Leitura de Onda

“Agora eu penso no título”

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Gabriel Medina se torna o primeiro surfista da história a conquistar a perna europeia do Championship Tour – desde que esta passou a ter duas etapas.. Foto: WSL / Poullenot.

 

A frase, quase um desabafo de Gabriel Medina à bela repórter Rosy Hodge, é o desfecho de um novo milagre produzido pelo surfista. Depois de vencer na França, o campeão de 2014 avançou como um trator furioso pelas múltiplas condições de mar oferecidas em Supertubos e se tornou o primeiro surfista na história a conquistar, de ponta a ponta, a perna europeia – desde que esta passou a ter duas etapas.

De quebra, Gabriel enterrou nas areias lusas de Supertubos o fantasma das derrotas sucessivas em finais para Julian Wilson. O australiano, seu algoz naquela mesma praia na decisão de 2012, num dos resultados mais controversos da história recente da elite do esporte, derrotara-o também nas finais de Pipeline (2014) e Taiti (2017).

A vitória em Supertubos, antes de tudo, deixa Gabriel mais leve. E seus adversários ainda vivos na disputa do título – John John Florence, que tem vantagem, além de Jordy Smith e o próprio Julian – com o inesperado peso de ter uma renovada máquina de vencer pela frente na etapa de encerramento da temporada, em Pipeline.

Antes de Portugal, a pergunta de Rosy sobre as chances de título do brasileiro soava quase como uma pegadinha. Era muito cedo, e Gabriel, claro, não caiu. Mas, em silêncio, Gabriel provavelmente começava a pensar nisso, ainda que com boa dose de vergonha. Afinal, quando o CT chegou à perna europeia, a três etapas do fim da temporada, ou seja, com 30 mil pontos em jogo, o brasileiro estava em oitavo lugar, a mais de 15 mil pontos de distância para o então líder do ranking, Jordy Smith, tendo feito até ali uma temporada absolutamente irregular, com brilhos eventuais.

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Medina enterra nas areias lusas de Supertubos o fantasma das derrotas sucessivas em finais para Julian Wilson. Foto: WSL / Poullenot.

Nenhum louco otimista ou torcedor fanático admitiria, naquele momento, que duas etapas mais tarde, o mesmo surfista se tornaria vice-líder, a apenas 3.100 pontos de distância do atual líder, John John, e com chances concretas de título mundial.

Se ninguém acreditava, Gabriel decidiu construir essa possibilidade.

O caminho em Portugal não foi fácil. Supertubos é um pico muito sensível, sujeito ao humor instável de ventos e ondulações que alcançam a costa europeia. Grande, difícil, power. Médio, clean, tricky. Pequeno, bonito e instável, com bons tubos. Muito pequeno, infame, com uma onda que lembrava os beach breaks do Rio em seus piores dias. O variado cardápio oferecido pelo pico era indigesto para muitos. Venceu quem conseguiu, de um jeito ou de outro, negociar melhor com a variedade de obstáculos e desafios impostos pelo mar de Portugal.

Para sair de Peniche com o título, Gabriel teve que enfrentar o medo de se tornar um freguês histórico de Julian. Embora tenha um histórico menos brilhante e consistente que o do brasileiro, o australiano “encaixa bem” nas baterias contra o rival. Erra pouco, reage na hora certa e exibe, sem retoques, todo o seu rico arsenal.

Pode parecer incoerente, mas, para Gabriel, pareceu-me melhor negócio enfrentar Julian e enterrar de vez o fantasma que encarar Kolohe Andino, talvez o melhor surfista do último dia de competição, que perdeu na semifinal para o australiano. Kolohe, que repetiu a semifinal da França, já cansou de ser derrotado por Gabriel, e não seria surpresa se estragasse a festa brasileira na final, contrariando prognósticos.

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A vitória em Supertubos deixa Gabriel mais leve. Foto: © WSL / Masurel.

É sempre melhor ganhar de um algoz que ser derrotado por um freguês.

Na final, mais uma vez Gabriel cometeu um erro estratégico importante, ao deixar passar, com a prioridade nas mãos, a pérola para a esquerda que quase dá a vitória ao australiano. Desta vez, conseguiu se recuperar. A pouco mais de um minuto para o fim, encaixou duas ondas em sequência e garantiu a vitória. Surfou duas ondas no minuto final e 14 ondas nos 35 minutos de bateria: naquele mar, uma hora daria certo.

Achei que os juízes subvalorizaram a esquerda de Julian, mas na soma das duas ondas o resultado foi justo. Não gostaria de estar na pele deles. Imagine se o australiano ganha mais uma vez por décimos, especialmente em Portugal?

O que fica de lição é que as disputas Gabriel x Julian sempre terão alternância de líderes. Vencerá quem souber decidir na hora certa. É mais ou menos como as partidas de basquete entre times do mesmo nível: o que vale são os últimos minutos.

Na semifinal, o brasileiro barrou a ascensão de Kanoa Igarashi, mediano que se adapta muito bem aos dias mais infames do circuito mundial. Com o excelente resultado, o americano entrou no corte de classificação pelo CT, mas terá que manter o nível em Pipeline. Ano passado, fez final num mar pequeno, atípico.

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Kolohe Andino atropela John John Florence e manda a decisão do título mundial de 2017 diretamente para Pipeline, para alegria dos que gostam de ver o circo pegar fogo no lugar certo, na hora certa. Foto: © WSL / Masurel.

Kolohe, o outro surfista a ficar na semifinal, também escalou muitos degraus. Com dois terceiros lugares seguidos, alcançou a oitava posição na temporada, ultrapassando até Filipe Toledo, que coleciona duas vitórias na temporada. Mérito para o surfista de San Clemente, o “vice-campeão” da perna europeia, atrás apenas de Gabriel.

Na véspera das finais, quase todas as atenções estavam voltadas para JJ. A pergunta mais ouvida era se o havaiano levaria o título ainda em Portugal ou se conquistaria o bicampeonato em casa, nos canudos de Pipeline. Afinal, o havaiano vinha em bom ritmo, produzindo ondas superiores a oito pontos em quase todas as baterias e contava, como sempre, com a simpatia de toda a máquina da WSL.

Aí, Supertubos resolveu tornar as coisas complexas. O mar bagunçado foi uma pedra gigante no sapato do havaiano, acostumado à oferta generosa de ondas poderosas no quintal de casa. Ele já venceu em mares infames, como na última etapa realizada no Postinho, no Rio, mas também foi derrotado de modo inesperado muitas outras vezes em condições irregulares. Seu forte não é procurar ondas no deserto, não é correr atrás de qualquer vaga que deforme horizontes. JJ é magistral com a onda na mão.

Assim, Kolohe atropelou inapelavelmente o havaiano e mandou a decisão do título mundial de 2017 diretamente para Pipeline, para alegria dos que gostam de ver o circo pegar fogo no lugar certo, na hora certa. A WSL, no aperto, deve ter soltado rojões.

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Miguel Pupo fica mais uma vez em quinto lugar, repetindo o resultado da França, e se aproxima definitivamente do grupo que briga para se manter em 2018 pelo corte do CT. Foto: © WSL / Masurel.

Miguel Pupo mais uma vez nos brindou com o melhor de seu surfe, o que não é pouco. O paulista surfa muito, e parece ter finalmente se dado conta de seu potencial. Ficou mais uma vez em quinto lugar, repetindo o resultado da França, e se aproximou definitivamente do grupo que briga para se manter em 2018 pelo corte do CT. Conhece a linha de Pipeline, já entubou bem ali. Que ele siga a linha ascendente que resolveu iniciar na perna europeia – quem gosta de surfe agradece.

Apesar da notável escalada de Gabriel, JJ ainda é o franco favorito ao título. Surfará em casa, apoiado pelos locais, numa ilha em que sabidamente a WSL pisa em ovos para realizar seus eventos, numa onda que ele domina integralmente – a despeito de jamais ter vencido uma prova da elite em Pipeline. Contra ele, só a pressão silenciosa e aterradora de uma sombra chamada Gabriel Medina, além dos dois outros candidatos que correm por fora, à espera de um vacilo dos dois campeões do mundo.

Serão seis semanas de tensão até a sirene da primeira bateria soar em Oahu.