Leitura de onda

“Stay deep, bro!”

Colunista Tulio Brandão analisa vitória de Italo Ferreira no Taiti, detalha semifinal entre John Florence e Gabriel Medina e destaca nota 10 histórica de Tatiana Weston-Webb.

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Italo Ferreira no Tahiti Pro 2024 em Teahupoo. Impossível ser mais deep.

A frase de Italo Ferreira veio acompanhada de um sorriso extasiado. Era a entrevista pós-vitória nas quartas-de-final, em que se via um potiguar elétrico, iluminado, falando em “sentir a onda”, na “benção de surfar sozinho naquele paraíso com apenas um amigo”. Não havia no campeão da etapa, Italo, e em nenhum dos brasileiros que entrou na água neste histórico Teahupoo, qualquer sinal de apreensão.

A performance foi uma resposta definitiva, contundente, dele e dessa incrível geração de brasileiros que vinha sendo enterrada pelos críticos. Quando o circo do CT desembarcou na onda mais temida da temporada, no pico mais reverenciado pela liturgia do surfe, em condições épicas, os quatro surfistas de Pindorama escalaram, juntos, 25 posições no ranking mundial – com destaque, claro, para Italo, que subiu 11 postos para alcançar um espaço no desejado top 5, que dá o passaporte para Trestles.

Como se não bastasse, as duas notas máximas do evento, no masculino e no feminino, foram obtidas pelos brasileiros – Gabriel Medina, nas oitavas, numa apresentação histórica, uma bateria perfeita não reconhecida pela WSL (mais detalhes abaixo); e, de outro lado, a brava Tatiana Weston-Webb, que, precisando de uma nota máxima para virar a bateria, remou numa vaga monstruosa e fez o que pouquíssimos marmanjos já ousaram fazer. Livrou-se do medo, e o resto é história (mais detalhes abaixo).

Além dos brasileiros, a etapa trouxe de volta grandes surfistas para o holofote. John John Florence nos lembrou que o grande adversário da tempestade brasileira em ondas de consequência é havaiano, e não californiano. Tivemos ainda um suco de Kelly Slater, que se prova eterno pelo menos quando o lip deforma horizontes (mais sobre isso abaixo). Ramzi Boukhian levou a bravura marroquina para dentro d’água.

E mesmo alguns surfistas que perderam cedo, como Liam O’brien, Barron Mamiya, Cole Houshmand e Jack Robinson, passearam com elegância pela massa grossa da onda taitiana. Saíram maiores da etapa.

Italo Ferreira tem a primeira vitória brasileira na temporada em grande estilo.

As armas de Italo

Elétrico, equilibrado, centro de gravidade baixo, extremamente habilidoso, dono de um espírito desprovido de medo e com uma confiança praticamente inabalável, Italo pode vencer qualquer um a qualquer momento, em todas as ondas.

Sua energia ilimitada amplia em termos estatísticos as chances de vitória – como aconteceu nas oitavas, contra Cole Houshmand, quando começou sendo esmagado por caldos sucessivos e encontrou fôlego para virar a bateria nos minutos finais.

Assim como aconteceu em sua escalada para o título mundial de 2019, o potiguar funciona bem em espirais positivas – é como se um resultado o empurrasse para outro e, assim, sucessivamente. As vitórias vão ampliando a sua capacidade de vencer. Quando sua energia está equilibrada, ele sorri dentro do tubo, e assusta adversários.

Nos canudos de Teahupoo, o potiguar optou por tubos mais extensos em ondas intermediárias, valendo-se da sua incrível capacidade de “pump” para navegar pela bola de espuma. Muito tempo de tubo com saídas limpas. Achou o caminho para produzir, assim, notas excelentes em série, sem precisar buscar a nota máxima.

Não era o favorito na final contra Florence. O havaiano, vindo de uma chave mais difícil, tinha a notada preferência dos juízes. Mas como já aconteceu outras inúmeras vezes, Italo fez uma bateria irretocável, obrigando seu adversário a caminhos mais arriscados para virar a bateria. O havaiano não chegou lá – embora suas notas tenham sido perigosamente turbinadas na final (o que foi aquele 9,33?).

Italo quebrou o rolo compressor de San Clemente, jogando o então líder da temporada Griffin Colapinto para a repescagem e eliminando Houshmand. Depois, venceu outro destaque do evento, Yago Dora, que fez seu melhor surfe em ondas de consequência desde a sua entrada no circuito mundial. E, nas semifinais, parou a fúria de Ramzi.

John Florence supera Gabriel Medina e enfrenta Italo Ferreira na final.

Como é bom ver Florence x Medina

Griffin, Ethan Ewing e companhia que me perdoem, mas o melhor surfe do mundo segue sendo apresentado por John John Florence e Gabriel Medina. Estava com saudades de ver o embate, embora o resultado não tenha sido positivo para o Brasil.

Gabriel foi, com alguma sobra, o mais brilhante surfista do evento, mas John vinha logo atrás, dono de técnica rara na lida com a traiçoeira bola de espuma. Dois gigantes, agora empatados em confrontos diretos, que possivelmente se enfrentarão até o fim de 2025, sobretudo se a suposta mudança prevista para o Finals ano que vem – de Trestles para Fiji – for confirmada pela WSL. Aposto que adiaria os rumores de decisão de aposentadoria de ambos os surfistas.

Um pequeno deslize do destino tira Gabriel Medina da onda perfeita contra John John Florence.

O esplendor de Gabriel

Tem algo de mágico na forma como Gabriel tem abordado algumas baterias. Um brilho intenso, conhecido de longa data na elite do esporte, que mesmo este ano já tinha se revelado em outras baterias, como as quartas-de-final em Peniche e o round 1 de Bells. Em Teahupoo, seu eterno lar natural, ele sobrou mais do que nunca. É como se ele estivesse ali para demonstrar ao mundo que a corrida pelo título de 2024 não fizesse sentido sem ele. E de fato não faz.

Ao mesmo tempo, diferentemente do que acontecia no passado, quando essas escaladas brilhantes oscilavam pouco até a final dos eventos, Gabriel não tem conseguido a constância necessária às vitórias. Na semifinal contra Florence, talvez não tenha conseguido por um detalhe – alguns centímetros adiante e sua prancha não teria sido atingida tão fortemente pela bola de espuma na onda que abriu a bateria. Mas, no surfe, o “se” não existe. Vencer exige, sim, um desejo irrefreável, uma concentração absurda e margem de erro zero.

É compreensível a tática de Gabriel contra o havaiano: surfar no limite das possibilidades do foam ball para superar o refino técnico de Florence e, claro, o gosto dos juízes pelas ondas do havaiano. Lembrei-me de Pipeline, na etapa de abertura de 2021, quando, contra o mesmo adversário, aconteceu a mesma coisa. Ele perdeu por pouco lá também, ao não conseguir escapar de outra bola de espuma.

De todo modo, Gabriel parece estar feliz, no auge da vida. Só isso importa. E, no fim das contas, tem sido um enorme prazer assistir às suas baterias mais brilhantes.

Em busca da bateria perfeita

Talvez a mais fantástica delas, em toda a carreira no CT, tenha acontecido nas oitavas de Teahupoo. Em disputa com Jake Marshall, fez uma nota 10 e, logo na sequência, surfou uma bomba que fez urrar o canal inteiro. A molecada gesticulava nervosamente com as duas mãos espalmadas, indicando o 10 perfeito. Era um 11, talvez.

Mas não. A WSL preferiu não conceder o título de “bateria perfeita” a Gabriel. Segura a onda aí, rapaz. Nas mídias sociais, Owen Wright criticou a decisão. Jackson Baker, Kade Matson, Cole Houshmand, Erin Brooks, todo mundo pediu o 10 + 10.

Kelly Slater domina como ninguém os salões de Teahupoo.

O brilho eterno de Kelly

O pseudo aposentado Kelly Slater mostrou ao mundo que, em determinadas condições de surfe em ondas de consequência, ainda está apto a vencer os melhores. Não é mais, claro, aquele surfista impositivo que dominava adversários. Mas fez uma pá de notas excelentes durante o evento, entre as quais uma que, de minha perspectiva, valia 10.

Quando ele consegue surfar, encaixar suas 10 mil horas de tubo numa bateria, lembramos de como ele é, de fato, um ser humano sobrenatural. Kelly nasceu no mesmo ano que eu – enquanto ele briga nas quartas-de-final em Teahupoo, eu luto contra um torcicolo adquirido na última sessão ordinária de surfe no Leblon.

Kelly estará novamente na etapa de Fiji – resta nos divertirmos com seu talento. Que ele siga sendo convidado para provas eventuais em ondas de consequência.

Tatiana Weston-Webb no seu tubo histórico com nota 10 em Teahupoo.

A maior vitória de Tatiana Weston-Webb (e do surfe feminino)

O primeiro 10 entre as mulheres em Teahupoo é um emblema perfeito desse belíssimo “bustin down the door” do surfe feminino em 2024.

Elas já tinham dominado tudo, entre as quais ondas como Pipeline e Sunset, mas agora avançaram de maneira definitiva, com autoridade, na onda mais perigosa do mundo. Foram muitas notas excelentes em várias fases, sem qualquer concessão dos juízes.

Mas o surfe, com suas liturgias particulares, espera sobretudo pelo momento proporcionado por Tatiana Weston-Webb nas semifinais contra Vahine Fierro, a local dominante no evento que seria campeã momentos mais tarde.

A brasileira precisava de uma nota 10 para virar a bateria. Não, 9,9 não seria suficiente, apenas a pontuação perfeita. Virou numa bomba, muito deep, e fez o que foi sem dúvida a melhor onda da história do surfe feminino na elite.

Perder a bateria é um detalhe insignificante diante dessa conquista. A onda de Tati em Teahupoo será mais lembrada que todas as suas vitórias. Virou gigante para o surfe.

E ainda se cacifa para pelo menos brigar pelo ouro nos Jogos Olímpicos. Aliás, temos uma penca de candidatos ao ouro depois dessa temporada de Teahupoo.

Que soe a sirene de El Salvador.