Jogos Olímpicos

Com a palavra, Teahupoo

Tulio Brandão traz coluna épica e vibrante sobre o surfe nos Jogos Olímpicos em Teahupoo, Taiti.

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Kauli Vaast comemora tubaço nas finais dos Jogos Olímpicos 2024 em Teahupoo.

Nota da redação – Em virtude de questões técnicas no Waves durante a última semana, só agora foi possível publicar a épica, vibrante e olímpica coluna de Tulio Brandão sobre os Jogos em Teahupoo. Confira a seguir.

O mundo foi definitivamente apresentado às múltiplas faces do surfe de competição durante os Jogos Olímpicos de 2024. Houve espaço para a mágica, para a monotonia, para o medo, para a alegria da onda certa e a frustração da derrota injusta. O surfe se insinuou nas olimpíadas como a vida se apresenta a todos nós: imprevisível. Não levamos o ouro, mas voltamos com duas medalhas. Será que Teahupoo se importa?

Opa, muito prazer, meu nome é Teahupoo. Sou assim mesmo, imprevisível e sem qualquer compromisso com a justiça dos homens. Gosto mesmo é da imprevisibilidade, de oferecer ondas fáceis num dia, de assustar os incautos com tubos grossos e quadrados em outro e, por que não, de me apresentar infame no dia decisivo. Não premio os surfistas com medalhas, e sim com as maiores experiências da vida.

Teahupoo, teatro de operações arriscadas no Taiti, com direito a medalha de ouro.

No centro de tudo, estava realmente Teahupoo. A mais famosa onda da Polinésia Francesa, um impressionante e verdadeiro olimpo do surfe, que honra a tradição dos reis polinésios inventores do esporte, deu uma medalha de prata para Tatiana Weston-Webb, em final disputada com a americana Caroline Marks, ouro do surfe feminino.

Não dei nada para a Tati. Eu não tenho qualquer relação com essas disputas terrenas de vocês. O que posso dizer é que essa menina tem vindo buscar as minhas melhores ondas. Vejo brilho nos olhos dela. Testei-a naquela prova do CT deste ano, mandando um diamante bruto, gigante, e ela aceitou da melhor maneira possível. Entregou-se à minha onda. Isso basta. Para mim, a maior medalha que ela ganhou foi aquele tubo mágico no CT. Vocês deram nota 10, mas o que importa é o lugar em que ela ficou depois que saiu do tubo. Deixo a prata olímpica, essa coisa de medalhas, para vocês humanos. Não ter voltado da última manobra de uma de minhas marolas na parte rasa da bancada não define ninguém. Aquele tubo gigante do CT, sim, define. 

Tatiana Weston-Webb, a mulher mais atirada nos Jogos Olímpicos.

O humor de Teahupoo também foi protagonista na disputa olímpica no masculino. Primeiro, ao submeter Gabriel Medina, favorito destacado ao ouro olímpico, à maior de todas as lacunas de onda de Teahupoo durante uma bateria. O tricampeão mundial esperou 17 minutos por uma segunda oportunidade, que simplesmente não apareceu. Um verdadeiro desespero de uma nação inteira na calmaria. Depois, por repetir a dose com o australiano Jack Robinson, prata com apenas uma onda surfada na final. E, claro, por conceder seus melhores canudos ao filho pródigo do pico, Kauli Vaast, um talento taitiano que, com ouro no peito, explode para o mundo.

Gabriel? O garoto é o meu preferido entre os tops. Domina as minhas ondas com uma energia, uma entrega e uma velocidade únicas. Parece ter nascido para isso. Eu ofereço a ele muito mais do que a maior glória olímpica: as mais impactantes experiências na minha bancada, sempre que ele vem aqui. Neste evento olímpico, por exemplo, dei aquela onda quadrada, que vocês, loucos, deram 9,9, e não 10, e ainda preparei o cenário para aquele fotógrafo fazer a tal foto histórica. Na última etapa do CT, deixei para ele duas ondas máximas, e vocês, mais uma vez, lhe tungaram um 10. Gabriel reina em meu território, e não são notas, medalhas ou troféus que mudarão essa magnífica história de devoção. Quanta mágica ele já não produziu desde a última vez que venceu aqui, há longos seis anos? O que importa se ele não venceu? 

Se Tatiana é a mais atirada dos Jogos Olímpicos, Gabriel Medina certamente é o surfista mais completo em Teahupoo.

Vocês deram a medalha de prata para outro de meus preferidos, Jack. Ele não é tão insinuante quanto Gabriel, mas aprendeu a lidar comigo de uma maneira diferente, neutra, estudada. É um cara preciso, de poucos movimentos, mas mortal. Encontra o ponto certo, segura muito no tubo e só sai depois que eu solto aquelas baforadas loucas. E Kauli, bom, Kauli é meu pupilo, nascido praticamente dentro das cavernas do meu coral. É o cara que vai ocupar o lugar de Gabriel na realeza da minha onda. Ganhou a tal medalha que vocês prezam tanto, mas ele é muito mais que isso. Já surfou tanto aqui que às vezes sabe mais de meus humores que eu mesmo. Senti falta no último dia de outros dois de meus preferidos, John John Florence e João Chianca.  

As finais masculinas

As múltiplas previsões não confirmadas deixaram a organização do evento num xeque-mate, diante do fim da janela em ondas não mais que ordinárias e sem um mínimo de constância que pudesse produzir um resultado esportivo justo e satisfatório. Para agravar a situação, optaram, talvez para não ampliar os riscos, por iniciar a prova cedo demais, antes da entrada de um swell mais consistente, previsto para a tarde. E, por último mas não menos trágico, mantiveram o critério de superavaliação de tubos, a despeito de não haver tubos suficientes para os dois surfistas nas baterias.

Toda a bravura e talento de Alonso Correa.

A armadilha estava pronta para os homens. Primeiro, Kauli e o bravo peruano Alonso Correa entraram na água atrás dos canudos. Encontraram versões minguadas de tubos, excessivamente valorizadas, e o taitiano venceu apertado por 10,96 a 9,60. Logo na sequência, para desespero de uma nação, Teahupoo desligaria completamente a sua máquina, deixando Gabriel sem qualquer chance de reação, depois de uma troca de ondas de manobra com ampla vantagem para o brasileiro e de um tubo milagroso encontrado pelo australiano.

Na disputa do bronze, Alonso começou melhor, com um Gabriel ainda sentido com a sua onda preferida, que lhe negara oportunidades importantes minutos antes. Mas o tempo dentro d’água, naquele ambiente tão familiar, parece ter feito com que ele religasse a fúria competitiva. Catou um tubo impossível de sair e, na sequência, ganhou uma disputa de remada fundamental à vitória. (Ganhou, na leitura do juiz de prioridade. Pelo vídeo, me pareceu que era do Correa.) Depois, teve tempo de fazer mais duas ondas boas, entre as quais um 7,7 apenas com manobras potentes, como se dissesse aos juízes que ele teria sido capaz até de vencer longe dos tubos.

Cenário de natureza selvagem, a onda que seduz, consagra e amassa no Taiti.

Ah, ele não ficou sentido com a falta de ondas. Entende a minha lógica mais que os demais mortais. Aquele amigo dele, jogador de futebol famoso, andou dizendo que “surfe é um esporte injusto”. Errado. Surfe é um simulacro perfeito da vida. E eu, Teahupoo, sou uma boa síntese do mundo real, daquele que te oferece a glória e ao mesmo tempo te amassa no fundo, sem qualquer debate se isso é justo ou não.  

Bronze no peito, é preciso fazer justiça: Gabriel foi o melhor surfista da prova. Obteve a nota mais alta no dia mais assustador e produziu, também, as melhores manobras de borda no dia em que os tubos eram obras do acaso. Perdeu simplesmente porque o surfe tem esse componente mágico – e às vezes aterrador – da imprevisibilidade.

O ouro de Kauli foi conquistado numa bateria de uma onda só. Literalmente. Na primeira disputa da bateria, ainda sem prioridade, o taitiano, goofy capaz de acelerar mais que o regular Jack nas esquerdas de Teahupoo, remou numa onda mais deep, deu passadas longas dentro do tubo e saiu muitos metros adiante, numa nota que deveria estar muito mais próxima da perfeição do que pensaram os juízes. Robinson surfou a detrás, sem qualquer comparação com o tubo de seu adversário. Ganhou nota alta demais, um 7,83, menos de 2 pontos a menos que a perfeição de Kauli. Para sorte dos juízes, mais uma vez, uma lacuna insana de novos tubos garantiu o ouro ao taitiano. Ninguém tentaria buscar a virada em onda de manobra.

Caroline Marks garante segundo ouro olímpico para os Estados Unidos.

As finais femininas

Comecemos pelo fim. Na minha leitura, Tatiana virou na última onda. Fez o suficiente para vencer, para o ouro, mesmo sem os tubos naturais do pico. Era a surfista mais encaixada, e seu surfe de manobras de borda superou, para mim claramente, o único tubo curto surfado pela americana Caroline Marks.

Trocaram um chapéu por um surfe encaixado, limpo. Um erro provocado por outro erro, da organização do evento, de insistir na sobrevalorização do tubo mesmo num dia ordinário, sem cilindros à disposição de todos. Apostaram na loteria. Erraram.

Eu tenho lá minhas variações de humor. Sou como vocês, não acordo igual todos os dias. E às vezes não ofereço mesmo cilindros fartamente, mas quase sempre tem uma oportunidade de desenhar a minha onda, ainda que fora do tubo. Tati sabe encontrar atalhos nos meus espaços de manobra. Com essas variações de humor, senti falta mesmo foi de ter mais minutos da minha querida Vahine Fierro sob meus domínios. A competição de vocês tem isso: às vezes tira da água as maiores pérolas antes da hora.  

Só não reclamem das ondas. Cá entre nós, vocês humanos são esquisitos: dão um tempo enorme para outros esportes olímpicos, que podem ser adiados por uma mísera chuva, mas restringem a minha janela, restringem os dias do esporte que depende do maior número de variáveis externas. Alguém aí tem dificuldade de entender que eu não ofereço ondas idênticas todos os dias. No dia seguinte à final olímpica, por exemplo, amanheci de excelente humor. 

A história das semifinais pode ser resumida ao apagão da excelente costarriquenha Brisa Hennessy, que fez uma interferência infantil em Tati e acabou com as suas chances de ouro. Do outro lado da chave, a constante e competente Johanne Defay deve ter sentido um baque tremendo ao perder para Marks no desempate da melhor onda, com um placar de 12,17 x 12,17. Mas respirou fundo para se reorganizar e conquistar o bronze. Brisa quebrou, sucumbiu à falha na bateria anterior. Não ofereceu qualquer resistência em sua última bateria olímpica.

João Chianca durante a sensacional bateria contra marroquino Ramzi Boukhiam.

Teahupoo para a eternidade

As oitavas-de-final foram palco do mais impactante dia da (ainda curta) história do surfe olímpico. Massas d’água grossas, tubos quadrados, baforadas apavorantes: o dia 29 de julho, uma fatídica segunda-feira, entrará para a história por ter apresentado ao mundo a mais fascinante face de nosso esporte. Foi o dia mágico de Gabriel, com a onda relatada acima pela temperamental Teahupoo, mas também de outros.

João Chianca e Ramzi Boukhiam fizeram um duelo de gigantes, na melhor bateria do evento.

Ramzi perdeu, mas pouco importa. Em 2024, o marroquino gravou seu nome entre os grandes nas ondas de consequência. Repetiu o feito da etapa do CT de Teahupoo, semanas antes dos jogos.

Chianca seria eliminado por Gabriel nas quartas, num mar que nem de longe lembrava o do dia anterior. Sua abordagem desapegada, sua refinada técnica de grab rail e sua incrível leitura do tempo dos tubos são apenas detalhes menos importantes de uma história inesquecível para o esporte. No início do ano, ele estava numa cama de hospital, mergulhado na escuridão, numa angustiante incerteza sobre sua saúde futura. Dias atrás, ele assombrava o mundo em ondas monstruosas – e se as ondas se mantivessem potentes, com múltiplas oportunidades de tubo, ele seria sério candidato ao ouro, mesmo com o amigo Gabriel pelo caminho.

Pouco importa se Ramzi Boukiam perdeu a bateria. Afinal, ele marcou seu nome na história dos Jogos Olímpicos.

Eu me dedico a gente de verdade como o João. Ele é o tipo que constrói sua identidade dentro do tubo. Ouvi o garoto dizendo, rindo, lá longe na costa, que o problema dele é que gostava muito dos meus dias mais pesados. Então eu vou te falar: eu vivo por essas pessoas, para ouvir isso. Em dezembro, ele estava numa maca, apagado, lá na minha irmã Pipeline. Dias atrás, estava aqui, numa condição mais assustadora que a do North Shore na ocasião, remando nas maiores do dia. Ele só conseguiu construir essa odisseia incrível porque ama verdadeiramente o surfe. Só assim é possível se recuperar de um trauma desses. Com amor. Eu não trocaria essa história por nenhuma medalha olímpica.  

Houve tempo, ainda, para apontar revelações surpreendentes (e outras nem tanto) em ondas de consequência. Começo pelo o quarto colocado, Alonso Correa, claro, que tirou Jordy Smith do caminho, e foi a surpresa da semifinal, um pouco beneficiado pelo seed da ISA, que isolou os tops num lado da chave. Há espaço ainda para o excelente Alan Cleland, do México, e para o francês Joan Duru, dono do maior somatório do evento, nas oitavas, justamente contra Cleland.

Mexicano Alan Cleland deixa mais que boa impressão nos Jogos Olímpicos.

O feminino, ao contrário, não nos trouxe grandes surpresas. Prevaleceu a competência sólida das quatro finalistas. Tivemos, sim, algumas perdas, como as derrotas precoces das estrelas da nova geração Molly Picklum e Caitlin Simmers e a aposentadoria da gigante Carissa Moore, surfista mais injustiçada da história recente do CT.

Agora, seguimos para Fiji, em nossa velha bolha do CT, bem longe da audiência gigante dos Jogos Olímpicos, que, no dia decisivo, deve ter blasfemado contra a nossa velha conhecida imprevisibilidade e, claro, contra os longos períodos sem ação.

Já falei com Cloudbreak, minha irmã sofisticada, que andava sumida. A onda é bela e potente, como todas nós, e está esperando ansiosamente pela chegada do circo. Ela me falou que anda com saudades de Gabriel, mas, que, como sempre acontece com a gente, não pode prometer troféus, apenas as melhores experiências possíveis.