Dando sequência à série “Grandes temas sutis tratados com extrema leveza”, hoje usarei uma técnica totalmente diferente para abordar um desses assuntos: vou escrever sobre o sentimento oposto daquele que estou sentindo, ou seja, não vou olhar diretamente para o coração, mas para o seu espelho. Será que em função disso conterá menos verdades? Ou o distanciamento o tornará mais claro e autêntico? Você decide nesse final de 2013.
A minha sensação é que a alegria não é nossa. Vem de outra esfera. É mais como um presente que, curiosamente, escolhemos. Da mesma forma que escolhemos a onda que surfamos, a mulher que compartilhamos esse mundo, escolhemos os amigos, os inimigos, os prazeres e as dores. Mesmo que inconscientemente. A alegria é uma criação do divino para um resgate urgente do humano. Muitas vezes em socorro preciso, e salvador, muitas vezes falha no pior momento, não conseguindo evitar que sejamos atirados de vez ao calabouço, onde aprendizados jazem obscurecidos pela sombra, soterrados pelo pavor da incompreensão de nós mesmos.
Já me senti alegre, como todo mundo, sem nenhum motivo aparente. Já me senti alegre com um bom motivo: para forçar a fuga da tristeza, ou porque desejos foram satisfeitos, ou por achar graça em como alguns desejos satisfeitos são tão insatisfatórios, ou ainda para disfarçar uma alegria ainda maior numa tentativa de me escudar da inveja.
Quando repasso a minha vida na memória emocional para dar um Google nos momentos marcantemente felizes, ondas sempre me aparecem, minhas filhas nascendo e brincando quando crianças, lugares exóticos nesse mundão de Deus quando eu estava normalmente sozinho, lugares exóticos encontrados dentro de mim mesmo, elefantes trotando numa praia deserta no Sri Lanka, ter visto o sofrimento nos olhos de um aleijado num beco de Nova Délhi, na Índia, o abraço de um velho amigo que não encontrava há anos, em San Anselmo, na Califórnia, poder ter ajudado – por acaso – alguém que sofria, uma criança desconhecida que me abraça sem aviso num aeroporto chinfrim em Hôi An, no Vietnã, observar da outra sala minha família reunida, um beijo roubado que levou a uma paixão dilacerada, um susto feliz ao emergir de um caldo num mar de 12 pés na praia de Pipeline, no Hawaii, com o meu irmão ao receber o meu exame de imagem dando negativo para a presença do câncer, uma ideia do além ou uma boa sensação que me abençoa quando eu menos espero, a nítida e rara sensação de estar vivo, de braços abertos no alto de uma montanha, de braços abertos no topo de uma onda, o primeiro beijo, o segundo beijo, o terceiro beijo.
Escrever sobre algo que não estou sentindo é um exercício de memória, não de experiência. Contaminado pelas nuvens, véus e filtros do tempo e da distância o sentimento se altera, vira outra coisa: uma alegria conspurcada? Uma tristeza disfarçada? Um algo que eu almejo agora, mas fora de alcance pelas limitações psicológicas da entidade eu?
Vendo de outra forma: é o jeito mais objetivo de penetrar em um assunto. Esse não envolvimento e não proximidade o torna mais nítido nos seus contornos. Lá, à distância, ele pode se revelar em toda a sua estrutura e profundidades. Sua essência assoma.
Pode parecer que a alegria só existe na total ignorância, ou só é possível inserida na ingenuidade infantil. Também, mas não só. A maior alegria vem da total Consciência das coisas, de sabermos da existência da dor, do sofrimento, do mal, da velhice, da doença, da morte (à moda do Sidharta Gautama), e ainda assim sermos felizes. Vem dessa consciência, sem “C” maiúsculo, de que é uma escolha. Sim, nós escolhemos ser felizes. Ou não, como diria Caetano. Cada fato, cada procedimento, cada respirar pode ser encarado como bênção ou como sina. Sorrir no olho do furacão. Sorrir na execução de uma postura de yoga especialmente desafiadora e antes inatingível, sorrir quando a quilha da prancha abre uma fenda de dez centímetros na sua testa e o sangue escorre para o olho, olhar com o outro olho e sorrir para o espelho ao detectar a sua fragilidade carnal boiando na efemeridade eterna, sorrir ao perceber que conseguiu fazer diferente numa situação à qual reagia da mesmíssima maneira há décadas – e que exatamente por esse ínfimo detalhe – um ajuste divino – evoluiu um pouco mais, indo do “”ser automático” para o “ser consciente”. Sorrir quando o universo te dá o que você menos esperava frustrando todas as suas expectativas, e só muito tempo depois entender que era exatamente o que você precisava. Sorrir e reconhecer tudo, agradecer tudo, aprender com tudo, amar tudo.
É fácil escrever sobre a alegria não estando especialmente alegre. É só escolher que seja assim. Deixar a luz da alegria permear minha pele, penetrar pela maioria dos poros e encontrar lá no fundo e na periferia do coração e do fígado a luz da alegria que a esperava. As duas unidas me transformam. Levam-me a ser quem eu realmente sou.
A alegria é expansiva, contamina os circundantes, contamina a nós próprios, se multiplica como gremlins do bem. Quando se torna euforia pode ser exaustiva, mas é um cansaço bom. Pode nascer no lugar mais íntimo, mas logo se torna notória, como uma corrente elétrica do espírito que ilumina o mundo material. Ela cura. Sim, já foi provado. Faz o nosso sistema imunológico se fortalecer. As células de defesa do corpo agradecem e suspiram aliviadas. Entra ar. Sai ar. Dá para sentir os ombros abaixando da postura de tensão permanente, a mandíbula relaxar, as rugas do rosto se esvaírem, a digestão funcionar. Se você não digere a vida ela te engole, então, use sem contraindicações a tal da alegria. A alegria digere a vida e a torna maior. A alegria digere a vida, que agradece por ser escolhida.
Sidão Tenucci é surfista, escritor e diretor de marketing da OP Ocean Pacific. Viajou 55 países, deparando-se com as belezas e alegrias selvagens de ondas e sereias. Publicou três livros: “Almaquatica”, Ed. Terra Virgem, em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, o romance de aventuras “O Surfista Peregrino” e o livro de poemas ilustrados por 55 artistas, “Poentes de Amor”, pela Ed. Decor (todos disponíveis na Livraria Cultura).