Kelly Slater tocou o sino. O colunista poderia passar horas tecendo linhas sobre a forma espetacular, a acertada volta às boas pranchas (ele usou uma triquilha round 5´7”), a incrível capacidade de renovar o repertório de manobras , a frieza para sair das situações mais difíceis, mas essa é a explicação oficial para todas as 42 vitórias do gênio.
O surfista com mais vitórias da história sabe que, para vencer, precisa emocionar.
Kelly saber fazer isso como nenhum outro. Chegou a Bells pressionado, depois de um nono na Gold Coast. Momentos antes de sua estreia, deixou vazar a notícia de que teria fraturado o pé durante um treino. Pouco depois, uma nova bomba: o gênio iria competir mesmo machucado.
Todos se comoveram. Eu me comovi.
Kelly tinha uma tênue fratura no pé – chamada em inglês de “hairline fracture”, por ter espessura semelhante à de um fio de cabelo. Mas qual era o tamanho de seu sofrimento dentro d´água? Fui atrás de um médico, o reumatologista Arnaldo Libman, mas não teve jeito: a dor, neste caso, é totalmente variável. Pode doer muito ou nada, diz Libman.
O próprio surfista disse que incomodava mais na areia do que em cima da prancha. Mas, a esta esta altura, já tinha emocionado a praia inteira. E sabia disso. Todos esperavam ver o campeão superando a dor, maior adversário de todos nós, em busca do décimo título. O drama humano tem que estar presente na vida dos campeões.
Faltava o toque final no cenário para a vitória: chamar para a sua torcida os locais. No início da competição, o surfista disse que, caso vencesse a prova, daria o troféu para a comunidade aborígene que vive na região. Devem ter tocado um didgeridoo pelo americano.
Dentro d´água, se seguisse a nova cartilha da ASP, com as tais manobras modernas, estaria perto do título. Ao mesmo tempo, Kelly surfava livre de pressão: se perdesse, a culpa era da fratura. Não aconteceu: nas cinco baterias que disputou antes da final, Kelly construiu seu caminho sem muitos sobressaltos nem grandes momentos.
Na decisão, contra Mick Fanning, as más condições do mar davam um tom cinza à bateria. Os dois surfistas erravam bastante até que, antes da sirene, o artista que encanta encaixou o último e e mais bonito ato: um Alley-oop, numa onda que nada oferecia.
Como pode um cara com o pé quebrado voltar naquela manobra? Como pode um cara com o pé quebrado recuperar o equilíbrio depois de nitidamente deixar a prancha escapar dos pés? A praia gritou. Os juízes piraram: deram-lhe um 8,9 e a liderança na final. A volta do americano à onda não foi limpa, ele recuperou a prancha na espuma.
Mas o que isso importa? Ele emocionou.
Fez como os acrobatas de circo franceses do passado, que antes de uma apresentação mais ousada, que deixaria o público em suspenso, gritavam: “allez-hop!”, que seria alguma coisa como “vamos saltar!”. Não por acaso, daí veio a expressão “Alley-oop”.
Na outra encarnação, Slater deve ter trabalhado no circo. E encantado plateias.
Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe