastante refinada nas últimas temporadas. Em outras palavras, ele está pronto.
Assim como Gabriel, começa o seu caminho de recuperação na temporada com a disputa pela terceira vaga olímpica para o Brasil. Se terminar na frente do tricampeão, ganha, com toda uma legitimidade, a vaga em Paris 24. E, na espiral positiva, Yago também será um surfista difícil de ser batido.
Como se não bastasse a sucessão de tombos, mesmo surfistas com excelente histórico na perna havaiana, como Caio Ibelli, sucumbiram cedo nas duas etapas.
A boa notícia é que, sempre mudam os ares, há uma nova possibilidade de tempestade. Vamos esperar que as nuvens se formem do jeito certo na sempre instável onda de Peniche.