O contundente carimbo verde-amarelo na primeira etapa da história da World Surf League (WSL) jamais será apagado. Na dourada Snapper Rocks, um dos redutos sagrados do surfe australiano, o mundo viu uma dominância sem precedentes do Brasil. A coroação veio com a vitória de Filipe Toledo – foi uma daquelas conquistas raras, tão avassaladoras que soam quase obrigatórias.
O pequeno Toledo, surfista mais jovem do tour, parecia irremediavelmente superior a seus adversários. Fez boa escolha de ondas, mas poderia ter vencido mesmo se tivesse surfado as piores do dia, tamanha era a sua superioridade.
Nas quartas, contra a linha suave de Bede Durbidge, Snapper testemunhou o abismo existente entre o moderno surfe de um garoto de Ubatuba de 19 anos e o surfe clássico de um balzaquiano de Queensland de 31 anos. Naquelas ondas, Filipe tinha uma vantagem inalcançável.
Encontrou, na semi, Adriano de Souza, o cara que abriu à foice as primeiras trilhas da brazilian storm. Mineiro é um coringa – combina Bede com Filipe em doses equilibradas. Mas, como já dito, naquela tarde de Snapper, o pequeno Toledo era melhor em tudo.
A final foi a oportunidade de medir forças com um local da mesma geração – ops, sete anos mais velho. A verdade é que ainda não há surfista da mesma faixa etária de Filipe no circo, e isso lhe dá uma vantagem assombrosa para um futuro título mundial.
Filipe é um craque, um surfista diferente dos outros e, nesses dias da Gold Coast, mostrou ao mundo só um pouco de sua excepcionalidade. À sua frente, há um longo e vitorioso caminho.
De volta à água, a decisão contra o cada vez mais forte Julian Wilson serviu apenas para reforçar a superioridade do brasileiro, para mostrar aos australianos nas areias da Gold Coast que, pelo menos naquele dia, havia um enorme abismo entre ele e os demais garotos do tour.
Aqui e ali, na mídia especializada estrangeira, para além do habitual lixo preconceituoso produzido por alguns veículos, li bons textos, sobretudo na Surfer e na Surfing, em que essa inesperada superioridade foi apontada, a favor de Filipe.
Lembrei-me do histórico “The boys from Brazil”, artigo publicado em 1989 por Paul Sargent para apresentar dois jovens furacões com os estranhos nomes de Teco e Fabinho, vindos de um país exótico sem qualquer tradição no esporte.
Julian, o vice-campeão, é um excelente surfista e está em ascensão, mas continuo sem entender algumas de suas notas. Na semi, contra o elegante backside de Miguel Pupo, venceu mais uma vez sob o signo da polêmica. A questão é que já são tantas vitórias sem ser destacadamente o melhor surfista que já colaram nele o perigoso selo de queridinho da WSL.
Aí talvez haja uma injustiça – já cometida por mim. Julian surfa muito e pode ser campeão mundial este ano. Tem talento de sobra para isso.
Dito isso, volto à minha adorável incoerência: Miguel, que surfou de forma plena durante todo o evento, poderia ter vencido a bateria com as mesmas ondas que perdeu.
O evento serviu ainda para revelar dois rookies tropicais ao mundo: Wiggolly Dantas e Ítalo Ferreira. Guigui chegou pronto ao WCT. Quem o acompanha há mais tempo sabia que seu maior obstáculo era o surfe praticado nas ondas ordinárias da divisão de acesso. Na elite, está em casa, graças ao surfe de linha, de tubo e de arcos praticado exaustivamente em longas temporadas havaianas. Ítalo representa uma lufada de modernidade no tour. Inventivo, seu surfe carrega uma velocidade ainda não digerida pela elite. Talvez precise enquadrar alguns de seus movimentos ao padrão de linhas conservadoras da elite, mas ainda assim o garoto tem caixa para chegar longe já no primeiro ano. É forte.
Gabriel Medina, que vinha surfando muito bem, perdeu precocemente, numa bateria polêmica, com direito a uma interferência questionável no australiano naturalizado irlandês Glen Hall. Depois, soltou o verbo em entrevista oficial à WSL, para espanto dos polidos saxões, talvez acostumados à delicadeza de lendas como Sunny Garcia. Gabriel, conhecido por sua inteligência competitiva, não foi feliz no episódio, mas retratou-se, convidou o irlandês para comer um churrasco no Rio e encerrou a questão.
A próxima etapa, na onda deitada e imprevisível de Bell’s Beach, representa desafios distintos para os brasileiros. Filipe chega com a camisa dourada de líder do ranking mundial, disposto a provar que pode se manter no trono. Se o mar estiver mais em pé, ele levará vantagem. Do contrário, terá a missão de surpreender o mundo em ondas mais gordas e encorpadas, em que o peso da borda encravada na água produz os melhores arcos. Não ousem duvidar do garoto.
Adriano, o único entre os homens a já ter badalado o sino, é a aposta óbvia. Dois de seus grandes atributos – a cavada e o jogo de borda – parecem ter sido feitos para aquela onda. Ele é maduro, já liderou o ranking, sabe como é preciso constância de resultados e fôlego para disputar título.
Os cinco goofies do Brasil têm parada indigesta. A onda, claramente afeita a regulares, é cheia de armadilhas. O último gauche a vencer foi Occy, no distante ano de 1998. Mas o surfe, em 2015, parece em transição. Não me surpreenderia se Gabriel (que está mordido), Miguel (que vem de um bom resultado) ou qualquer outra base canhota do mundo quebrasse o tabu de Bells em 2015.
É hora de os surfistas encararem o frio de Victoria.