Leitura de Onda

Milícias da água

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Alessandro Castro, conhecido como Rato, teve quatro pontos no rosto e diversas escoriações no corpo em briga recente no Campeche, Florianópolis (SC). Foto: Reprodução
 

O localismo voltou a ser pauta na grande imprensa esta semana, depois da denúncia de uma agressão a um surfista, no Campeche, em Florianópolis (SC). A violência, supostamente cometida por um policial que surfava, foi registrada em vídeo. A afiliada local da Globo iniciou uma série de reportagens, e os casos chegaram à mesa da Polícia Federal.

 

Peço licença aos defensores do indefensável. Localismo é uma prática estúpida, primitiva, tribal (no que a expressão tem de pior), ignorante, alienada, covarde, egoísta e, por fim mas não menos importante, criminosa. Todos nós já vimos ou sentimos na pele essa violência. Gritamos ou nos calamos, mas historicamente percebemos o localismo como natural, em nome de uma suposta cultura do surfe.

 

Está aí o erro: violência, em qualquer nível, não pode ser parte de nenhuma cultura, sobretudo a de um modo de vida tão mágico.

 

A cultura do localismo se enquadra, sim, nas letras do Código Penal: formação de quadrilha, ameaça, agressão, constrangimento ilegal, dano ao patrimônio, etc.

 

No Brasil, em algumas praias mais disputadas, como parece ser o caso, além de Campeche, do Quebra-Mar, no Rio de Janeiro, a prática do localismo conta, ainda, com tenebrosos aliados: maus policiais surfistas, que se apoiam na autoridade concedida pelo Estado para controlar, à margem da lei, um território público.

 

A prática é idêntica à dos conhecidos milicianos que dominam regiões pobres do Rio de Janeiro. Em nome de uma suposta segurança, de uma suposta ordem, esses criminosos que usam distintivo do Estado impõem suas regras pela lógica do terror para obter algum ganho.

 

Nas favelas, eles lucram com taxas impositivas e outros serviços obrigatórios, como o gato de tevê a cabo e o gás. Nas praias, ganham com a privatização das ondas. Se um dia alguém se arriscar a calcular o valor financeiro de uma onda, como um patrimônio ambiental, como um ativo de lazer, chegará à conclusão de que o localismo é, também, um roubo. No caso, a mão armada.

 

Os bons policiais brasileiros ainda engatinham no combate aos crimes associados ao localismo. Confundem-no com a questão cultural. Mas, em Santa Catarina, pelas mãos da Polícia Federal, a investigação ganha corpo, com a identificação de diversos picos com problemas e surfistas envolvidos.

 

A corporação não pode prescindir da enorme massa de bons policiais surfistas, que se espalha pela costa brasileira em busca de momentos de sossego para aliviar o stress da profissão. Eles têm instrumentos para indicar caminhos adequados a repressões e investigações consistentes contra esse mal.

 

A quem insiste na tese de que o localismo só existe devido ao excesso de surfistas no pico, um recado: em vez de cometer crime, vá pegar onda na costa da África. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".