Se eu pudesse realizar uma comparação, estritamente pessoal, entre os anos 80, época em que comecei a surfar, e o presente, poderia muito bem demarcar os limites e as diferenças desses dois momentos pelo modo como todos nós, surfistas ou não, passamos a nos relacionar com os valores de eficiência técnica, profissionalismo e individualidade.
Para quem tem mais de 30 anos, como eu, as últimas duas décadas do século XX, no Brasil, constituíram para a nossa sociedade uma espécie de período de aprendizado a respeito do capitalismo nos moldes estabelecidos pela globalização. Foi preciso adequarmos a nossa sensibilidade à diversidade de produtos expostos nas prateleiras, ao aumento sensível da concorrência no mercado de trabalho e, sobretudo, a incorporação dos muitos espaços simbólicos de liberdade pela industria do entretenimento e do turismo.
Anos atrás seria impossível realizarmos viagens a lugares inóspitos, repletos de boas ondas, através de uma agência de turismo especializada em surf trip. Tampouco não creio que o surf, como o skate, antes manifestação clara da contra-cultura, se tornassem uma opção para uma carreira, desejada e respeitada por inúmeras famílias brasileiras.
O mundo mudou e essa mudança exige uma nova compreensão do que está em jogo, dos desafios que devemos enfrentar para entendermos como nos posicionar frente a um cenário em que necessitamos, cada vez mais, resgatar os sentimentos de liberdade provocados por ondas perfeitas, solidão do line-up e o cheiro da terra molhada de uma trilha que desenboca na praia.
Essa necessidade é tão verdadeira que grande parte da indústria do surf, muitas vezes de modo errático, constrói a imagem de suas marcas a partir da promessa de que os seu produtos possam vender algo desse sentimento. O surf é, neste sentido, a última útopia do século XX.
Para minha geração, por exemplo, que já sentiu a liberdade da primeira juventude escorrer pelos dedos e, hoje, se encontra nos milhares de escritórios das grandes cidades brasileiras, o sonho da ondulação perfeita, em uma praia qualquer, confunde-se com a profissionalização do surf e a torcida pelos bons resultados de nossos competidores.
Vivemos um dilema, cindidos, entre o desejo de que a praia se encontre vazia no fim-de-semana e a possibilidade de vermos, acidentalmente, um jovem capaz de tornar-se o nosso mais feroz competidor, apto a trazer para o Brasil o tão esperado título mundial.
Em tese, acho que vivemos uma espécie de cabo de força interno, isto é: ora acompanhamos, pela internet, os campeonatos a espera da vitória de nossos pares, ora gostaríamos que tudo desaparecesse para que somente o nosso carro fosse visto estacionado em frente ao pico.
Sem ninguém, sem competição. Não se trata de fazermos uma escolha, mas de compreendermos que não há escolha a fazer. O surf, hoje, é tanto a disputa da bateria homem a homem como um grupo de amigos que passam parafina em suas pranchas antes de uma caída num mar perfeito.
Se não estamos diante de uma opção, é necessário que sejamos capazes de contemplar essa ambivalência, característica do nosso tempo, seja no desenho das mercadorias da industria do surf, seja quando se projeta uma carreira para um jovem surfista que, embora talentoso, não tenha desejo de ganhar campeonatos.
É preciso, aqui, entendermos que a construção dessas duas formas de vivermos do surf exige duas carpintarias distintas, pois o que se vende e o que se compra, nos dois casos, são coisas diferentes.
O importante é saber: 1) como a indústria deve se posicionar nesse cenário?; 2) como auxiliar os novos surfistas a entenderem o que precisam incorporar para terem êxito nessa profissão, seja como profissional de competição, seja como modelo da liberdade e da utopia?
O fato é que a industria ganhou nas duas últimas décadas um repertório maduro e bastante eficiente no que tange a promoção do surf profissional como sinônimo de competição. É preciso tira o chapéu para toda uma geração que se empenhou com extrema competência em construir um parque industrial pujante e, por isso, admirável.
Todavia, é preciso ampliar os horizontes, criar novas formas de ação que tragam para junto de si o sentimento de liberdade, inerente ao esporte. A fim de ilustrar o que digo, lembro de, certa vez, estar junto com minha filha no line-up quando ela tinha 7 anos e ver se aproximar um homem, acima do peso e com seus 40 anos, e nos dizer: “O mar tá pequeno, tem muita gente para disputar poucas ondas, mas eu não pude deixar de dar uma caída hoje. Não aguentava mais um instante dentro do meu consultório. Parabéns por ensinar a sua filha a surfar. Afinal, surf é vida”.
Aquele dentista, que nunca mais vi, expressava ali algo muito além dos limites impostos pelo palanque de um campeonato, da voz de um locutor ou da prateleira da surfweare. Ele, possivelmente, queria expressar que, naquele mar flat, se sentia realmente feliz. Como seremos capazes de oferecer para esse dentista produtos que representem esse sentimento? Como devemos nos portar diante de alguém que, alheio ao modo como a industria do surf tem se manifestado nos últimos anos, acredita ser o surf algo essencial para a sua vida?
Porque o problema se delimita nesse circuito, talvez devêssemos pensar em novos modos, além daqueles que possuímos hoje, de construirmos carreiras dentro do surf. Entenda-se: a capacidade que um indivíduo possui de reverter o seu trabalho em lucro para uma empresa. No que tange a industria do surf, é preciso saber que o desejo de compra está ai, do nosso lado, na tela de qualquer computador de quem busca, em meio a papelada do trabalho, saber as condições do mar para sábado. É necessário, no entanto, saber o que e como oferecer esse produto.
João Carlos Guedes da Fonseca é professor da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP