Mick Fanning tem devoção quase religiosa por seu ofício. O caneco conquistado em 2013 tem as marcas de uma concentração inalcançável aos comuns, de uma regularidade só conquistada pelos obcecados e de uma busca insana pela precisão dos movimentos.
Antes da vitória, porém, ele tinha pela frente Pipeline. Mais que isso, um dia épico em Pipeline, inesquecível, e a sombra do maior surfista de todos os tempos. Nenhum de nós, mortais, imagina o que significa ter como adversário direto na briga pelo título, em tubos de 12 pés sólidos, Kelly Slater.
Recorro a Peter Marshall, um pastor americano do século XX, bom nessas frases motivacionais, para tentar entender o espírito e as circunstâncias de Fanning: “Enquanto suspiramos por uma vida sem dificuldades, devemos nos lembrar de que o carvalho cresce forte através de ventos contrários e que os diamantes são formados sob pressão.”
A primeira missão do dia já era por demais espinhosa: enfrentar o especialista em tubos CJ Hobgood, ou mais que isso, um CJ mordido por ter sido o adversário “escolhido” pelo australiano.
Para quem não acompanhou, abro um parêntese e explico: Mick notadamente forçou uma interferência no round 4, sem perdedores, para evitar cruzar com John John Florence antes de ter o título assegurado.
Num mar ainda em transição, sem muitas ondas, o sempre frio Mick chafurdou estranhamente em sua ansiedade até que, no apagar das luzes, virou com uma onda limpa.
Aqui, nota-se a preocupação de Mick com ondas bem executadas, sem movimentos fora da ordem. Para vencer, ele fez isso durante toda a temporada. E repetiu em Pipeline, nos momentos-chave.
Nas quartas, o confronto era de vida ou morte também para seu adversário, Yadin Nicol. E o conterrâneo do Oeste da Austrália parecia pronto para rasgar o ano metodicamente planejado pelo campeão.
Yadin surfou um tubo profundo e outro um pouco mais curto, muito bom. Talvez, sim, tenha sido avaliado de acordo com as circunstâncias. A segunda onda dele talvez deixasse Mick em combinação em outro cenário, mas ali, em Pipeline, na bateria do título, a um passo de algo tão importante, não.
Não serei eu o tolo a condenar juízes nessas circunstâncias. Assisti ao vivo, e tive, eu mesmo, dúvidas sobre o valor da nota. Ondas de virada, em fim de bateria, são naturalmente difíceis de serem avaliadas.
Mas dar a nota a pouco mais de um minuto para o fim da disputa, numa onda tão limpa e longa, com movimentos precisos, que vale nada menos que o terceiro título mundial de um surfista, é tarefa para heróis. Não importa o resultado: se dessem a virada ou a derrota, sobrariam críticas.
Kelly reclamou com os juízes. Talvez tenha lá a sua razão. Mas é bom não perder de vista as inúmeras baterias que o próprio americano ganhou com notas de virada – algumas polêmicas. Andy Irons, por exemplo, jamais esqueceu aquela derrota duvidosa que sofreu para o americano em J-Bay.
A ASP tem com Kelly um farto crédito de ondas sutilmente sobrevalorizadas, não intencionalmente, e sim circunstancialmente. Ele esteve muitas vezes em posição de ganhar ou ganhar.
No fim, Slater venceu a única final possível do evento, contra John John Florence, campeão da Tríplice Coroa. Dois grandes surfistas, uma onda épica. A final, cheia de alternativas, consolidou a certeza de que ambos estão léguas à frente dos demais naquela arena. É outro patamar.
A vitória de Slater, entretanto, não simboliza a superioridade do americano sobre Mick Fanning. O campeão da temporada foi mais regular em ondas desprezíveis, mas reais no circuito. O calendário do mundo real – e não do ideal – está posto para quem quiser enfrentá-lo, a despeito das vitórias mais belas e emblemáticas do ano terem saído dos pés e pranchas do americano.
E, por fim: Kelly ganhou o evento sem a obrigação de ganhar. Ano passado, precisava vencer para tirar o título de Joel Parkinson e ficou pelo caminho. Kelly também sabe como é difícil enfrentar a si mesmo.