A quinta sinfonia de Beethoven rasga o silêncio do escritório enquanto batuco essas linhas. Lembro de meu avô, que preferia a nona, dizia que era mais complexa. Eu, moleque impúbere, achava a quinta mais viva, mais urgente, era como se o alemão Ludwig batesse mesmo à nossa porta.
No fundo, eu gostava mesmo era de deitar no sofá ao lado dele e gastar as noites a ouvir em silêncio toda a profusão de acordes de todas as sinfonias. Todas as músicas eram ricas, inspiradoras. Adornaram a infância de um neto curioso ao lado do avô.
Outro dia sonhei que estava naquele saudoso sofá e, em vez de ouvirmos LPs de música clássica, assistíamos à decisão da temporada de 2015 do WCT.
No teatro de Pipeline, como nos grandes concertos, o espetáculo está garantido.
Mick Fanning seria uma mistura de melodias: andante e presto. Vê-lo na onda nos dá sempre uma sensação de conforto, de equilíbrio, num andamento agradável e compassado, mas com velocidade.
Filipe Toledo, nossa explosão juvenil, é a música allegro, ligeira. Seu surfe diverte, anima, instiga. É reinvenção pura, é estado criativo.
Adriano de Souza caminha na onda como uma marcha frequente, consistente, viva. É um surfista de andamento marcia moderato, um talento que tatuou a consistência e a perseverança na alma. Um exemplo para todos nós, mortais.
A música de Gabriel Medina é a chamada molto vivace, muito rápida, viva, aguda. Um surfista capaz de explodir no último movimento da sinfonia, na decisão, usando todo o repertório de acordes de sua prancha. Mostrou, em 2014, vocação para o gran finale.
Há ainda dois grandes maestros do surfe – os australianos Owen Wright e Julian Wilson – com chances muito remotas de título. Não os colocaria nessa sinfonia final.
Para além da saudade do avô e de sua música, há uma disputa em jogo. Vamos ao mundo real.
O desejo, claro, é por mais um título dos brasileiros. Acho, sim, que Filipe, Adriano e Gabriel estão em excelente posição para mais um título mundial.
De minha perspectiva, no jogo, Mick leva minúscula vantagem – não pela posição de liderança, que a esta altura é muito mais uma pressão do que uma vantagem – mas por toda a construção de valores em torno dele. O tricampeão do mundo é o símbolo do surfista maduro, overall, gentil em vitórias e derrotas, e este ano ainda viveu o drama da sobrevivência a um ataque de tubarão em plena final de WCT.
Seu obstáculo é o histórico em Pipeline. Jamais foi insinuante, mas pesa a favor o esforço de várias temporadas para alcançar um nível competitivo, mais próximo dos melhores do pico. Já percorreu, portanto, o caminho do aprendizado, necessário a surfistas que não têm o dom natural para ondas mais agudas.
Já Filipinho tem dois trunfos: a fase esplêndida – ele vem do título em Portugal e de um vice em Haleiwa – e a aparente compreensão precoce das ondas de Backdoor. O fato de ter alcançado as quartas-de-final em 2014 é um bom indicador, embora o pico estivesse atípico durante a prova, repleto de areia. Tem, ainda, a vantagem do empate a partir das oitavas. Se Mick perder na mesma fase e se os outros candidatos não avançarem, levanta o caneco.
O arisco Filipinho luta contra a falta de experiência nas esquerdas de Pipeline, especialmente se o mar estiver volumoso. Dia desses, Kelly Slater deu uma alfinetada no brasileiro, dando a entender que ele teria que se esforçar para melhorar em ondas agudas. Não fosse o americano conhecido pelo jogo mental, não fosse o fato de ser perfeitamente compreensível que Filipe, aos 20 anos, não esteja no topo em ondas normalmente afeitas aos mais experientes, eu diria que é um bom conselho.
Quem seguiu a dica foi o mais velho Adriano de Souza, o terceiro candidato à coroa. Mineiro treina obsessivamente em tubos desde que percebeu ter uma deficiência. Aliás, ele treina obsessivamente em todos os cenários, ondas e circunstâncias. Mina adversários, planeja táticas, surfa muito. Faz tudo pelo seu sonho.
Fez uma final de WQS em Pipeline, gastou muitos meses no arquipélago, enquanto seus adversários descansavam. Construiu, com isso, a sua possibilidade de título, na disputa decisiva. Mineiro é, talvez, o surfista que mais mereça, pelos anos de trabalho duro, um título mundial. Seria a vitória do esportista dedicado.
Os obstáculos são conhecidos. Ele sabe que, apesar dos avanços, a luta pelo título será muito difícil. Sabe, ainda, que enfrentará, em algum momento, favoritos – surfistas que, como ele mesmo diz, são mais talentosos em Pipeline. Mas também sabe como vencê-los – e que nenhum de nós duvide de sua capacidade.
Gabriel vem por último na lista, mas, se seus adversários tropeçarem minimamente, tem boas chances de atropelá-los numa de suas ondas prediletas. Chega ao Hawaii com o sonho do bicampeonato vivo, e isso representa um perigo para os adversários. A decisão de 2015 será mais uma oportunidade para o campeão do mundo provar sua capacidade de virar o jogo no instante final, depois de um ano instável.
Seu maior obstáculo – não depender de si mesmo para alcançar o título – se converte também numa vantagem: não estar no centro dos holofotes, surfa sem pressão. A circunstância começa inversa à decisão de 2014, mas pode terminar – se os deuses conspirarem a favor do garoto de Maresias – da mesma forma.
Não importa o número – nem da sinfonia, nem do surfista. O que importa é assistir, do sofá ou mesmo das areias de Pipeline, ao maior espetáculo esportivo da Terra. Porque o bom surfe pode ser tão inspirador quanto passar as tardes da infância ouvindo boa música ao lado do avô.