Marcio Zouvi

Shaper do olhar afiado

Confira entrevista com Marcio Zouvi, shaper brasileiro mais requisitado do Circuito Mundial de Surfe.

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Marcio Zouvi cuida da logística das pranchas nos bastidores do CT

O carioca Marcio Zouvi, 57 anos, fundador da Sharp Eye Surfboards, começou sua jornada no Brasil consertando pranchas. Ele é o típico carioca: nasceu em Copacabacana, morou na Gávea e em seguida mudou-se para Jacarepaguá, bairro onde ficou até migrar para os Estados Unidos em no início dos anos 1990 para aprender a falar inglês.

Na Califórnia, ele começou a trabalhar em fábricas de pranchas, aprimorando suas habilidades e conhecimentos. Ao longo dos anos, Zouvi teve a oportunidade de observar e se inspirar no trabalho de diversos shapers renomados, como Rusty, Al Merrick, Gary Linden, Greg Webber e Byrne. Ele destacou a importância de cada shaper em sua época, influenciando e moldando o design de pranchas para se adequar ao estilo de surfe contemporâneo.

Boards Co, Arpoador, Rio de Janeiro (RJ)

Em relação ao uso de pranchas alternativas, Zouvi acredita que, embora sejam divertidas e adequadas para certas condições, elas não substituirão as pranchas modernas de alto desempenho. Zouvi ressalta a importância de adequar o design da prancha ao estilo de surfe e às condições da onda.

Quando questionado sobre a evolução das pranchas, Zouvi enfatiza a importância do material, destacando a inovação trazida pelo carbono e outros materiais avançados. Ele menciona que, embora haja espaço para melhorias no design, a evolução do material desempenha um papel significativo na otimização do desempenho das pranchas.

Filipe Toledo e seu pai, Ricardo, com os foguetes preparados para o Quiksilver Pro Gold Coast.Arquivo pessoal
Filipe Toledo e seu pai, Ricardo, com os foguetes preparados para o Quiksilver Pro Gold Coast.

Fale sobre seu começo como shaper:
Eu comecei no Brasil, não como profissional, mas fazendo alguns consertos e até arriscando alguns poucos shapes. Eu estudava e comecei a consertar pranchas e comecei em meados dos anos 1980. Recentemente eu até trouxe uma dessas pranchas antigas aqui para a Califórnia e percebi que tinha até alguma qualidade. Sempre fui um cara que observava muito as pranchas, as linhas dos shapers, e saiu uma prancha razoável.

Quando eu vim para os Estados Unidos para aprender inglês, isso no início dos anos 1990,  dei um rolê em algumas fábricas com o intuito de começar a trabalhar com pranchas.  Consegui um emprego consertando pranchas e aí fui aprimorando. É lógico que a diferença era grande, pois havia materiais, ferramentas, e muita coisa que eu não conhecia.

Marcio Zouvi e Tatiana Weston-Webb em um momento de descontração.

Eu trabalhava nessa fábrica que fazia desde o conserto até as pranchas para vários shapers e ali eu fui aprendendo mais. Eram pranchas de muitos shapers, de todos os tipos e tamanhos. Eu via desde guns, pranchas normais, longboards, funboards, todas pranchas de ponta de alto nível. Então eu comecei a ter acesso a uma quantidade enorme de designs. E ali eu comecei a fazer minhas próprias pranchas. Eu fundei a Sharp Eye em 1993.

Você é de que parte do Rio?
Meu pai é de Copacabana e nasci lá. Ele jogava vôlei e eu ficava na praia desde moleque. Depois a gente mudou para a Gávea e de lá, quando eu tinha 15 anos, meu pai decidiu que iríamos nos mudar para Jacarepaguá porque ele não queria mais morar em apartamento, e iríamos morar em uma casa.

E ali em Jacarepaguá eu comecei a frequentar a praia da Barra da Tijuca, onde surfava direto. Meu contato com pranchas de surfe no Brasil não foi nada profissional, mas cheguei a comprar blocos na Clark Foam, conheci bastante gente, mas nada profissional, era um lance bem artesanal.

Quais são os shapers que são referência para você?
Hoje em dia já não dá mais pra dizer isso. Porque cada shaper viveu uma época na qual teve destaque. Alguns pela inovação, ou pela maneira de interpretar o surfe de sua época. Porque o surfe vai evoluindo, então os atletas daquela época demandavam um tipo de design que fazia com que eles conseguissem fazer o surfe daquela época.

Quando eu cheguei nos Estados Unidos quem estava no topo era o Rusty, o Al Merrick e o Gary Linden. São essas três marcas que mais despontavam. Eu fui para a Austrália e lá tínhamos a Aloha do Greg Clougn, a Insight, do Greg Webber, a Byrne também. Então eu fui vendo uma grande quantidade de designs diferentes. Lembro que o design era bem parecido até mais ou menos no início dos anos 1990, quando o Greg Webber trouxe uma ideia na época louca, que foi uma prancha com um concave muito grande que ele fez para o Tom Curren.

Gary Linden é uma das referências de Zouvi.

No início ele fez uma prancha muito longa, depois foi diminuindo. Não que o concave tenha sido inventado por ele, mas esse tipo de fundo  revolucionou o design a partir desse momento. Na época todo mundo fazia fundo flat, v-bottom, canaletas. O concave foi um fundo que, literalmente, deu uma acelerada nas pranchas e hoje em dia esse fundo, com algumas variações, é o que está vigente. Então houveram várias pessoas que eu observei ao longo de minha carreira.

Qual é o fundo mais versátil em sua opinião?
Até hoje, o single concave no pé da frente, bem acentuado, diminuindo um pouco a profundidade dele em direção ao pé de trás e correndo para um flat na saída, tem sido um dos fundos mais velozes que faço. Às vezes eu introduzo um double entre as quilhas. Houve momentos em que coloquei concaves profundos entre as quilhas para dar um lift diferente, e as maroleiras funcionaram muito bem com essa combinação.

Detalhe do concave mais suave no meio da prancha, ficando um pouco mais profundo entre as quilhas

Mas eu sempre trabalho com esses fundos côncavos, tentando colocá-los em posições diferentes na prancha. Em cada lugar que coloco, a prancha reage de forma diferente. Não é algo simples, do tipo “ah, eu uso full concave”. Não. Dentro do conceito de concave, há uma variedade enorme, tanto na profundidade quanto em onde esse fundo é aplicado na prancha, então é um estudo bem interessante.

Você ainda sente saudades dos tempos de plaina?
Cara, é meio nostálgico isso aí. Eu tenho umas plainas paradas aqui na fábrica: Skill, Hitachi.  Mas, saudade…saudade eu não tenho. Entretanto outro dia eu até estava pensando em pegar uma plaina para ver se ainda consigo fazer uma prancha na mão… Tem tantos anos que não corro plaina.

Mas é aquilo, né, é quase como voltar no tempo para uma época em que havia todo esse romantismo do shaper estar na sala de shape com a plaina fazendo aquela escultura, porque a prancha era praticamente uma escultura feita à mão.

Sharp Eye no tempo da plaina.Divulgação
Sharp Eye no tempo da plaina.

Depois que o shape ficava pronto tinha todo aquele processo de pega-lo e levar para a laminação, ou pintura e  sinto falta desse processo. Mas hoje em dia, em termos de negócios seria impossível você trabalhar com plaina, ainda mais com as máquinas que temos, com a precisão incrível dos programas, arquivos. É impossível pra mim, mas há muitas pessoas que ainda curtem esse tipo de trabalho.

Tenho visto uma nova geração aqui nos EUA que gosta de fazer pranchas manualmente e tem tentado reativar isso como um estilo. É legal, é maneiro, mas é uma outra época.

Você fez prancha para muita gente, mas quem foi o primeiro surfista de alto desempenho que usou suas pranchas?
Quando eu estava aqui consertando pranchas, eu conheci muita gente que surfava muito bem. Não necessariamente profissionais, mas amadores, freesurfers que pegavam bem. E esses caras começaram a pedir que eu fizesse algumas pranchas, até cheguei a ter uma pequena equipe local.

Cheguei a ser capa das revistas Surfer e Surfing. A Surfer foi com o Todd Morcon da Flórida já a Surfing foi com o Dean Kennedy, que eram surfistas locais muito bons. Essas capas saíram em março de 1995 e isso deu uma levantada na marca. Eu já tinha criado o logo em 1993 e a partir daí o pessoal começou a reparar nas pranchas e perguntar que marca era aquela.

Aí eu conheci um cara que era o melhor surfista de Nova Jersey, o Dean Randazzo, que surfava muito! A gente fechou uma parceria e ele foi o primeiro cara a entrar no Tour com minhas pranchas. Mas não durou muito, pois ele se machucou logo no início e não teve uma carreira sólida. Depois cheguei a fazer umas pranchas para o Jeremy Flores quando ele tinha 17 anos.

Ele entrou no Tour –  em 1999 se não me engano –  com minhas pranchas e o pessoal na elite começou a prestar atenção nos meus shapes. Mas naquele época, por mais que eu viajasse muito, ninguém era meu atleta oficialmente. Essa relação mais profissional, oficial, começou mesmo em 2014 quando o Filipe entrou no Tour. Aí realmente a marca deu uma explodida.

Binho Nunes na capa da Fluir com uma Sharp Eye.Reprodução.
Binho Nunes na capa da Fluir com uma Sharp Eye.

E brasileiro, quem foi o primeiro?
Foi o Binho Nunes, que foi capa da Fluir. Mas muitas pessoas que vinham para a Califórnia faziam pranchas comigo. Entre eles o Guilherme Herdy, Renan Rocha, Tadeu Pereira e até o Fábio Gouveia, para quem inclusive hoje eu faço pranchas para seu filho, Ian. Mas oficialmente mesmo, o cara que entrou no tour para ficar foi o Filipe.

Antes de ter o reconhecimento internacional, as pessoas se surpreendiam quando descobriam que você é brasileiro?
Aqui tem uma certa discriminação natural né. Os gringos são muito fechados, tanto o americano quanto o australiano. Eles não são muito receptivos para com outras culturas. E como eles sempre dominaram o mercado de design, não olhavam para a América Latina e para a própria Europa em si.

Fabinho Gouveia e Marcio em sua sala de shape na Califórnia (EUA).

Eles sempre ditaram as regras. Mas na verdade a gente começou a inovar rapidamente. O shaper americano não viajava muito e lembro que quando viajei para a Austrália me deparei com métodos de construção que eu não conhecia, diferentes dos aplicados aqui nos EUA. Eu trouxe para a Califórnia e os caras se surpreenderam, falavam: “que isso?” Ou seja, eu fui alterando coisas aqui e eles começaram a prestar atenção em mim.

Eu trouxe o carbono lateral que não se usava, fui uma das primeiras pessoas a usar o concave porque eu estava lá na Austrália quando o Greg Webber começou a fazer. Então eu cheguei aqui com várias novidades e nego olhava e falava: “que isso cara, essa prancha não vai funcionar não.”

Kanoa Igarashi com sua Sharp Eye no MEO Pro Portugal 2024, Supertubos, Peniche.

Você é um cara que recebe informações de grandes nomes do surfe como Kanoa Igarashi, Filipe Toledo, Jack Robinson, Tatiana Weston-Webb, entre outros. Como você lida com tanta quantidade de dados de alto nível e como você se inspira para criar novos modelos?
Estamos sempre aprimorando, aprendendo. Os caras são diferentes entre si. O Filipe tem um surfe diferente do resto, então você tem que ficar ajustando constantemente. Agora, não é só fazer prancha de equipe, a gente tem que sobreviver.

Temos que ajustar esse design para as pessoas que não são surfistas profissionais, preciso ajustar essas medidas para o mercado, digamos, normal para que a prancha não fique uma Ferrari que só atletas de alto nível consigam pilotar.

Jack Robinson faz parte da equipe de Marcio Zouvi.

Em termos de pesquisa, estamos em plena evolução. Eu viajo muito, estou sempre no Havaí para ver o que tem de novidade relacionada a guns. Tem coisa que a gente acerta, tem coisa que não dá certo e estamos sempre correndo atrás. No caso dos competidores,  estou sempre buscando entender a onda para fazer a melhor prancha para o pico em que ele vai competir.

No início eu tive que viajar para conhecer as ondas do Tour, para ver o que funcionava. Eu não queria que o cara levasse pranchas que não funcionassem. Então é isso, para cada um é bem diferente. O Jack Robinson, por exemplo, é um cara mais pesado com um tipo de pegada diferente, o Filipe mais ágil e leve e por ai vai.

Ainda há espaço para refinamento em termos de design, ou a evolução das pranchas está atrelada ao material?
Ainda tem espaço para melhorar. À medida que a gente vai descobrindo mais sobre design, vamos cada vez mais acertando a medida que as encomendas dos atletas vão chegando, vamos evoluindo e melhorando. Mas ultimamente o material tem tomado a dianteira nessa evolução.

A gente recentemente começou a trabalhar com a maior fábrica do mundo na Tailândia, e essa fábrica me deu acesso a materiais que eu nunca tive antes. Então eu comecei a testar novas coisas, com uma gama enorme de flexibilidade, espumas diferentes.

Estou trazendo bastante coisa nova e a gente continua testando. Agora mesmo estamos esperando um tecido super novo, com uma nova combinação… então estamos vendo muita coisa acontecendo em termos de material.

Sharp Eye Surfboards.Divulgação.
Sharp Eye Surfboards.

É lógico que temos restrições, porque o material quando você começa a ir nessa direção encarece muito a prancha, mas aqui nos EUA o mercado tem grana para absorver isso. No Brasil a prancha fica muito cara. Mas sim, eu concordo que no material ainda temos muito que evoluir.

Como você enxerga a piscina de ondas na evolução do surfe e consequentemente das pranchas?
Esse advento da piscina realmente foi uma injeção de gás no surfe, pois está trazendo um crowd novo de pessoas que começaram a surfar, que não necessariamente moram perto do mar e que às vezes nunca surfaram no mar. A gente tem visto pessoas que estão saindo ali do Texas, de Waco, que estão surfando bem.

Ou seja, está abrindo um leque enorme de possibilidades. Porque é uma onda boa, com uma consistência artificial com variações. Então ficou muito mais fácil para você testar a prancha e conseguir ajustá-la. Esse avanço vai facilitar para a gente refinar ainda mais o design.

MEO Pro Portugal 2024, Supertubos, Peniche

Porque às vezes você fazia o design e até o cara testar em uma onda ideal, às vezes durava até seis meses para termos um retorno realmente confiável e hoje com as piscinas esse processo foi bem acelerado. Nós já ganhamos duas vezes com o Filipe na piscina uma vez com a Johanne Defay.

E agora o próximo Stab in The Dark será realizado na piscina do Kelly em Abu Dhabi e ele está querendo fazer a melhor prancha que funcione na piscina dele. Ele me convidou junto com outros shapers e o test pilot será o próprio Kelly, que conhece muito bem a onda, e ninguém melhor que ele para dizer o que funciona melhor por lá. Então vamos ver o que vai sair…

Fale sobre sua vitória no Stab In The Dark:
O Stab In The Dark, no início, era uma coisa que eu não levava muita fé, apesar de ter um apelo de marketing muito bom. Eu não gostava da proposta de fazer uma prancha para uma pessoa que você não sabe quem é, surfar em um lugar que você também não sabe. São tantas variáveis, tantos designs, tantas opções que eu posso empregar. Antes eles só falavam: olha, o cara gosta de surfar de 5’10” com o volume X.

E eu posso fazer milhões de coisas com essas informações. Ou seja, no final das contas era meio que uma sorte. Para mim era sorte. Agora eles começaram a facilitar. Por exemplo, agora com o Kelly, a gente já sabe que ele irá surfar com a prancha e aonde… então vai ficar bem mais fácil de conseguir fazer a coisa certa. Aí eu realmente acredito que aí todos os shapers irão colocar tudo que eles têm de conhecimento para tentar acertar.

Agora, quando a gente ganhou com o Taj Burrow na Austrália, foi realmente muito bom para a gente internacionalmente. Deu uma levantada enorme porque criou muito interesse a respeito do design campeão que foi a Inferno 72, todo mundo queria saber, todo mundo queria testar.

Prancha Inferno 72, Sharp Eye – venceu o Stab in The Dark.Divulgação.
Prancha Inferno 72, Sharp Eye – venceu o Stab in The Dark.

E eu me impressionei porque não sabia que o Stab tinha essa penetração tão grande no mundo inteiro, talvez não tanto no Brasil porque é em inglês, mas fora teve uma repercussão muito grande então foi muito bom.

Estamos passando por um momento de releituras de pranchas, você acredita que surfistas da elite mundial usarão pranchas chamadas alternativas como biquilhas, fishes, etc?
Não. Porque o modelo alternativo, se você voltar ao passado, são designs que foram criados numa época em que o surfe era bem diferente. Então você não consegue fazer a mesma linha que uma prancha moderna faz. Vão ter condições em que talvez você faça, mas vai ganhar em um lado e perder do outro.

Por exemplo, uma biquilha pode funcionar muito bem em um dia muito alinhado em J-Bay, por exemplo, você vai ter uma velocidade incrível mas você não vai conseguir dar aquela rasgada enterrando a borda no pocket como você faz com um triquilha com um concave mais acertado, com uma curva certa, então penso que você vai ter que descer o nível do seu surfe para se moldar ao que o design consegue entregar.

Agora é lógico que esses designs são muito divertidos. E no dia a dia, principalmente pra quem não tem um nível de surfe muito grande, uma biquilha e até uma monoquilha, pode fazer sua cabeça.Tem gente que vem me procurar interessado nesse tipo de prancha. Então hoje em dia, principalmente aqui fora, vale tudo porque aqui você tem uma variedade de ondas muito grande: fracas, alinhadas, point breaks, ondas bem longas e você tem ondas bem fortes também.

Filipe Toledo é o principal test rider de Marcio ZouviFrame.
Filipe Toledo é o principal test rider de Marcio Zouvi

No Brasil a maioria das ondas são fortes e quebram em beach breaks, principalmente no Rio onde você tem muito power. No Rio, fora a Macumba, as ondas são bem difíceis de você surfar com pranchas alternativas. Aqui na Califórnia, quando você entra em uma loja, de setenta a oitenta por cento não é high performance, o que vende é alternativo. Aí os 30% são high performance. Já quando você vai para a Austrália é o contrário. Isso se deve ao fato de lá as ondas serem muito mais fortes.

Na Austrália, você vê lá no fundo da loja três, quatro pranchas alternativas e alguns longboards. Porque ninguém compra, porque fora Nossa Dua e alguns picos que tem ali em Byron Bay o resto é tudo onda forte.

Qual a primeira coisa que você olha em uma prancha?
Eu olho o outline e depois vou logo para a curva. Mas o que mais me impressiona não é a prancha, porque toda prancha tem sua validade. O que me impressiona é o desempenho do atleta. Como eu estou sempre acompanhando o tour, quando eu vejo alguém surfando muito, me desperta o interesse em ver qual o equipamento que ele está surfando.

Ian Gouveia faz parte do time Sharp Eye. Na foto ele compete no Ballito Pro 2023 – África do Sul.

Porque toda prancha vai funcionar para alguém, vai ter alguma característica que vai se ajustar a alguém, a alguma condição. Mas quando eu vejo perfeição, no sentido de ver a melhor performance naquela condição, eu quero ver o equipamento.

Porque o designer do cara acertou em cheio. Aquele cara está surfando com o melhor equipamento para aquela onda então eu vou olhar a prancha para ver todas as características para ver o que tem naquela prancha que funcionou para aquele cara.

Qual seu modelo que mais faz sucesso?
Ainda é o Inferno 72, vencedora do Stab In The Dark. Essa prancha tem vendido bastante. No nível high performance, a 77 do Filipe tem uma procura muito grande por parte dos atletas.Agora para marola temos a Cheat Code que tem saído muito também. Ela é uma prancha com o rocker mais relaxado, mais área no outline, mais volume no geral, com uma curvinha boa para quem está saindo de uma prancha maior indo para um menor e já quer fazer umas manobras e precisa de um pouco mais de curva na prancha.

Ou seja, ela não é uma prancha com o rocker flat, retro. Ela é uma prancha que não chega a ser high performance mas tem uma pegada moderna que se adapta muito bem ao usuário médio, digamos assim.

O que é mais difícil, ajustar uma prancha para o Filipe Toledo, ou ajustar uma prancha para o surfista mediano?
Acho que para o surfista mediano é mais difícil porque é tudo uma questão de informação. O cliente não passa essa informação como ele deveria passar. Às vezes me passa uma informação que não é precisa e quando você faz a prancha para o cara ele não está preparado para aquilo.

É importantíssimo o surfista chegar e mandar a real: meu nível de surfe é esse, eu estou dando umas manobras assim, ainda preciso disso, não tenho muita força nas manobras, preciso de mais volume, para você realmente desenhar a prancha certa, porque surfe é um esporte difícil, não é um esporte que você já começa mandando bem, demora… então se você está com equipamento errado aí que dificulta ainda mais.

Uma das salas de shape da Sharp Eye na Califórnia (EUA).

Então conversar com o shaper ou com uma loja boa que tenha bons vendedores que vão conseguir te indicar a prancha correta, ou mesmo ligar para a fábrica e trocar uma ideia com a gente, é primordial.

No caso do Filipe, eu já conheço e os ajustes são bem pequenos, mais relacionados a quando ele ganha ou perde peso, ou quando ele está indo para ondas nas quais eu sei que tenho que fazer mais ajustes, então ele, mas fora isso é bem tranquilo.

Rola muito a síndrome do “quero ser o Filipe Toledo”, com aquele cara que acha que vai surfar como ele por conta da prancha?
Tem gente que acha que pegando a prancha dele, acha que vai conseguir surfar, não igual, mas parecido com ele. A coisa é tão psicológica, que antes de ele anunciar que deixaria o tour, o quiver dele para Portugal já estava pronto.

Seth Moniz no Tahiti Pro 2023 em Teahupoo.

E aí o Seth Moniz, que é mais ou menos do mesmo tamanho que ele, veio aqui na fábrica e viu as pranchas do Filipe, e falou: “O Filipe não vai pegar não?” Eu falei, não. E ele falou, “Posso pegar elas?” Eu falei pode. Aí ele pegou e falou, “Nossa as pranchas são demais, como se eu fizesse pro Filipe melhor do que eu faço pra ele…rs.”

Isso porque estava escrito ali a dedicatória para o Filipinho… Aí ele falou “as pranchas são mágicas!” Aí eu falei, pô cara, não é assim, isso tá na sua cabeça. As pranchas que faço pra você são iguais às do Filipe, o shape, o material, tudo. Mas tem essa influência psicológica. Muitas vezes ele acha que está preparado para um certo tipo de design, já coloca uma expectativa muito grande no equipamento.

Quiver dos sonhos na Sharp Eye Califórnia.

Fale sobre as diferentes construções, Epóxi e PU:
À medida que o pessoal foi ficando mais velho o epóxi pode ser uma ótima opção. Eu por exemplo, que vou fazer 58 anos, comecei a usar mais epóxi. Tive que aumentar o volume obviamente, mas eu ainda gosto de surfar com pranchas menores.

Uso 5’10” mas aumentando o volume. E o volume não me atrapalha tanto se a prancha for levinha. Então eu estou indo mais para o carbono e epóxi. Mas são dois materiais bem distintos. E isso que falei se aplica ao nível de surfe mediano pra baixo.

No que eu tenho visto, as pranchas de epóxi se enquadram mais nas pranchas menores, mais largas, porque é um material que tem mais flutuabilidade e quando são bem feitas são mais leves e duráveis. São dois materiais que têm sua vantagem e tem que saber usar.

Marcio Zouvi com suas criações.Divulgação
Marcio Zouvi com suas criações.

Já quando você começa a ir para o high performance você já tem que saber aplicar o epóxi, porque em condições de muito vento, muito chop, com carneirinhos, por exemplo, ele começa a ser mais sensível, ela já não funciona tão bem.

Já o PU atura melhor esse tipo de condição pois tem uma consistência diferente, vai correr na onda de forma diferente. Por isso o PU é o material usado em 90% das pranchas do Tour. Como disse antes, é uma questão de saber usar o material.

Muitas vezes as pessoas acham que o material que vai fazer a prancha andar e não é. O certo é você adequar o material para o tipo de onda que você vai surfar. De acordo com o que o surfista me passa, eu vou trabalhar no design e depois vou sugerir o material.

Fábrica da Sharp Eye Califórnia anos 2007 (EUA)Divulgação
Fábrica da Sharp Eye Califórnia anos 2007 (EUA)

O intuito é que o material otimize o design em termos de performance e não o oposto, como muita gente pensa. Começa pelo design e depois você escolhe o material que melhor se adequa.

E o carbono, é a melhor opção atualmente?
Ultimamente o carbono tem sido uma alternativa muito boa. Ela é uma prancha que tem apresentado um grande diferencial. Dá para perceber na maneira como ela surfa. Não é necessariamente inquebrável como muita gente acha. Tem gente que pensa que a prancha é à prova de bala, que vai comprar a prancha e vai durar cem anos, não, não é assim… Ela ainda quebra.

Até dá para fazer uma prancha de carbono inquebrável, mas a prancha vai ficar horrível, dura, pesada e muito difícil de surfar. A ideia é que você utilize a flexibilidade do carbono e que a reação, a “mola”, te dê uma resposta melhor, a ideia é que o carbono otimize essa resposta de uma forma muito mais forte.

Fábrica da Sharp Eye na Califórnia anos 2000.Divulgação
Fábrica da Sharp Eye na Califórnia anos 2000.

O carbono tem sido uma prancha muito interessante e a gente tem trabalhado com outros tipos de carbono, com PVC, Kevlar. Também temos vários tipos de carbono, com tramas diferentes de 90 graus, 45 graus, de 30 graus. Então cada um terá uma resposta diferente dentro da água, um feeling, e isso para o profissional é show porque ele vai notar a diferença e vai saber ajustar às condições que vai surfar naquela ocasião. Já para um cara de nível médio pra baixo não vai fazer tanta diferença.

Fale sobre os compromissos corporativos da Sharp Eye:
Esse é o outro lado da fabricação de pranchas. Quando a gente começou minha preocupação era praticamente exclusiva com o produto, o design etc. Mas atualmente preciso me preocupar com o lado business, que é o lado que vai ocupando muito mais tempo do que você imagina.

A gente tem uma equipe muito boa e eu fico mais responsável pela parte internacional. São duas empresas a Sharp Eye USA e a Internacional. A USA é toda operada pelos caras aqui na fábrica da Califórnia, eu só crio os designs e trabalho com a equipe.

André Gioranelli na Sharp Eye, San Diego, Califórnia (EUA).Arquivo pessoal Gioranelli
André Gioranelli na Sharp Eye, San Diego, Califórnia (EUA).

Já a internacional eu é quem toco e tenho viajado o mundo inteiro, tratando de licenciamentos no Brasil, na Austrália, no Peru, em Bali, tem fábrica na França, em Portugal, na Tailândia então eu tenho que fazer o run, tenho que controlar a qualidade e cuidar para que nosso padrão de qualidade seja mantido.

Quem dera eu ficar só na praia, fazendo design, surfando. Mas essa parte é fundamental, e é importante porque viajando eu vejo muita coisa acontecendo. Porque cada lugar tem alguém criando algo novo para surfar nas condições do lugar.