O choro da sala de parto é o primeiro sopro de vida no mundo real, a primeira expressão de vontade do filho. Como quem diz : agora que me tiraram da barriga e eu estou aqui neste mundo de luzes ofuscantes cercado de gente com máscaras, quero dizer que sou cheio de vontades. A primeira delas é ir para o colo de quem me levou na barriga por nove meses, é beber o leite materno, como manda a minha natureza.
Vivi por duas vezes o milagre de ser pai. Em cada uma delas, senti um turbilhão descontrolado de emoções indescritíveis, que um amigo, o Klebinho, certa vez resumiu numa frase: a melhor onda da vida. É a descrição mais sincera que já ouvi de um pai surfista.
Entre o choro da vida e o primeiro colo, imaginei se minhas filhas pegariam onda. Sabia que o momento não era adequado, mas a ideia simplesmente veio à cabeça – saiu de algum lugar onde só o existe desejo e chegou, sem parar em blitz de lei seca, na casa da razão.
A primeira imagem é a das filhas dividindo o line-up de alguma praia perdida de águas azuis e mornas, sem crowd, numa sessão sublime em família. Eu remo de volta para o outside enquanto vejo a mais velha se entocar num tubo para a esquerda e a mais nova, na direita, voar num alley-oop. As duas, com sorriso provocativo no rosto, voltam gritando:
– Quero ver fazer igual, pai!
Ato contínuo, passa em minha cabeça um filme em corte seco dos 549 perrengues que já passei nos mares do mundo. Recuo, diante daqueles frágeis e doces pedacinhos de gente que, a esta altura, já dormem sossegadas no meu colo.
Aquele dia de quase afogamento no Leblon, com a prancha sendo triturada nas pedras e a boca me levando para alto mar, as duas ondas seguidas de caldo na arrebentação nervosa de Asu, as incríveis furadas em que todo surfista se mete em viagens para encontrar as ondas certas e os tantos outros perigos que rondam o esporte: não há como garantir, tanto no surfe como na vida, um filme editado apenas com os melhores momentos.
Relaxei, e vi que aqueles sonhos eram meus, e não delas. Como um pai surfista, eu deveria deixar que elas tivessem seus próprios sonhos, sejam lá quais forem. Afinal, tanto no mar quanto na vida, uma onda nunca é igual à outra. Há ondas parecidas, mas, iguais, não.
Se um dia elas quiserem realmente pegar onda, eu estarei lá para ensiná-las alguns atalhos importantes. Se quiserem ser jornalistas, também vou poder ajudar. Se quiserem ser cientistas, astronautas, poetas, bailarinas ou cantoras – e se essas opções ou quaisquer outras forem os seus sonhos – estarei lá, disposto a tudo para torná-los realidade.
Muitas alegrias depois, chegamos ao Natal do ano passado, em Búzios. Ana, aos cinco anos, brinca de descer ondas com um pequeno bodyboarding o dia inteiro. E insiste: pai, me empurra nas maiores! O velho surfista, entre emocionado e preocupado, lança a filha com cuidado nas intermediárias. Tá de bom tamanho, para começar.
Noutra viagem, desta vez para Itacaré, deixo-a com a turma da recreação do hotel para cuidar da filha caçula. Quando volto, um casal de amigos me conta que ela deu um show na aulinha de surfe. Pegou sete ondas até a beira de longboard. A base, o estilo bonito e o esforço para botar no corte lembram os rolés de skate que ela dá com o pai desde os dois anos.
Deixei a pequena tão à vontade para decidir o próprio caminho que eu, um pai apaixonado pelo mar, sequer estava perto em sua primeira vez em pé na prancha. Restaram, para meu deleite, algumas fotos feitas por um casal de amigos do Sul. Quando cheguei à praia, todo mundo veio me perguntar se ela já surfava há tempos. Pensei que, de uma certa maneira, sim.
Todo orgulhoso, assuntei com a própria estrela como tinha sido a experiência:
– Ah, pai, foi maneiro – desconversou, para logo ir catar conchas com um amiguinho.
Ana completa hoje 6 anos. Talvez ela seja surfista, talvez não. Talvez Lara, a caçula espoleta de temperamento forte, peça uma prancha no Natal de 2020. Talvez nada disso aconteça. Uma se torne pesquisadora, a outra bailarina. O que importa mesmo é viver com paixão, com uma vontade de viver tão genuína quanto a de um bebê que pede o leite ao nascer.
Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe