Surf na selva

Auera auara!

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Marcelo Bibita sabe qual é a “vibe” de surfar na selva. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
A sensação de surfar em plena Floresta Amazônica é simplesmente inesquecível. Recomendaria a qualquer surfista que tenha amor pelo esporte e à natureza.

 

Muitos olham fotos, criticam o tamanho e até a formação da pororoca, mas só quem já encarou o fenômeno sabe qual é a “vibe” de surfar naquele lugar. 

 

Não hesitei em aceitar o convite do meu amigo Serginho Laus para fazer a cobertura da primeira etapa do Circuito Brasileiro de Surf na Pororoca, realizada entre os últimos dias 25 e 27 de março no rio Mearim, em Arari, Maranhão.  

 

Galera em busca da pororoca do Mearim. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
“Show, mas vou poder surfar também, né? Se não, nem vou”, intimei logo de cara. “Claro, moleque. Pode ficar tranqüilo. Agilize suas coisas e traga a sua prancha junto”, respondeu Laus, informando ainda que eu embarcaria para São Luís dentro de oito horas.

 

Depois de chegar à capital maranhense, partimos num ônibus fretado para a pacata cidade de Arari, localizada a 190 quilômetros de São Luís.

 

Durante a viagem, observei a relação de competidores e percebi a ausência do melhor surfista maranhense no cenário nacional. 

 

Ader Oliveira em sua primeira barca atrás de ondas na selva. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
Imediamente perguntei: “Ué, e cadê o Álvaro Bacana, que representa o Maranhão no circuito brasileiro?”.

 

“Ele marcou a famosa touca”, brincou o paraense Noélio Sobrinho, citando uma gíria utilizada pelo pessoal do Maranhão quando o indivíduo comete algum vacilo.

 

“O campeonato está sendo divulgado no Brasil inteiro, todos sabem que vai rolar a etapa, e ele não entrou em contato conosco para participar. A Federação Maranhense promoveu uma seletiva e os dois melhores atletas garantiram vaga”, explicou Noélio, agora sério. 

 

Ao chegarmos a Arari, percebi que uma certa expectativa tomava conta da população local. “Olha lá, os surfistas chegaram”, comentava a galera. 

 

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A pororoca oferece momentos clássicos… Foto: Ader Oliveira.
Os pássaros, sapos e insetos eram os compositores da trilha sonora em nossa primeira noite no interior maranhense. “É, estou em plena selva”, pensava.

 

Mas o que não saía da minha cabeça era o tão esperado encontro com o fenômeno fluvial mais temido da Amazônia.

 

“Como deve ser a força da onda? Será que tem muito animal? E se não conseguir pegar a onda, vou ficar de bobeira no rio?”, essas eram as dúvidas que mais martelavam a minha mente.

 

 

… e assustadores. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
Antes de continuar, vamos a uma breve explicação sobre a pororoca. Ela resulta do encontro das correntes da maré do oceano com a corrente fluvial. Ocorre o ano inteiro, com mais intensidade nos meses de fevereiro a maio e em setembro, sempre nas luas cheia e nova.

 

O termo pororoca vem do tupi ?poroc poroc?, que significa ?destruidor, grande estrondo”. O encontro das águas do oceano Atlântico com os grandes rios amazônicos pode ser escutado duas horas antes da chegada da enorme onda.

 

Nesse período, há uma calmaria na floresta. Pássaros, animais e caboclos se aquietam, numa manifestação de medo e respeito pelo fenômeno capaz de arrasar tudo o que está à sua frente.

 

O estrondo começa quando as águas da maré vindas do oceano chegam à foz de um rio, provocando elevações que podem alcançar quatro metros de altura. Estas viajam a velocidades que podem chegar a 50 km/h.

Voltando à adrenalina de um estreante na pororoca, praticamente não consegui dormir na noite anterior ao evento. No café da manhã, às 5 da manhã, nem senti fome. A tensão era tanta que eu sinceramente não conseguia ficar relaxado.

 

Durante o percurso do ônibus até a margem do rio Mearim, comecei a conversar com o paraense Denis Silva, head-judge da prova. Procurava algumas palavras de tranqüilidade para amenizar a enorme ânsia que tomava conta de mim.

 

Porém, fiquei ainda mais assustado ao trocar uma idéia com o cara. Não estava tão preocupado com a onda, e sim com a possibilidade de ficar à deriva no rio caso perdesse a pororoca, dando sopa para os animais.

 

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População de Arari comparece em peso à margem do Mearim. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
“E aí, Denis, deve ser arriscado ficar isolado no rio, sem ninguém por perto, né?”, perguntei ao paraense. 

 

“Cara, o risco existe a todo instante. Você pode perder a onda e ficar à deriva no rio, pode ser levado pelas correntezas, pode trombar num dos diversos troncos de árvores que pintam no caminho, pode ficar atolado na lama, a lancha pode virar, e por aí vai”, falou o paraense Denis Silva, head-judge da prova. 

 

“Sem contar que o rio tem jacarés, peixe-elétrico, piranhas e, de vez em quando, alguns tubarões que vêm ao estuário”, completou Denis, para o meu desespero.

Serginho Laus conhece a pororoca como poucos. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.

 

A essa altura, a adrenalina já estava a mil por hora. Mas a vontade de encarar a pororoca e surfar em plena selva era ainda maior.

 

Chegando à margem do rio Mearim, fiquei impressionado com a quantidade de pessoas no local. Eram apenas 5 e meia da manhã, e uma galera já estava ali de pé, pronta para prestigiar os surfistas desafiando a pororoca.

 

Agilizamos rapidamente as seis lanchas disponibilizadas pela prefeitura, pois a maré começaria a encher às 6 horas e encontraria o rio para formar a pororoca.

 

Partimos em direção ao estuário para aguardar a chegada da pororoca na seção denominada de “Corredor da Morte”, onde as espumas que vêm de longe se juntam e formam uma onda impressionante. É a partir daí que a pororoca do Mearim começa a funcionar com perfeição.

 

O Corredor da Morte é um paredão de lama endurecida que surgiu depois das constantes erosões provocadas pela pororoca na margem do rio.

 

A onda forma uma direita forte que vem lambendo esse paredão e, se você der sorte, consegue conectar com a longa esquerda que vem no meio do rio.

 

Ela enche pouco tempo depois e some. Aí, você reza para alguém resgatá-lo o mais rápido possível, pois existe uma correnteza muito forte que te joga para dentro do rio Pindaré, onde a pororoca nunca foi surfada.

 

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Irmãos Sandro Buguelo e Sérgio Roberto em harmonia com a pororoca. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.

Se parar no Pindaré, meu amigo, você vai passar perrengue, pois os pilotos das lanchas nunca procuram ninguém por lá. 

 

Depois da bateria final, Adilton Mariano e Sandro Buguelo foram ao Pindaré e ficaram remando por um longo tempo até atravessar de volta ao Mearim.

 

É que quando a última bateria do dia termina, todos que surfam só ficam preocupados em pegar as próximas seções da pororoca, a fissura é grande.

 

A galera dá a maior pilha nos pilotos para acelerar e esperar a onda quebrar novamente em outra bancada. 

Serginho Laus tenta fugir da lama. Foto: Ader Oliveira.

 

Assim, os pobres finalistas acabaram sendo esquecidos e, além de remar em demasia, tiveram que esperar o resgate por um longo tempo na margem do Mearim.

 

Depois da primeira seção, que é a melhor de todas, a onda desaparece. Mas podemos acompanhar a pororoca através de minúsculas marolinhas que formam no canal do rio.

 

Os pilotos e surfistas já conhecem todas as bancadas e sabem onde ela vai quebrar novamente. A segunda seção do Mearim é uma direita muito longa que quebra do meio do rio em direção à margem.

 

Adilton Mariano e Serginho Laus conseguiram algo em torno de 10 minutos nessa seção. Vale destacar que a pororoca do Mearim não é como a do Araguari, no Amapá, onde é possível surfar por mais de 30 minutos na mesma onda.

 

A pororoca do Mearim some em diversas ocasiões. Depois da longa seção, a onda oferece mais umas cinco seções adiante, variando entre esquerda e direita, sempre com intervalos de calmaria.

 

Antes de pular do barco, tem que ficar o ligado o tempo inteiro pra não perder a viagem. A onda às vezes engana muito. Proporciona um rápido visual de perfeição e rapidamente fica cheia e desaparece. 

 

É preciso ir em direção à espuma para entrar na onda, não adianta remar na parede, por mais que ela aparente estar forte. Existe uma forte correnteza que nos joga pra trás da onda, então o jeito é encarar o espumeiro e aguardar o momento certo de dropar.   

 

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Adilton Mariano comemora mais uma vitória. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
Nas seções mais rasas da pororoca, a água fica bem abaixo do nosso joelho. Tem que tomar bastante cuidado pra não detonar as quilhas na lama.

 

Quando passa por essas bancadas, a onda simplesmente arrasta tudo o que vem pela frente. Se você der mole e perder a prancha nesse momento, vai ficar na maior roubada.

 

E o pior é que geralmente esses trechos possuem lamas movediças. Inclusive fiquei preso na lama algumas vezes e tive alguma dificuldade para me locomover.

 

 

Direita lambe o Corredor da Morte. Foto: Ader Oliveira.
Segurava a prancha com força, pois optei por cair sem cordinha, e lutava contra a força da maré para chegar a alguma parte segura na margem.

 

A inúmera quantidade de murerés na água prejudica bastante o desempenho de quem utilizar a cordinha na prancha.

 

Depois de enganchar numa delas em minha primeira onda, desisti do equipamento e passei a surfar sem cordinha.

 

É um risco que você corre. Ou fica sujeito a perder várias seções por causa dos murerês, ou surfa sem cordinha e fica esperto para não perder a prancha e ficar na roubada em plena selva.  

 

As pernas doem, galera. Não é brincadeira, não. Se não estiver fisicamente preparado para aproveitar a onda até onde ela te levar, pode ter certeza que seus membros inferiores vão pedir “menos”.

 

Depois de encarar a pororoca pela primeira vez, fui batizado pelo veterano Marcelo Bibita, ex-competidor nacional de longboard e atual juiz das etapas do circuito brasileiro de surf na pororoca.

 

Assim que saímos da mesma onda, Bibita contemplou o visual da selva amazônica, agradeceu a Deus pela oportunidade de estar mais uma vez naquele lugar maravilhoso e catou um pouco de água da pororoca para que eu pudesse beber e ser abençoado.

 

“Auêra auara”, falou Bibita ao perceber que eu havia bebido a água. Pensei que era alguma brincadeira do cara e perguntei por que ele falou aquilo. “É o nosso Aloha da pororoca”, respondeu.

 

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Surfistas posam para a foto de despedida da pororoca do Mearim. Foto: Clément Gargoullaud / Media Venture.
Para quem desconhece o verdadeiro significado do Aloha, o termo havaiano significa muito mais do que “alô” e “adeus” ou “amor”.

 

Seu significado maior é compartilhar (alo) com alegria (oha) da energia da vida (ha) no presente (alo). Ao compartilhar essa energia, as pessoas se conectam ao poder divino que os havaianos chamam de mana.

 

E o uso amoroso deste “poder incrível” é o segredo para obter saúde, felicidade, prosperidade e sucesso verdadeiros.

 

Pelo que pude ver na pacata cidade do interior maranhense, o “Auêra Auara” virou febre. Na maioria dos lugares em que passávamos, a molecada logo nos saudava com o termo.  

 

Não poderia deixar também de destacar a performance irretocável do cearense Adilton Mariano na final da etapa.

 

O cara mais uma vez deu show na pororoca e não teve muito trabalho para bater seus adversários. Sua última onda na prova vai ficar em minha cabeça por muito tempo.

 

Enquanto o paraense Sandro Buguelo perdeu uma quilha logo de cara e lutava para fugir da espuma, Adilton demolia a esquerda com belíssimos cutbacks e rasgadas. A onda não parava de abrir e o cearense esbanjava uma linha impecável para desferir várias manobras ao longo do percurso, que acredito ter durado uns 12 minutos.

 

Foi uma apresentação realmente memorável, digna de um jovem talento nordestino que está há vários anos sem patrocínio e coleciona diversos resultados importantes em sua carreira.

 

Recordista mundial de permanência na pororoca, cerca de 36 minutos, o atual campeão da modalidade foi campeão brasileiro amador nas categorias Open e Júnior em 2002, além de finalista em etapas das duas divisões do circuito brasileiro profissional.   

O moleque merece a chance de entrar numa grande marca de surfwear. Além de arrebentar no rio e no mar, tem postura profissional e um grande carisma.

 

Pra finalizar, gostaria de saudar a todos os camaradas que estiveram comigo durante essa Semana Santa inesquecível. Todos os envolvidos com a etapa maranhense e que compartilharam comigo a sensação de surfar em plena selva amazônica.

 

Auêra auara!!

 

 

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