Adriano de Souza é um brasileiro típico, e tem orgulho disso.
Da origem humilde, guarda a determinação e a fé, que assustam a razão dos donos do poder. De sua admiração pelo irmão militar, exemplo na família, ele absorveu a ideia de que, sem disciplina de quartel, surfista vira vagabundo.
Da genética, herdou a baixa estatura e, por tabela, um centro de gravidade baixo o suficiente para colar o seu pé na prancha nas situações mais adversas que uma onda pode oferecer. E, da natureza (ou do divino), o cara ganhou de presente o talento, essa coisa que ninguém pode explicar no papel.
No Billabong Pro, no Rio, as oportunidades de Adriano foram surgindo à medida que os velhos heróis caíam, um a um, por incompetência ou traídos pela loteria de ondas em que se transformou o evento, nos dois picos onde foi disputado.
De repente, o brasileiro típico, aquele em que muitos conterrâneos desconfiavam, estava ali, a três baterias de fazer história.
A primeira delas, nas quartas, está nas mesas de bar da Austrália. Os aussies não engoliram a derrota do goofie prometido Owen Wright para Adriano. Alegaram, em massa, que o floater do brasileiro não poderia ter vencido o aéreo do garoto de Culburra Beach. No fim da bateria, Owen voou atrás de um 6,74, mas encontrou apenas um 6,60 pelo caminho.
A grita australiana repercutiu tanto que a ASP emitiu um comunicado oficial em seu site para justificar a decisão. No documento, a entidade explica detalhadamente os critérios utilizados no evento e, especialmente, na bateria. Relativiza as duas manobras: a de Adriano, realizada no trecho mais crítico de uma onda da série; e a de Owen, na junção insossa de uma onda intermediária. Desta vez a ASP foi precisa.
Noves fora a defesa adequada do resultado, a atitude da ASP de divulgar a defesa de um resultado é temerária, por abrir um precedente perigoso. Como a própria entidade revela em seu site, baterias apertadas são comuns na elite. Será que agora toda bateria discutida será justificada num relatório para o público? E mais: será que uma eventual “close heat” envolvendo a derrota de um brasileiro terá o mesmo tratamento do painel de juízes da ASP?
A justificativa pública é também preocupante por revelar o quanto a ASP foi pressionada ao dar a decisão favorável ao brasileiro. É hora de ficar de olhos abertos também porque sabemos que o universo dos critérios subjetivos é afeito à lei das compensações, sem desmerecer os juízes, que são realmente qualificados.
A bateria também virou assunto numa de minhas listas de discussão de amigos surfistas. O título do e-mail, que até ontem tinha 26 respostas, era “Exercício de julgamento de bateria“. Todo mundo opinou, e a visão majoritária era idêntica à apresentada pela ASP, antes mesmo de a entidade se pronunciar.
Um dos amigos, o Carlos Stampa, lembrou bem de um dos critérios utilizados pela ASP: o tal “commitment”, que numa tradução significa envolvimento, comprometimento. Ninguém no evento se entregou mais às ondas que o Mineiro, com batidas sempre no limite da onda, sempre no risco do erro. Isso faz a cabeça dos juízes ao longo de um evento.
O que importa é que Adriano avançou à semifinal, engoliu Bede Durbidge numa bateria de poucas ondas e disputou a bateria decisiva contra Taj Burrow. O australiano vinha surfando muito bem durante todo o evento, e tinha feito as maiores notas do dia até então.
Por essas e outras, Taj entrou, contra Adriano, certo de que venceria o evento. Acabou perdendo merecidamente, para um surfista agudo, preciso, que buscou as melhores ondas da bateria e aproveitou todos os espaços oferecidos.
Adriano saiu da água para entrar na história do esporte no Brasil. Com a vitória, tornou-se o primeiro brasileiro a assumir a liderança da corrida pelo título do WT. Mais que isso: é o primeiro natural dos trópicos a se posicionar de maneira contundente – até mesmo para os saxões que dominam o surf – como candidato ao caneco da temporada.
As duas próximas paradas do WT, em Jeffreys e Teahupoo, são fundamentais às pretensões do brasileiro, diante da qualidade extraclasse de alguns adversários nesses picos. Mas o surf de Adriano, diferentemente do estereótipo, encaixa-se bem nas duas ondas.
Diria até que aposto mais fichas num resultado no Tahiti, diante de sua evolução espantosa no posicionamento em ondas tubulares para a esquerda. Já está na hora de Adriano ter um bom resultado lá.
Alguns adversários estão com o brasileiro entalado na garganta. Joel Parkinson disparou no Twitter, após a conquista do brasileiro, que sentia pena de Owen Wright, diante do resultado que ele considerava injusto. Recalque brabo, que depõe contra a habitual classe de Joel.
Matt Wilkinson perguntou, em tom irônico, no mesmo site, se floater não era o novo air reverse. Engraçado é que nenhum gringo abriu a boca quando, dois anos atrás, Kelly Slater ganhou executando a manobra nas pequenas e gordas ondas de Imbituba.
Adriano sabe que o resto do ano vai ser especialmente difícil. Afinal, todo mundo quer puxar o tapete do líder, sempre. Mas, alimentado por sua fé inabalável e por um público totalmente energizado com o espírito brasileiro, ele já surpreendeu o mundo uma vez, ao ganhar o evento que lhe deu a liderança da temporada.
Alguém duvida que esse brasileiro típico, cheio de orgulho de suas origens, não será capaz de brigar até o fim pelo caneco?
Uma coisa é certa: Adriano não duvida. E ele já provou que isso é o suficiente.
Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.