Jeff Hakman - Parte III

A intensidade de um legend

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Jeff Hakman, Waimea, Hawaii. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Jeff Hakman. Foto: Arquivo Pessoal.

Em 1974, houve a final antológica do Duke Kahanamoku Invitational em Waimea Bay, contra Reno Abelira, em que Jeff tirou segundo por margem mínima, no maior mar surfado durante um campeonato na história do esporte até então, com séries de até 30 pés (10 metros). Muitos dos surfistas convidados se recusaram a entrar na água. Quando entrava a série de ondas era como se o horizonte inteiro se levantasse e viesse em sua direção. Na madrugada daquele dia, Jeff entrou quando ainda estava escuro, para poder treinar e se adaptar às condições extremas antes da competição.

 

 

Em 1975, Jeff e seu amigo com MBA, Bob McKnight, vendo o sucesso de marcas como a Lightning Bolt, levadas pela aura de Gerry Lopez, resolveram que entrar na onda da indústria de surfwear seria uma boa ideia. Jeff sabia tudo de surf, Bob, tudo sobre negócios: uma parceria de sonho.

Jeff gostou de uma bermuda emprestada pelo seu amigo australiano Mark Warren. Caimento perfeito: “It felt right”, pensou. O nome da marca? Quiksilver. Queria a licença para levar para os EUA. Em Bell´s Beach, no ano seguinte, Jeff encontrou um dos sócios, Alan Green. Os três donos, australianos pacatos, soul surfers, e donos de uma pequena fábrica quase artesanal, não estavam muito convencidos. Num jantar, depois de várias garrafas de vinho, Jeff desafiou: “O que eu preciso fazer para vocês me darem a licença? Querem que eu coma essa toalha de papel??!”. Alan sorriu e anuiu com a cabeça. Jeff pegou a toalha, começou a mastigar, quase engasgou, finalmente engoliu, e antes de começar a digerir já havia ganhado a licença de um Alan tão surpreso quanto divertido: “Take the fucking licence, Hakman!”.

 

No embarque de volta para o Havaí ele estava eufórico, e nem Alan, nem ninguém poderia supor que Jeff passaria as doze horas seguintes de voo encolhido, tremendo em posição fetal. A heroína cobrava seu tributo, mesmo para um homem como Hakman, que durante esse curto período na Austrália, sob o efeito avassalador das doses diárias, ainda assim conseguiu fazer o maior negócio da sua vida, e foi o primeiro estrangeiro a vencer o Bell´s Beach Contest, além de lidar com os velhos amigos e angariar novo sem que ninguém percebesse o que se passava dentro dele. Esse tipo de resistência insana veio literalmente à tona novamente, em 1981, quando ele não conseguiu sair por cima da junção de uma onda de dez pés “havaianos” – pelo menos cinco metros – que ia se fechando em Backyards, Costa Norte de Oahu, Havaí. Foi levantado pela onda e jogado de volta de cabeça no recife de coral. Conseguiu chegar à praia, onde o amigo e famoso fabricante de pranchas de surf Tom Parrish tentou não vomitar ao ver o ferimento que abriu uma avenida irregular na testa direita de Hakman. Tom respirou fundo e se recompôs para poder levá-lo ao hospital. Lá chegando, os médicos que costuraram os mais de cinquenta pontos no escalpo dilacerado não podiam acreditar que ele não havia desmaiado com o impacto. Permanecer consciente foi o que salvou a sua vida.

 

Não é segredo, inclusive narrado com precisão e crueza na bela biografia de Hakman: “Mr. Sunset”, de autoria do autraliano Phil Jarratt, que Jeff acabou ganhando muita grana levando a Quiksilver da Austrália para os U.S.A., e que detonou tudo com as drogas, sendo inclusive, em função do vício, sumariamente “deletado” da companhia. É fato, também, que voltou a se recuperar financeiramente, anos depois, quando introduziu a marca na Europa enfatizando mais o lado “snowboard” do business, e que, outra vez milionário, cedeu novamente ao sussurrar da serpente, à tentação da névoa injetável. Vendeu muitas das ações da empresa a preço de abacaxi, que foram parar direto no seu braço. Uma das metáforas mais suaves e terríveis que já ouvi, chama a recaída na heroína de “tap on the shoulder” (“tapinha nas costas”). Distraiu, olhou para trás, dançou. Quando a Quiksilver-Europa estava começando a decolar depois de todos terem trabalhado como cangurus obcecados, Jeff desviou dinheiro da companhia e dos amigos que haviam lhe dado outra chance sem que – muitos achavam – realmente merecesse, para sustentar sua mais nova escorregada na maionese em pó. Sentiu-se terrivelmente culpado, mas a lógica do vício não compreende ou considera ética ou amizade. Para a heroína não existe mundo lá fora. Ela possui o usuário e tudo o que ele representa.

Jeff não se isenta da responsabilidade, embora alguns já o tenham definido como um ingênuo, alguém com uma profunda dificuldade em dizer não. Essa característica, aliada à sua natural empolgação, certamente constituiu um prato cheio para as sanguessugas dos becos. Algo permaneceu vivo, no entanto.

 

Na década de 1980, levado pelos amigos para um programa de reabilitação de alguns meses numa das melhores clínicas do mundo, em Londres, ele se livrou da droga. Reconhece que o lugar ensinou muito a ele, inclusive a dizer não.

 

Sentados na minha varanda, olhando para ao mar, Jeff disse, num tom mais introspectivo: “Cometi muitos êrros, Sidão”. “Hey, Jeff! Quem não cometeu? Isso é passado, o negócio é focar no hoje”. Ele sorriu mais uma vez, respirou fundo, e continuou a apreciar o enorme pêssego que lhe ofereci.

 

Pareceu-me realmente um cara com uma coragem enorme para refazer a vida a cada dia, a cada onda.

 

Um pouco depois passou pela garagem, e ao ver umas pranchas no rack (prateleira), comentou: “Nice set of longboards you have there, Sidão”. “Nice set of experiences you´ve got there, Jeff”, pensei.

 

“Jeff, você sente que tem o poder de reconstruir a sua vida no momento que quiser?”. “Eu costumava pensar isso, hoje é muito mais difícil”. Opinião curiosamente compartilhada – vim a ler depois – pelo repórter Tim Southwell, da BloombergBusinessweekMagazine: “Se tem um cara que olha para a frente na vida, é Jeff Hakman”.

 

(continua)

 

Sidney Luiz Tenucci Jr, o Sidão, foi o criador da OP Ocean Pacific no Brasil. É colunista do site Waves há 10 anos. Viajou 55 países esbarrando em todo tipo de onda marcante e de figura carimbada. É autor dos livros Almaquatica (Ed. Terra Virgem), O Surfista Peregrino e Poentes de Amor (Ed. Decor). Lança em breve “Os Sete Chakras Geográficos”, pela Editora NeoAnima.

 

Leia mais

 

Parte I – Mr. Sunset

 

Parte II – Uma lenda viva