O título mundial de John John Florence é a vitória do surfista natural. Habilidoso, cool, destemido, completo, relaxado, havaiano, gentil e carismático, ele concentra o conjunto de atributos dos sonhos para um campeão mundial da World Surf League.
Chegou lá pela natureza, pelo talento, diriam os puristas. Embora tenha ralado para alcançar seus objetivos, a conquista jamais será marcada pela força de vontade ou pela fúria competitiva ou pela excelência tática. Ao contrário, ele venceu apesar da ausência de algumas dessas características em seu perfil.
John John é a redenção do surfe-arte. É como se a Seleção de 82 tivesse sido vingada. Sem um Paolo Rossi da vida, para atrapalhar o curso natural do talento.
Em Portugal, foi dominante como deve ser um campeão mundial. Melhor surfista do evento, ele passeou pelos tortuosos canudos de Supertubos e adjacências, em condições quase sempre difíceis, e teve maturidade suficiente para impedir que um coadjuvante atrapalhasse o seu caminho. Não importa se a onda portuguesa é particularmente afeita a seu surfe: ele venceu quando tinha que vencer. Ponto.
Sem os apagões que lhe consumiam os sonhos de título, John John se tornou um legítimo campeão mundial. Fuja da armadilha de desqualificar o título de um surfista tão brilhante, dono de apresentações memoráveis em boa parte da temporada, que passou a representar, ou melhor, sintetizar de modo definitivo o surfista completo.
Gabriel Medina foi prejudicado em duas baterias importantes para a corrida do título mundial – Teahupoo e Trestles. Houve grita, protesto, libelo aqui no Leitura de Onda, tudo legítimo, para jogar luz sobre os tais erros de julgamento. Naquele momento, a manifestação crítica fazia todo sentido. Não agora.
É preciso saber perder com a mesma elegância que ganhar. John John venceu na hora certa, manteve-se em alto nível o ano inteiro. Nenhum choro em Pindorama faz sentido depois de ver o havaiano surfar com tanta classe as ondas lusas.
Gabriel perdeu o título mundial para si mesmo ao não encontrar o melhor surfe em momentos decisivos, como a final da França e o round 3 de Portugal. Por alguma razão, perdeu um pouco do brilho que ofuscava adversários no meio da temporada.
Talvez as derrotas polêmicas tenham lhe impactado de modo diferente do normal – o campeão de 2014 sempre reagira bem na adversidade. Talvez suas boas pranchas não tenham encaixado bem nas condições apresentadas. Talvez ele tenha sentido um pouco a pressão da nuvem de pessoas que desejava o título do havaiano. Talvez, ainda, ele apenas tenha sido vítima do acaso de estar fora do tempo das boas ondas.
Não importa. Resta a quem não venceu levantar a cabeça e olhar, firme, para frente. Nada nos faz crer que 2017 será uma temporada fácil os brasileiros que se candidatarem a um título mundial. Além de encararem um novo John John, agora de peito estufado com o título e ainda mais adorado pelo mainstream, Gabriel e os demais terão que lidar com o fabuloso surfe de Jordy Smith, sem falar nos candidatos mais conhecidos – entre eles Mick Fanning. Vai que ele volta faminto?
A vitória de John John salvou o surfe de mais uma grande perda. Se Gabriel alcançasse o bicampeonato antes do primeiro título de seu novo rival, não duvidaria que o havaiano desanimasse do duro ambiente de competições, como fez, alguns anos atrás, outro grande talento do esporte, o americano Dane Reynolds. O novo cenário, de um título para cada lado, parece ter sido desenhado sob medida para o início de uma rivalidade de longo prazo, com a possível companhia de outros surfistas na luta.
Em pílulas rápidas sobre o evento de Portugal, destaque para o bom surfe de Conner Coffin em sua primeira final, o cada vez mais irretocável Jordy, a perigosa consistência de Kolohe Andino, o ensaio de retorno do velho Adriano de Souza e, finalmente, uma apresentação de Miguel Pupo à altura de seu refinado surfe.
O título de John John em Portugal foi bem diferente dos últimos dois anos. Menos brasileiro, claro, menos efusivo, mais cool, mais ao gosto de muitos estrangeiros. Teve amigo dizendo que comemora gol de pelada com mais entusiasmo que o havaiano celebra título mundial. Cada um no seu quadrado, respeito total às culturas.
A única nota triste é a conquista antecipada esvaziar a etapa de Pipeline, que tinha tudo para se transformar num caldeirão com a disputa aberta. Resta aos adversários tentar carimbar a faixa do campeão na casa dele, o que parece missão especialmente desafiadora – sobretudo no agora renovado cenário de adoração ao cara.
Chamou atenção, num dos posts de Facebook da própria WSL, com um vídeo do título do havaiano, a seguinte frase: “Just the beginning”.
A luta para tirar a lycra amarela do campeão será realmente dura.