A cidade onde o tempo parou

Tulio Brandão, Itacaré (BA)

A mata atlântica vai invadir sua praia – Itacaré (BA). Foto: Arquivo pessoal.

Apertei o cinto, troquei de cérebro. Saiu um monte de neurônios com escritos e prazos de jornalista e entrou uma massa soltinha, sem embaço, cuja tela inicial era uma mensagem dizendo que surfista assina um pacto com o tempo, que dentro d’água a gente tem cinco anos pra sempre.

 

O meu remédio, meu santo remédio pra suportar o ano na capa adulta continua sendo, depois dos 30, uma semaninha feito moleque, de short, havaianas e uma prancha debaixo do braço.

 

André, um camarada de férias, formou a barca. Eu queria ir pra Bali, encher uma barca de amigos em Mentawaii, varar o Pacífico na América Latina. Mas, dinheiro e tempo, só para Itacaré. Não sou um cara exigente, minha alma renasce onde tem comida, onda e um canto pra dormir.

 

Últimos passos na trilha para a Prainha. Foto: Arquivo pessoal.

Tem nada não. Itacaré, pra quem não conhece, é uma das filiais do paraíso na Terra – boa parte delas, aliás, abertas por surfistas. Perto de chegar, uma estrada-parque de cerca de 70 Km revela o despeito da Mata Atlântica, que naquelas bandas resolveu molhar suas barbas na água salgada. Praias recortadas, mata exuberante invadindo a areia sem cerimônia, riachos desembocando no mar e pronto, meu sistema nervoso voltou de vez a funcionar azeitado.

 

As ondas, as ondas. Que tal oito dias de metro, metro e meio, no esquema máquina de surfe, chato até de varar fora do canal? Primeiro canto esquerdo da Engenhoca, depois dose dupla de Jeribucaçu, um dia num mar em fúria na corrente oceânica do Farol, muito sacolejo pesado na Tiririca, um fim de tarde de sonho na Prainha (encarando a trilha de noite na volta) e um Backdoorzinho em Olivença de bônus.

 

Parque de diversões em Jeribucaçu. Foto: Arquivo pessoal.

Cabeça feita com o surfe, minha alma estaria lavada até no meio do nada, mas o nome daquele nada é Itacaré. A cidade é uma espécie de Surfland, disneylândia de quem gosta do surfe e tudo o que o rodeia. Saca só as principais atrações e personagens do parque:

 

Um cara chamado Irado é mais famoso que o prefeito. Trata-se de uma espécie de relações públicas de um restaurante chamado Mistura Fina, onde come-se bem por preço baixo. É só passar ali na Pituba, em frente às mesas de PF, que ele pára na frente do carro com um sorriso de orelha a orelha e o grito: “Faaalaaa cariocaaa!!!” E, volta e meia, depois de protagonizar uma situação bizarra, solta: “É por isso que me chamam de Iraaado!”

 

Fim de tarde no sacolejo da Tiririca. Foto: Arquivo pessoal.

Tem o Bob Marley. Não apenas o músico, mas também o messias, o Jesus da cidade. Você vai à loja de roupa ou ao posto de gasolina e ele está num pôster gigante, pregado na parede. Passa na rua e o maquinista do Zion Train aparece estampado na blusa da menina ou afinado, na voz do garotão com violão.

 

No forró das Conchas, Bob divide parede com o alvará de funcionamento, num quadrinho de vidro fotografado em várias poses. E, claro, em todas as noites na Toca do Calango (bar bacana de uns paulistas gente boa), ele está lá, dando uma canjinha.

 

O armarinho é a saída quando a Toca lota. Isso, armarinho mesmo. A loja de tecidos vira barzinho à noite e recebe a sobra do vizinho. O dono, baiano cheio de tino pro comércio, arrumou um jeito de transformar do dia pra noite seu estabelecimento. Fica lotado, tem copo de cerveja dividindo espaço com máquina de costura. E os metros de tecido ainda viram decoração.

 

O fim de tarde no Centro, comendo bobó na Tia Dete. Foto: Arquivo pessoal.

A Tia Dete, baiana vistosa, não é novidade na cidade, mas quem come seu bobó e sua moqueca de camarão não fica quieto. Ela recebe num cantinho escondido de Itacaré e o preço pode ser salgado para quem vai com grana para PF, mas vale o esforço. É papo de raspar o prato e sair olhando para o vazio, com respiração lenta e cara de prazer.

 

Tem muito mais pra contar, mas é melhor falar do tempo, antes que ele acabe. Itacaré não tem pressa. O homem-surfista deixou sua mensagem estampada no ritmo da cidade.

 

Lá, um dia não é dividido em horas, e sim no café da manhã regado, no dia inteiro de surfe, na moqueca borbulhante, no cochilo de rei ao anoitecer e na cerveja mofada de tão gelada na madruga. Ainda sobra tempo pra não fazer nada e, de vez em quando, pra pensar em fazer isso pra sempre.

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