Leitura de onda

A vingança dos mortais

Chris Davidson e Gabe Kling, Nike 6.0 Lowers Pro 2010, Trestles, Califórnia (EUA)

 

 

Chris Davidson e Gabe Kling no pódio do Nike 6.0. Foto: Marcelo Bolão / Chutaobalde.com.

Lower Trestles estava apinhada de novas e velhas estrelas, mas quem levou a etapa, que virou uma das mais cobiçadas do circuito de acesso com o novo corte no ranking, foi o azarão Gabe Kling, dono de um surfe correto, no trilho certo e com carving definido.

 

 

A vitória de Kling é um alento aos surfistas mortais, comuns, que ainda não compraram bilhete para o trem da nova ordem mundial, onde só entram os mutantes capazes de inventar o novo.

 

Aéreos reverses, alley-oops, rodeo-clowns e outras invenções quase circenses são como armas de fogo de maior calibre, capazes de um estrago bem maior em ondas – e, por tabela, na papeleta dos juízes.

 

Mas, numa guerra, o cara tem que saber usar a munição na hora certa e sempre acertar o alvo. Do contrário, corre o risco de ser atingido por uma pedra lançada de forma certeira de uma atiradeira medieval e ficar pelo caminho.

 

As ondas fáceis de Lower Trestles parecem um campo de treino perfeito para o repertório progressivo que certamente vai dominar a segunda década do século XXI , mas a aparência pode enganar o surfista mais afoito.

 

A qualidade daquela parede também favorece os arcos mais suaves, que não fazem o surfista perder velocidade. Kling tirou vantagem disso.  

 

Nas fases das baterias de quatro, o campeão não havia conquistado sequer uma vitória. Passara quase sempre sem brilho, em segundo. O turning point de sua história no evento rolou nas quarta-de-final, quando, mesmo sendo um surfista com armas conhecidas, atropelou o exterminador do futuro Jordy Smith, por um placar de respeito: 16.50 x 15.77.

 

Depois, passou pelo tricampeão mundial Andy Irons e, na final, não tomou conhecimento de Chris Davidson, sempre com um surfe correto, nas melhores ondas, fazendo manobras na hora certa. (Uma nota rápida sobre Irons: o único surfista da história a desmontar a fortaleza psicológica de Kelly Slater deu os primeiros sinais contundentes de recuperação em Trestles. Nas quartas-de-final contra CJ, foi o surfista insinuante, dono de linhas precisas e extremamente moderno que encantou o circuito mundial anos atrás. Fez duas notas superiores a 9. Deu esperança a quem torce pela sua recuperação de uma performance melhor em Jeffrey´s Bay).

 

O surfe progressivo sofreu abalos também na categoria Júnior do evento. Gabriel Medina, dono de algumas das armas mais letais do mundo, ficou em último nas quartas-de-final da categoria Júnior fazendo 15,27 em suas duas melhores ondas.

 

Noves fora uma possível falha de julgamento de sua melhor onda – denunciada pelo próprio comentarista no vídeo on-demand do evento – a derrota indica que o futuro será de notas altas o tempo todo. E nem adianta só tirar da cartola um superman ou coisa parecida.

 

Prova disso aconteceu com Josh Kerr, nas quartas-de-final do evento principal. Ele acertou uma manobra futurista de skate street na onda, mas não deu continuidade. Saiu da linha, perdeu fluidez e, por isso, não ganhou a nota que precisava para virar em cima de Jordy Smith.

 

Adriano de Souza foi, como quase sempre, o melhor do Brasil. Se a ASP fosse uma escola, Mineiro seria um dos melhores alunos, um clássico CDF. Os juízes pedem carving na cavada e durante a manobra, ele executa. Manobras aéreas, em dia. Reverses podem ser notados em quase todas as ondas. Velocidade, ele tem de sobra. Até as ondas tubulares o garoto dominou.

 

Então, o que falta para a glória? Aparentemente nada. Mas, fosse eu um amigo de escola, o colega vagabundo que todos já tiveram, diria sem medo ao Mineiro: relaxe, parceiro!

 

Tenho observado no surfe de Adriano uma carga excessiva de compromisso com o correto, com o esperado pela ASP. É como se ele tivesse na cabeça a rotina de manobras que vai executar antes de entrar na água.

 

Antes que me entendam mal: ele está no topo, surfando muito. Só falta a cereja no bolo.

Os mesmos juízes que exigem as manobras x, y e z se encantam pelo imponderável, pela criatividade, pela explosão pura de talento que torna o esporte mágico. Eles são como nós.  E Adriano tem, é claro, todas as ferramentas para provocar esse encantamento neles. Basta relaxar só um pouco.

 

Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe

 

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