Leitura de Onda

Precisão e inovação

Mick Fanning , Hurley Pro 2015, Lower Trestles, Califórnia (EUA).

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Para Tulio Brandão, vitória de Mick Fanning foi justa, mas abre necessariamente um debate em torno da validade dos critérios adotados em ondas afeitas a manobras modernas. Foto: WSL / Rowland

 

Sejamos justos: Mick Fanning foi o surfista mais encaixado na onda de Trestles, no dia final da prova no pico de San Clemente. Veloz, preciso, dono de transições impecáveis, ele produziu notas altas como quem frita pastéis.

Desta forma, é bom marcar, ele venceu a prova.

Fazer pontuações excelentes com um surfe rotineiro é certamente uma vantagem para Mick, mas, de minha perspectiva, pode ser um problema para o esporte. A despeito de seu surfe ser belíssimo, digno de um campeão, a execução de movimentos conhecidos e conservadores torna apresentações previsíveis.

A vitória do australiano foi justa, mas abre necessariamente um debate em torno da validade dos critérios adotados em ondas afeitas a manobras modernas. Ver Mick desenhando arcos irrepreensíveis em Bells é lindo. Vê-lo fazer o mesmo nas merrecas crispadas pelo vento da última sexta feira não impressiona tanto.

Calma, a onda de Trestles é afeita a arcos. E é afeita ao Mick. Prova disso é a lista de vencedores, que já incluía, além do próprio australiano, Kelly Slater (6x), Joel Parkinson e até o suave Bede Durbidge. Prova disso é a final deste ano, entre dois especialistas em surfe de borda.

O tempo, no entanto, impõe um sutil ajuste nos critérios. Ainda é legal, num dia de swell consistente, ver um desenho clássico de surfe em Trestles. Mas, numa parede espumada de meio metrinho, os arcos pedem o acompanhamento de movimentos mais contundentes, expressivos, que surpreendam o público.

Um exemplo é a primeira nota nove conquistada por Mick na semifinal contra Gabriel Medina. Ele encaixou dois arcos potentes e bem desenhados numa onda muito pequena e a completou com pequenos movimentos acessórios. A pontuação surpreendeu até os comentaristas (vale rever a onda).

Para explicar a nota, o comentarista Ross Williams, entusiasmado, disse: “O último item da lista de critérios de julgamento é ‘velocidade, força e fluidez. Nós deveríamos riscar a linha e colocar ali ‘Mick Fanning’.”

Ele esqueceu de citar o segundo item da lista que, no mundo dos justos, em ondas como as de Trestles, teria peso igual ou maior: “inovação e progressão”.

O nó da discussão está justamente na briga entre esses dois critérios.

O surfe de Mick se encaixa de modo perfeito em quase toda a lista, que também inclui combinação (transição) e variação de manobras, além de comprometimento e grau de dificuldade. O australiano tem, de fato, hoje, o surfe mais maduro.

Mas peca, nitidamente, na inovação. E, na onda achatada de sexta-feira, os juízes parecem ter ignorado essa deficiência em seu surfe. Como se não fosse uma necessidade ser inovador e progressivo. Talvez não seja mesmo. Não fizeram o mesmo com seus adversários, diante de deficiências em outros critérios.

Provavelmente, mesmo que o julgamento considerasse a inovação, ele venceria a prova, porque, como dito lá em cima, foi o surfista que mais se encaixou na vala de Trestles na sexta-feira. Mas – e aí está o ponto – seria um resultado apertado, que abriria janelas e oportunidades para reações dos adversários.

É difícil essa questão: como equilibrar o reconhecimento da maturidade e a necessidade da inovação?

Para além dessa discussão, sem ser maniqueísta, a vitória de Mick – e a consequente tomada do primeiro posto no ranking mundial – é a redenção de um surfista sólido, de um esportista extraordinário e de um homem de bem. É, também, uma grande virada, depois do tubarão. Ele a merece como poucos.

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Adriano de Souza, “o grande herói do circuito mundial”. Foto: WSL / Rowland

 

Agora, Adriano de Souza. Ele é o grande herói do circuito mundial.

Só um espírito inquebrável é capaz de suportar tamanha falta de atenção, mesmo na condição de líder, que exerceu durante boa parte da temporada de 2015.

Só uma alma guerreira é capaz de, longe dos holofotes, contra tudo e contra todos, chegar à final do evento e manter-se viva na disputa pelo título mundial.

Só um cara repleto de indiscutíveis qualidades técnicas (a despeito da sanha dos críticos) é capaz de derrotar o melhor surfista daquela onda, Filipinho Toledo.

Só. Adriano conseguiu isso tudo sozinho. Teve a companhia do técnico, de seus patrocinadores, da noiva e dos amigos, sempre presentes. Não me refiro a eles.

A solidão do surfista do Guarujá aparece em outras cenas. Ele não tem o empurrão do mercado das gigantes do esporte, o colchão de boa vontade dos comentaristas e jornalistas, a complacência dos juízes, os tapinhas nas costas de seus pares. Não tem moleza.

Adriano daria um grande campeão mundial. Seria a vitória do trabalho duro, da garra aliada ao talento, uma vitória que faria qualquer um acreditar que é possível chegar lá. E, depois de Trestles, onde sequer estava entre os melhores e, mesmo assim, fez a final, louco é quem ousa duvidar desse monstro. Avante.

Gabriel Medina voltou definitivamente ao modo “on” de campeão do mundo: feroz, consistente e com um surfe potente, na ponta dos cascos. Arriscou-se na primeira disputa das quartas-de-final, mas detinha a prioridade. A interferência de Nat Young, corretamente sinalizada, foi um jeito difícil de abrir o dia. Na semi, contra Mick, perdeu no detalhe. A diferença, como já explicado neste texto, a meu ver, foi bem menor que a apresentada.

O terceiro em Trestles fez com que ele desse novo salto no ranking, de mais três posições, alcançando o sétimo posto. Se continuar nesse ritmo, tem chance de alcançar Pipe com chances pelo menos matemáticas do bicampeonato mundial, embora Mick e Adriano tenham se descolado significativamente do pelotão da frente após fazerem a final em San Clemente.

Quando o swell ainda tinha pulso, Gabriel, embalado, aparecia na lista de favoritos. O chaveamento indicava uma final provável entre ele e Filipe Toledo.

Deram as vitórias para os clássicos. Mas Filipinho continua sendo o melhor surfista do mundo em Trestles. Na etapa, fez um bom resultado. Foi vítima de uma escolha de ondas infeliz e de um critério excessivamente enviesado ao surfe convencional. Caiu no mesmo saco que Gabriel cairia pouco depois, num dia em que o mar esteve inconsistente em vários momentos.

Aqui, vale uma pequena nota crítica ao trabalho de Kieren Perrow. Deixou passar dias de mais potencial e, depois de muita espera, botou o evento na água no pior dia de swell. A previsão indicava uma quinta-feira melhor, mas ele optou pela sexta. Reconheço que o trabalho do australiano é complexo e sujeito a pressões de todos os lados, mas não é bom para o esporte ver a final em ondas pequenas e mexidas. Torço sinceramente que ele acerte a mão nas decisivas etapas do ano.

Os dias que antecederam as finais em Trestles foram dominados pelos brasileiros de uma maneira poucas vezes vista no circo. Wiggolly Dantas, que perdeu nas quartas para Adriano, ganhou mais um selo de surfista original da elite ao espancar as direitas americanas com classe, linha e talento. No round 5, venceu outro brasileiro, Ítalo Ferreira, que segue a mesma toada do colega estreante.

A disputa pelo rookie of the year está mais quente do que nunca entre os dois brasileiros. Ítalo está em nono no ranking e, Guigui, em décimo-segundo. A diferença é de pouco mais de 2 mil pontos. Estou ansioso para ver o que os dois podem produzir nas três etapas restantes em busca dessa condecoração.

Aos amantes da classe, a boa notícia. Miguel Pupo acordou depois de longa hibernação em 2015. Fez um nono em Trestles, mas poderia ter ido facilmente mais longe. Suas linhas suaves e pancadas certeiras se encaixaram tão bem que, no meio do evento, estava facilmente entre os favoritos.

Perdeu por detalhes bobos. No round 4, na bateria que os brasileiros deram uma histórica demonstração de poder, ele caiu na manobra de finalização que certamente lhe garantiria nas quartas e mandaria Filipe e Ítalo para a repescagem. No round 5, contra Joel Parkinson, a oito minutos do fim, esperou a segunda onda, que acabou não vindo. Tem que manter a cadência no resto do ano.

Não acabo o longo texto antes de falar de Kelly Slater. No round 5, contra Mick, o maior surfista de todos os tempos mostrou ao mundo, mais uma vez, que é preciso mais que uma técnica precisa e mecânica para produzir encantamento. A vida não é completa sem um pouco de mágica. Kelly surpreendeu, mesmo após errar num aéreo de backside, ao recuperar a prancha na espuma e voltar à onda.

É preciso reconhecer que a onda não alcançou o critério duro do esporte. Os juízes consideraram que ele caiu da prancha e ficou em pé novamente, mas a manobra atingiu em cheio o coração do público. O vídeo da onda, postado no Facebook com o título “What?!” já está a beira das 10 milhões de visualizações, com 166 mil curtidas e 77 mil compartilhamentos. O careca é pop.

A notícia de que ele provavelmente não correrá a perna europeia, para tratar alguns problemas físicos e por considerar que já não tem mais chances de título, é triste. Aos 43 anos, Kelly ainda é o maior guia do esporte, ele sim um inovador, um cara que dita caminhos e condutas. Embora obviamente ele esteja muito perto da aposentadoria, não sei se o surfe pode prescindir de sua presença.

Fica mais um pouco, Kelly. 

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