Pela primeira vez eu senti compaixão por uma mulher linda, ao invés de simples desejo. Eu vi, entendi. Percebi sua condição, seu desafio, seu karma. Enxerguei através do véu do fascínio. O fardo da beleza não deve ser subestimado. É como se os belos já nascessem travestidos de ilusão. Tem que lidar com os espelhos/pessoas que os olham com enlevo, que os idolatram – e ter a capacidade quase sobre-humana de não acreditar naquilo. Poucos belos resistem a esse apelo. Poucos belos percebem a armadilha de acreditar serem melhores que o resto.
Ao contrário da beleza plena e isenta do mar, a beleza humana nos influencia e modifica. A mítica sereia representa a união da beleza do mar com a beleza da mulher. Tudo o que os surfistas querem, claro. Esses incansáveis procuradores de beleza. Mas ao lhes dar a beleza, Deus coloca esses seres – os belos -, a mais dura prova: como chegar à consciência de si quando todo o universo, constantemente, os puxa para fora? Como conseguir uma consistência emocional, psicológica e, em última instância, espiritual, quando tudo o tempo todo os arrasta para o exterior, ressaltam sua casca, engendram a dança esfumaçada da atenção, dificultam enormemente ou simplesmente não permitem que sintam o seu interior, já que a solicitação e os sorrisos e os galanteios e os elogios são os perversos cantos de sereia e do sereio que roubam a verdadeira experiência?
Porque tantos belos se suicidam quando envelhecem? Não aguentaram sustentar uma imagem criada pelo entorno, não suportaram a inexorável lei da vida e do envelhecimento, porque não foi isso que lhes foi prometido durante toda a juventude, pelos olhares, pelos mimos, pelos presentes, pelas promessas. Prometeram-lhes a ilusão da eternidade e poucos, muito poucos sabem e souberam ver através das miragens coloridas, dos cantos hipnóticos, das promessas de adoração infinita, das juras de amor – à beleza, não a eles, porque, afinal, quem são eles?! – e tiveram consistência e firmeza de caráter para focar com todo o ardor na sua alma e não no seu rosto, no seu corpo, nas palavras e olhares embevecidos do outro. Tudo lhes é prometido e é, às vezes, dado: riqueza, amor, segurança, adoração, música, sexo, beleza, dinheiro, festas, filhos, felicidade.
Cada um desses itens vem impregnado com um tipo diferente de veneno. A soma deles é a dose fatal, mais que fatal, porque não serve só para matar, mas para deixar a vítima com a percepção fatídica de ser só um invólucro de carne, um morto-vivo com cara de boneca ou boneco. Passam a acreditar que são realmente só isso, ou tudo isso, como querem alguns. E tudo isso é Maya – ilusão em grande estilo ( não confundir a deusa hindu com a nossa querida big-rider brazuca ). Nesse sentido os belos são os seres humanos que mais necessitam de força interior e entendimento claro de si mesmos e do mundo. Porque são constantemente testados, segundo a segundo, no ferro em brasa da loucura. Não tem a paz da solidão, o aprendizado sutil da rejeição, a introspecção abençoada do isolamento, nem o amargo, porém balsâmico gosto do fracasso. Nenhum desses desafios que desenvolvem e fortalecem a personalidade das pessoas lhes é concedido. Tudo parece fácil e sem consequências.
São enganados o tempo todo pelos vampiros energéticos que ambicionam sua beleza, mesmo quando estes elogiam inventam suas qualidades mais profundas – na maioria das vezes não as que realmente possuem. Não, não é fácil ser belo. Aqueles que dentre eles souber transcender essa condição aparentemente privilegiada, e conseguir compreender e vislumbrar as inúmeras camadas mais prenhes de amor e verdade da sua própria condição humana, do que realmente são feitos, sobreviverão à própria sorte. E aí sim, poderão ser gurus, deuses ou guias. E, dessa vez, realmente belos.
Sidão Tenucci é surfista, escritor e diretor de marketing da OP Ocean Pacific. Viajou 55 países, deparando-se com as belezas selvagens de ondas e sereias. Publicou três livros: “Almaquatica”, Ed. Terra Virgem, em parceria com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer gráfico David Carson, o romance de aventuras “O Surfista Peregrino” e o livro de poemas ilustrados por 55 artistas, “Poentes de Amor”, pela Ed. Decor (todos disponíveis na Livraria Cultura).