Manif é o apelido carinhoso usado pelos franceses e, mais tarde, por todos os europeus para designar manifestações populares. Lá, a cultura do protesto se disseminou de tal maneira que as “manifs” surgem espontaneamente quase todo mês, contra causas pontuais.
Virou um exercício cotidiano de cidadania, que alimenta a democracia participativa e faz com que o poder público decida sempre com um olho nas ruas. Aqui, a onda de protestos que varreu as cidades quebrou vários velhos paradigmas da nossa cultura e certamente lançará novas práticas, como a disseminação das “manifs”.
O caminho, no entanto, é longo. Por aqui, as pautas estão em construção. Superada a luta contra o aumento da passagem, entraram na agenda PEC 37, cura gay, medidas contra a corrupção, mais e melhor infraestrutura de saúde e educação, entre várias outras.
Alguns amigos, na contramão da opinião geral, dizem que, na verdade, o grito das ruas não é difuso, desorganizado. Concordo que há três elementos bem claros de indignação: O primeiro é o abismo criado entre os políticos (e suas legendas) e o desejo da população, simbolizado por questões como o desprezo pelas assinaturas da ficha limpa (mais de um milhão), a escolha de um presidente do Senado acusado de ligação escusas com empreiteiras e um pastor, que já apareceu dando declarações contra negros e gays, alçado ao posto de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
O segundo é o desprezo de políticos que comandam orçamentos federais, estaduais e municipais pelas prioridades sociais. Aqui, o maior exemplo é a enxurrada de bilhões gasta com as arenas padrão Fifa – mais do que o valor despendido nas três últimas copas – e cujo custo não para de aumentar, a poucos metros de escolas, hospitais e transporte público completamente sucateados. O que as ruas andam a dizer é que um país com infraestrutura zerada não pode ter um Nou Camp pago com dinheiro público.
O terceiro, e não menos importante, é a cultura de corrupção, potencializada por relações cada vez mais promíscuas entre o poder público e a iniciativa privada. Em vez de os administradores estimularem o surgimento de empresas mais responsáveis, criam monstros acostumados a ter o Estado como provedor, em troca de alguns interesses. O modo como algumas empreiteiras têm dominado alguns governos é um sintoma claro disso.
Este é um movimento de transformação, aberto. Pode dar certo, ou não.
A garotada, a nova geração que domina as ruas, trabalha com uma lógica meio em tempo real, orgânica, como se fosse uma argila úmida a ser moldada. Como eu e minha turma nascemos num tempo em que havia apenas dois lados rígidos, às vezes custamos a nos acostumar com isso, mas acho que é assim que a garotada lida com o mundo. Isso deve gerar um caldo diferente, inédito.
Muitos dos novos manifestantes rejeitam o velho rótulo de esquerda e direita, querem é seguir em frente. São modelos que, para eles, parecem datados. Tanto que um dos movimentos que iniciou o protesto contra o aumento das passagens, com viés nítido de esquerda, saiu das ruas por considerar a agenda da população muito conservadora.
Há riscos neste processo, evidentemente. O movimento rejeita claramente o status atual de nosso sistema político, por tudo o que foi dito aqui em cima. Mas, como diz um amigo, é ótimo que seja um movimento apartidário, mas é péssimo que seja antipartidário.
A questão é que o sistema de partidos, embora completamente doente, é uma das bases fundadas de nossa e de todas as outras democracias. Os outros pilares são os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, também contaminados.
Mas, sem isso, teremos militares nas ruas, perda de liberdade, extremistas de volta e o risco de novos messias no poder. Daremos vários passos atrás.
Estamos no meio de um terremoto, com a terra igual à gelatina, sem saber que instituições resistirão ao tremor. O país precisa encontrar um jeito de incorporar todas essas fantásticas mudanças ao seu sistema democrático. Que surjam novos partidos e novos quadros políticos, que punam as velhas raposas corruptas, que façam reformas nos três poderes, que atualizem a constituição, que se dissemine a cultura do protesto democrático, sem perdermos a liberdade.
Boa nova onda a todos nós.